Fascistização no Brasil do tempo-de-agora
Vivemos o colapso de pactos hibridizadores de demandas populares com estruturas intocáveis, a corrosão da Nova República, o negacionismo capaz de inserir o nazismo na esquerda, a elaboração difusa de vontades coletivas neofascistas sob os auspícios de torturadores de bem, milicianos da verdade e profetas da antidemocracia. E por quê?
Há coisas que me encerram
Ou que eu não ouso tocar
Porque estão demasiado perto.
“Nalgum lugar”, Zeca Baleiro
Se nos perguntassem daqui a cem anos quais imagens relativas às formas da vida social o último século foi capaz de materializar, talvez o campo de concentração (primeira metade do XX), a corporação capitalista neoliberal (segunda metade do XX) e o condomínio1 (duas primeiras décadas do XXI) sejam expressões paradigmáticas. Tais fotografias assumem o lugar de arquétipos poderosos, numa leitura macro, daquilo que fomos capazes de elaborar coletivamente num lastro de cerca de 125 anos. Objetivamos nesta tessitura enfatizar a violência como modo de vida e mecanismo de reprodução ampliada do capital, em distintos níveis, espacialidades e temporalidades. A articulação de violência e capitalismo, ao tratarmos deste recorte, não pode prescindir jamais da análise do fenômeno do fascismo, grau máximo da barbárie político-cultural, modelo inconteste do estado de exceção contemporâneo e mobilização de processos irracionais e regressivos.
Desde o surgimento do fascismo na Europa do entreguerras que o Brasil é território potencialmente fértil para essa forma de experiência que é também e sempre uma concepção de História. Abatedouro escravista dos mais longevos e monstruosos da modernidade, aqui se elaborou um tipo de sociedade capaz de fazer conviver a destruição completa de qualquer forma de alteridade com o verniz bovarista2 – presente nas obras de Machado de Assis e Lima Barreto, por exemplo –, ou seja, o movimento de se compreender diferente do que se é, enquanto sujeito, povo, nação; um autoengano presente tanto nos de baixo quanto nas elites reacionárias por excelência, quase como um amálgama para menos que não se constrange em ser vil e santo, cínico e moralista, desumano e humano em demasia, estúpido e esperto, uma e outra coisa.
O Brasil de hoje é o do colapso de pactos sociais hibridizadores de sentidos/demandas populares com estruturas intocáveis e intocadas (lulismo); da corrosão da Nova República, portadora de revoluções passivas e garantias burguesas ativas; do negacionismo de vanguarda, capaz de inserir o nazismo na esquerda, a ditadura de 1964 no vazio e a Guerra Fria na ordem do dia, trinta anos após sua debacle; da elaboração difusa de vontades coletivas neofascistas (fascistização), sob os auspícios de torturadores de bem, milicianos da verdade e profetas da antidemocracia. E por quê?
Graciliano Ramos, em Vidas secas, assim descrevia o pensamento do vaqueiro Fabiano ao ouvir seus dois filhos duvidando das coisas do mundo: “E eles estavam perguntadores, insuportáveis”. Estamos como o filho mais velho e o filho mais novo da saga nordestina. Inclusive com uma unidade mínima entre gerações quando se trata da diagnose do que foram os treze anos de governos do PT, leitura traduzida nas eleições de outubro de 2018: temos de mudar tudo e, se houve culpados, não éramos nós, mas nossos inimigos, as/os professoras/es da escola e da universidade, a comunidade LGBT, o próprio PT, os nordestinos, o Foro de São Paulo, os artistas drogados da televisão, o “kit gay”, os pedófilos comunistas, os não cristãos.
Jair Bolsonaro (PSL) seria o artífice dessa agressiva caçada aos que não consentem, um candidato que no início do ano eleitoral era mais impossibilidade que viabilidade, mesmo após o golpe de 2016 e suas três veredas, jurídicas, parlamentares e nos mass media. Alguns momentos devem ser lembrados: a prisão de Lula em abril; o arrefecimento das candidaturas no espectro da direita, com destaque para Alckmin e o PSDB; a sintonia fina, por dentro de nossa democracia fantasmagórica,3 da trinca citada, no silenciamento dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais, sendo o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes em março o exemplo mais evidente; o atentado contra Bolsonaro em Juiz de Fora, no início de setembro; a avalanche de fake news via redes sociais, notadamente no WhatsApp, pró-Bolsonaro e com a participação/financiamento direto de empresários e corporações contando com robôs disparadores de mensagens; a adesão de Edir Macedo e de sua Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) à candidatura do capitão da reserva, em 29 de setembro, ou seja, um mês antes do segundo turno; as ações coercitivas da Justiça Eleitoral nas universidades públicas de todo o país, inéditas se levarmos em conta a truculência e a sincronia, a poucos dias das eleições.
Essas etapas, que não de maneira cronológica aprofundaram o golpe de dois anos antes, têm sido interpretadas de múltiplas formas (em termos progressistas) na academia, nas colunas jornalísticas, nos balanços políticos de partidos, militantes, organizações. Chama a atenção o fato de que a maioria dessas análises oblitera consideravelmente a compreensão do fenômeno do fascismo no Brasil, presente em todo o século XX, com maior ou menor visibilidade e organização, bem como no início deste. Essa obstrução age em três direções: refutar o fascismo no Brasil, debatendo a emergência de uma onda conservadora exógena/endógena; admitir elementos fascistas em nosso tecido societário, lançando mão de no máximo termos como protofascismo, filofascismo, neofascismo, por insegurança política e/ou negação teórica; reafirmar o fascismo como processo histórico e pragmatismo radical4 presente diuturnamente num país que é acima de tudo uma forma de violência.5
Nossas pesquisas recentes caminharam da segunda à terceira direção no esforço de entender o fascismo como um conformismo (ideologia tendente à homogeneização, de corte autoritário/reacionário) e ao mesmo tempo uma experiência (sentido comum, algo que nos afeta e aproxima de outros sujeitos semelhantes em termos de concepção de mundo). Antonio Gramsci e Walter Benjamin correspondem, respectivamente, às objetivas da câmera que vimos trazendo na bolsa. Partindo de suas reflexões defendemos que Bolsonaro – podemos já falar de bolsonarismo? – representa um sentimento que compreende o antipetismo, mas o extrapola, manejando elementos fascistas como o pragmatismo da violência e a violência pragmática, o ufanismo raso, a eliminação de adversários comuns, a tutela de um líder – Bolsonaro como “mito” que possui até coreografias e marchas em sua homenagem –, a defesa de uma ditadura constitucional, uma feroz cultura política, o irracionalismo, entre outros.
Diferentemente de Plínio Salgado, dos militares do regime, de Collor, o Breve, Jair Messias é nosso primeiro candidato efetivamente de massas da extrema direita, com enorme capilaridade social, das elites até as classes populares, e uma estética explicável até numa cola de mão: armas – defesa da família e da moral cristãs – e nacionalismo entreguista. Bolsonaro é nosso heimskur, que em islandês significa “aquele que não sai de casa” e ao mesmo tempo “imbecil”. Discordo do adjetivo último em relação ao presidente eleito, não por características pessoais, mas pelo que foi capaz de forjar, junto de seus marqueteiros e do partido de aluguel da vez, o PSL, nestes poucos meses que antecederam a eleição. Sem dúvida, não apenas eles, mas também o caldo de cultura no Brasil do tempo-de-agora que ao menos desde 2008, com a crise mundial, tem como resultado um avanço pujante do ódio como política e dos ataques a grupos específicos identificados como apagáveis.
Dos nove traços da personalidade autoritária vinculados à concepção fascista da vida, desenvolvidos por Adorno6 em 1950, temos na Escala F (de potencial fascista) cinco elementos que destacamos: 1) o cinismo; 2) a preocupação com o comportamento sexual; 3) a agressividade autoritária; 4) o poder e a rudeza; e 5) a submissão à autoridade. No pentateuco se encontram itens bastante perceptíveis neste Brasil que pretende varrer a corrupção ao “mudar tudo isso que está aí”, mantendo tudo aquilo que sempre esteve lá onde se erige e se garante a hegemonia das classes dirigentes.
Bolsonaro é a síntese do processo de fascistização periférica que tem no neoliberalismo e sua crise-condição um nascedouro. Octavio Ianni7 foi certeiro em apontar que o nazifascismo é a religião do neoliberalismo. Com ele enfatizamos que os dogmas dessa religião são diretamente proporcionais à potência destrutiva da razão neoliberal, que nos anos 2000 ampliou sobremaneira sua capacidade de despossessão via espoliação. Temos assim uma junção de violências, com o desencantamento epidêmico do mundo provocado pelo neoliberalismo, pavimentando processos maciços de alienação, adoecimento físico e psíquico, desmonte de políticas e dimensões públicas, aniquilação de resistências e sujeitos.
Dois marcadores temporais são importantes aqui. A crise, no final do segundo governo de Lula, mas cujos efeitos recairiam sobre o período Dilma, e as Jornadas de Junho (2013), que colocaram na rua, sob diferentes vozes, a defesa de direitos sociais expressa na maiúscula insatisfação com os investimentos públicos em transporte, educação e saúde, e a crítica (heterogênea, seletiva, tendencialmente de matiz conservador e sob forte influência da conjuntura) da corrupção da/na sociedade política. O que se deu entre eles e também no imediato pós-Junho merece a atenção de analistas e estudiosos. Elencamos neste breve texto alguns elementos a serem considerados. A profusão de programas policiais televisivos com forte apelo fascista (a datenização); o crescimento exponencial das igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais, bem como da renovação carismática católica; o filme Tropa de elite (2007), laboratório do Brasil que passava a clamar por um estado de exceção capaz de matar ainda mais (a catarse nos cinemas à época teve alguns estudos e entrevistas que buscaram entender seus porquês); a publicação da obra de Edir Macedo Plano de poder: Deus, os cristãos e a política (2008), cristalina colocação da agenda da Iurd e de seus apoiadores em termos de espaços no Estado; o programa CQC (de 2008 a 2015), na Bandeirantes, vanguarda da/na mitificação do obscuro deputado Jair Bolsonaro; o Massacre de Pinheirinho, em São José dos Campos, em 2012, sob efusivo apoio de vários sujeitos e setores; o programa Pânico, na Bandeirantes e Rádio Jovem Pan, de 2012 a 2017, com o quadro “Mitadas do Bolsonabo”, e, finalmente, a Operação Lava Jato (2014), judicialização da política em um novo patamar, de dar inveja a Kafka.
Nosso processo de fascistização, com raízes mais ou menos profundas, é fruto do processo de fascistização no Estado ampliado brasileiro, possuindo características singulares que compreendemos como marcas históricas de questões adiadas, não resolvidas ou acertadas de cima para baixo. O ódio ao pobre, explicitado na segregação socioespacial maiúscula, no genocídio diário de jovens negros/negras, na legitimação social das chacinas, limpezas sociais via milícias, na liderança do país em linchamentos e assassinatos de LGBTs, assim como de mulheres; o luto e o trauma não vividos e partilhados da ditadura civil-militar, perceptíveis no boicote à Comissão da Verdade e às iniciativas políticas de reparação histórica às vítimas dos anos de chumbo; o adesismo de setores religiosos fundamentalistas e vinculados à teologia da prosperidade, com destaque para as igrejas evangélicas, com forte disseminação social, midiática, cultural e política, tendo nos Estados Unidos a referência primeva. Não é preciso muito para observar na família Bolsonaro o lugar do modelo norte-americano de sociedade, sobretudo na era Trump, quando a identidade Wasp8 é elevada a um novo patamar.
Bolsonaro, discípulo do moralósofo/filosofista Olavo de Carvalho, logrou colar os três arquétipos que citamos na abertura, por meio do trato de uma lógica tripartite emanada da sociedade civil brasileira, sensivelmente de seus setores dominantes. A lógica da morte (o campo), a lógica do capital (a corporação) e a lógica do inimigo (o condomínio). Não à toa, a escola, alvo primeiro das cruzadas do Escola sem Partido, e a família de modelo único, preocupação dos fundamentalistas cristãos, garantiram a esse projeto de violência como justiçamento uma vitória quase de lavada.
Chamamos de ethos (neo)pentecostal-corporativo esse sentimento que o Brasil tem sido capaz de fomentar, com marcas nossas, sobretudo o bovarismo e a subalternidade, a ponto de ele ser um mantra social, norteador da/na escolha de nosso chanceler, um conspirador cruzadista; nossa ministra das Mulheres, Família e Direitos Humanos, além dos índios, pastora que parece uma líder da Gilead na série The Handmaid’s Tale;9 e nosso ministro da Fazenda, um jogador do sistema financeiro e nato vendedor de varejo e atacado nos leilões da coisa pública. O pragmatismo da pequena política, triste legado dos anos petistas à frente da Presidência, conseguiu para valer, com o fã do coronel Brilhante Ustra, aquilo que Walter Benjamin apontou em 1921:10 a autorização para uma violência administrada, mantenedora do direito e, logo, legitimadora de experiências fascistas à luz do dia, atenuadas por justificativas várias, desde as divinas até as de nosso pai, mãe e amigos em grupos de aplicativos de mensagens.
Se somarmos às lógicas que descrevemos os atos do sacrifício (religioso ou capitalista) e da salvação (material ou transcendental), teremos um fascismo à brasileira recheado de símbolos que exigem nossos estudos e reflexões, cada vez mais. Na véspera da votação do segundo turno, Bolsonaro apareceu num vídeo em sua casa, ao lado de Hélio Bolsonaro, este com uma camisa com os dizeres “Minha cor é o Brasil” e na mesa uma caneca do Bope. Não há gente, não há música, não há livros, não há pessoas representativas de lutas sociais, não há Deus. O homem negro não fala. É o vazio preenchido pelo medo, outro ingrediente que não pode faltar nos fascismos. A obscuridade narrada em primeira pessoa e com patente militar. Após a vitória, uma oração. Festa na Barra da Tijuca, o bairro sem bairro. O apolítico que é político. A democracia antidemocrática que ama odiar.
“As pessoas estão sempre despreparadas”, como asseverou Kafka em O processo.11Preparemo-nos.
*Eduardo Rebuá é professor adjunto de Educação na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), professor adjunto credenciado do Programa de Pós-Graduação (mestrado/doutorado) em Educação da Universidade Federal Fluminense (PPGE-UFF), doutor em Educação pela UFF, mestre em Educação pela Uerj, bacharel e licenciado em História pela UFF, coordenador do Observatório de História, Educação e Cultura da UFPB (Heco-CNPq), pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação (Nufipe-UFF) e organizador das obras Gramsci nos trópicos: estudos gramscianos a partir de olhares latino-americanos (2014), Educação e filosofia da práxis: reflexões de início de século (2016), em parceria com Pedro Silva, e Pensamento social brasileiro: matrizes nacionais-populares (2017), em parceria com Rodrigo Gomes, Giovanni Semeraro e Martha D’Angelo.