Febre xamânica na Amazônia peruana
“Tive a impressão de ser uma serpente que vomitava o Universo.” Em 1963, o escritor norte-americano William Burroughs descrevia nesses termos sua experiência com a ayahuasca. Desde então, um número crescente de turistas visita o Peru para descobrir as propriedades terapêuticas ou místicas dessa bebidaJean-Loup Amselle
Há algumas décadas, a Amazônia peruana vê afluir um número crescente de turistas vindos do mundo inteiro em busca de uma bebida alucinógena, a ayahuasca. Essa substância, ingerida sob o controle de xamãs, provocaria visões e curaria certo número de doenças. Assim, o turismo xamânico tornou-se uma verdadeira indústria, um fenômeno de moda que invadiu o espaço público e a mídia dos países ocidentais. Já perdemos a conta dos testemunhos sobre as aventuras psicodélicas daqueles que, por razões místicas ou médicas, se dirigiram ao Peru para ali consumir essa poção mágica.
Por falta de estatísticas oficiais, é impossível quantificar esses fluxos turísticos que são, inclusive, muito difíceis de identificar, já que a maioria das viagens é feita individualmente, em lugares dispersos dentro de uma zona geográfica muito vasta. Porém, podemos estimar na casa das centenas, ou até mais, o número de turistas xamânicos que se dirigem para a Amazônia peruana a cada ano. Eles vêm da Europa e dos Estados Unidos, mas também de outros países da América Latina, como a Argentina e o Chile.
Em acampamentos apelidados de lodgesou albergues, situados na floresta, próximos dos centros urbanos de Iquitos, Pucallpa e Tarapoto, os xamãs acolhem os visitantes por períodos que vão de alguns dias a diversos meses. O alojamento, que frequentemente encena uma natureza “selvagem” por meio de amostras de flora e fauna amazônicas, oferece ao mesmo tempo condições de conforto no estilo ocidental. Assim, o site do Blue Morpho, um retiro situado nas cercanias de Iquitos e dirigido pelo xamã norte-americano Hamilton Souther, orgulha-se do charme da “selva amazônica” ao mesmo tempo que garante as melhores condições de higiene e segurança.1
O desenvolvimento do turismo centrado na ayahuasca se inscreve num filão econômico que, no contexto do xamanismo propriamente dito, combina diversas fases e atores. Podem-se distinguir num primeiro momento os propagadores da fé xamânica, que se expressam por meio de uma série de mídias e organismos: livros, jornais, revistas, filmes, documentários, vídeos, websites, companhias regionais de turismo peruanas, associações francesas de tipo espiritualista e new ageque se interessam pelas “pesquisas sobre o extraordinário”2 etc. Estas últimas promovem a crença na existência de “plantas mestras” ou “diretoras”, que se situa na continuidade das ideias românticas relativas ao poder da vidência, do sobrenatural e da medicina holística. A difusão desse pensamento também se baseia nos escritos de ilustres adeptos do consumo de substâncias alucinógenas, sejam eles antigos – Antonin Artaud, Aldous Huxley, Allen Ginsberg, William Burroughs, Carlos Castañeda – ou contemporâneos, como Amélie Nothomb3 e Vincent Ravalec.4 Mas o ensaísta Jeremy Narby e o cineasta Jan Kounen foram os principais responsáveis por repopularizar o xamanismo, contribuindo para lançar em direção à Amazônia as massas de turistas.
No livro A serpente cósmica, o DNA e as origens do saber,5 Narby estabelece uma aproximação entre a estrutura dos cromossomos e a “serpente cósmica” – a anaconda –, que é supostamente uma visão que acompanha de maneira quase sistemática o consumo da ayahuasca. O documentário de Kounen D’autres mondes[Outros mundos], por sua vez, associa uma reportagem sobre o universo da ayahuasca na Amazônia peruana (em particular dentro da comunidade shipibo) e entrevistas de pesquisadores que acreditam na ideia de que as alucinações provocadas por essa substância são “comprovadas” e antecipariam certas descobertas científicas.6 Do mesmo cineasta, o filme Blueberry, livremente adaptado das histórias em quadrinhos de Moebius (que, falecido em 2012, era também um adepto dos “estados alterados de consciência”), coloca em cena Guillermo Arévalo, um dos principais empreendedores xamânicos peruanos, que interpreta seu próprio papel.7
Empreendedorismo xamânico
Foi apenas depois de uns vinte anos que, com o desenvolvimento do turismo, o termo “xamã” (chamán, em espanhol) suplantou o do curandero para designar os curadores da floresta amazônica do Peru. Os xamãs ligados ao desenvolvimento desse setor são peruanos ou estrangeiros, indígenas ou mestiços. Pouco importa: longe de serem fixas, essas categorias servem essencialmente para que eles se posicionem no mercado da ayahuasca. Se Arévalo pertence à etnia shipibo, reputada pelo poder de seus xamãs, alguns de seus colegas são mestiços ou norte-americanos. Encontramos entre eles até um médico francês, Jacques Mabit, conhecido por curar em seu centro terapêutico, o Takiwasi, em Tarapoto, viciados em drogas europeus e peruanos.
Os grandes operadores, ou empreendedores xamânicos, obtêm grandes lucros ao acolher os turistas por valores muito altos (de US$ 50 a US$ 170 por dia), que contrastam com os pequenos salários pagos aos xamãs e aos empregados peruanos que trabalham nos acampamentos.8
Distinguem-se três tipos de turista. Os “místicos” vão para a Amazônia para se divertir e ter sua cota de visões de onça ou de anaconda. Os turistas medicinais, por sua vez, chegam a esses centros para se curar de toda espécie de doenças, tanto físicas (câncer, esclerose múltipla, aids etc.) quanto psíquicas. Esse grupo comporta doentes em fase terminal, para quem a Amazônia representa a última chance. Mas o que constitui o fundo de comércio dos centros é a cura do estresse, verdadeira doença do Ocidente, segundo os xamãs. “Vocês, ocidentais [europeus], têm a riqueza; nós, os xamãs peruanos, temos a sabedoria”, declararam diversos entre eles; o que é o mesmo que considerar que, na verdade, é o Sul que cura o Norte. Como o custo dos tratamentos de saúde se eleva progressivamente para as pessoas idosas no Ocidente, poderíamos imaginar que a Amazônia vai se tornar pouco a pouco uma grande casa de repouso médica… Em todo caso, é nessa direção que certo número de “operadores xamãs” está se orientando, abandonando o turismo da ayahuasca para construir hospitais alternativos que oferecem todo um leque de cuidados etiquetados como “tradicionais”.
Por fim, a última grande categoria de turistas: os que desejam aprender a medicina da ayahuasca a fim de se tornarem também xamãs. Muitos grandes centros já não se contentam mais em acolher turistas. Eles também formam, por longos períodos, adeptos que, uma vez iniciados na medicina das plantas “mestras” amazônicas, se devotam à transmissão do saber de seu mestre ao se instalarem como “médicos vegetalistas” no mundo inteiro. Eles encaminham, então, para os centros terapêuticos da Amazônia peruana aqueles que procuram resolver problemas psíquicos, orgânicos ou de dependência de drogas diversas.
Essas redes de fitoterapeutas formam assim espécies de seitas, e é nessa condição que o xamanismo amazônico centrado na ayahuasca atraiu a ira de organismos públicos e privados, como a Missão Interministerial de Vigilância e de Luta contra os Desvios Sectários (Miviludes)9 e a associação Psychothérapie Vigilance. Esses órgãos denunciam os danos de um xamanismo new agedesnaturalizado que doutrinaria os indivíduos e os colocaria à mercê de charlatães. Para Guy Rouquet, presidente da Psychothérapie Vigilance, “o xamanismo se tornou um mercado no qual abundam os espertalhões, os ilusionistas e os tubarões, em detrimento daqueles que, indígenas ou estrangeiros, desejam preservar saberes e sabedorias imemoriais tanto para o bem de seus próprios povos quanto do planeta”.10
Estupros, paradas cardíacas, mortes…
Diversas ações na justiça foram realizadas contra redes francesas que orientavam candidatos à “viagem” para os centros amazônicos. Esses processos culminaram em 2008 com a proibição definitiva da ayahuasca, substância a partir de então considerada entorpecente na França. Esses críticos pressupõem, no entanto, a existência de um xamanismo tradicional que comporta todas as virtudes e é objeto de uma preservação enquanto patrimônio cultural pelo governo peruano. A posição deste é particularmente ambígua, já que por um lado defende a utilização “autêntica” da ayahuasca, tal como seria ainda praticado pelas “comunidades nativas” da Amazônia, e por outro encoraja o desenvolvimento do turismo ligado à substância, com todos os riscos que isso envolve.
Estupros, paradas cardíacas, mortes consequentes da absorção da bebida… Um dos “acidentes” que teve mais repercussão na mídia francesa foi a morte do trapezista deficiente Fabrice Champion, que ocorreu em 2011, no Centro Espiritu de Anaconda, de Iquitos. Versões contraditórias circulam a respeito dessa morte brutal, algumas incriminando Arévalo, outras o desculpando ao destacar as imprudências cometidas pelo jovem.
Os acontecimentos desagradáveis que se produzem de vez em quanto se tornam problema para as autoridades peruanas, que veem no “turismo-ayahuasca” um maná financeiro importante – mesmo que impossível de ser estimado – e assim procuram regulamentar a profissão de xamã, bem como garantir que os turistas que vão ao Peru para consumir a ayahuasca tenham uma condição física que lhes permita suportar a absorção da substância.
Por causa do desenvolvimento econômico dessa região, o consumo da ayahuasca, que antigamente só era praticado por alguns grupos indígenas da floresta amazônica e apenas em alguns momentos de sua vida social, principalmente na iniciação dos xamãs, se difundiu ao longo das últimas décadas para outros grupos (mestiços, estrangeiros), em detrimento do uso de outras substâncias psicotrópicas, antes maciçamente utilizadas durante os ritos sociais ou com fins terapêuticos, como o tabaco. Para os turistas que se dirigem à Amazônia ou o consomem nos países europeus onde seu consumo é tolerado (Bélgica, Holanda, Portugal etc.), essa planta dotada de um “espírito” teria sido elevada ao nível de nova religião, substituindo velhas crenças e fornecendo um derivado para um mundo extra-humano, nesse caso vegetal.
Nova forma de despolitização
Ao isolar o indivíduo do universo social ambiente, orientando-o para seu eu interior e conectando-o exclusivamente com o “espírito” da planta, o xamanismo amazônico representa talvez uma nova forma de despolitização. Nesse aspecto, ele teria um papel análogo a todas as técnicas psicológicas que têm por efeito normalizar o sujeito, fazê-lo entrar na linha. O “turismo-ayahuasca” está sem dúvida destinado a um belo futuro no panorama do declínio das “grandes narrativas” e do florescimento das espiritualidades new ageque retomam os grandes temas do romantismo, como a vidência e a comunicação com seres desaparecidos.
No fundamento dessa corrente, existe a ideia de que o homem está sem espaço no mundo e deve se voltar para outros universos. Seria então o caso de nos livrarmos da gangue científica e técnica que nos cerca e de nos mostrarmos mais sensíveis às influências espirituais e cósmicas, até mesmo às propriedades ocultas dos minerais, dos vegetais e dos animais. Entrar em contato com o cosmos, capturar a energia espiritual que se desloca da Índia em direção às Américas indígenas, esse parece ser o lugar comum do xamanismo e do turismo new age, que reproduz a figura romântica da ruptura do mundo material como meio de acesso ao universo espiritual.
Nos anos 1960-1970, alguns quiseram ver no consumo do LSD pelos hippies uma forma de emancipação diante de uma sociedade conservadora. A absorção da ayahuasca estaria ligada a uma busca similar. Mas, tanto num caso como no outro, não seria melhor permitir aos indivíduos encontrar um modo de se adaptar ao mundo no qual vivem em vez de mudá-lo?
O turismo xamânico centrado na ayahuasca daria testemunho assim de um aumento do irracional, que, mesmo que extraia suas raízes de um passado remoto, se faz cada vez mais predominante na medida em que aparece totalmente conectado com o capitalismo de hoje. Podemos qualificar este último de “atrasado”; poderíamos também defini-lo como “viciante”, para insistir sobre suas múltiplas capacidades de sedução de indivíduos (em oposição aos “cidadãos” ou aos atores políticos), quer sejam puramente simbólicas, dentro do consumo de massa, quer se apoiem na absorção de substâncias alucinógenas como a ayahuasca.
Jean-Loup Amselle é Antropólogo, diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales (Ehess) e autor de Psychotropiques. La fièvre de l’ayahuasca en forêt amazonienne (Psicotrópicos. A febre da ayahuasca na floresta amazônica), Albin Michel, Paris, 2013.