Ficção Científica no Brasil: grandes esperanças
A história está longe de terminar para a FC brasileira. Graças às comunidades de Web, novos autores, que não tinham a menor ligação com o CLFC nem com os autores citados anteriormente, foram surgindo e ocupando um lugar fundamental na literatura do gênero e em suas discussões críticasFábio Fernandes
O Brasil não é um país sério, já disse o ex-presidente francês Charles de Gaulle – e já começamos mal, porque, segundo uma pesquisa feita nos anos 1980 pelo saudoso cronista Marcos de Vasconcellos, do Pasquim, quem teria dito a malfadada frase não foi o francês, mas um diplomata brasileiro em conversa com De Gaulle. Coisa que jamais saberemos ao certo (mas faz sentido). E para o brasileiro, essa frase já se tornou quase uma substituta para o dístico positivista “Ordem e Progresso” de nossa bandeira.
Por não ser considerado um país sério, toda tentativa de se fazer algo que fuja do humor na cultura é muitas vezes encarada no Brasil – claro – com risos.
Mas a ficção científica no Brasil (e do Brasil) não deveria ser encarada com tanto desprezo se pensarmos, entre outras coisas, que o escritor judeu alemão Stefan Zweig, ao se abrigar aqui na sua fuga da Alemanha nazista, declarou (e escreveu um livro com esse título, publicado originalmente em 1941) que o Brasil era o país do futuro. Coisa que nos deixou muito felizes: Zweig era um intelectual de primeira água, e não disse essas palavras de modo leviano. Estava empolgado porque via no Brasil a semente de algo que poderia ser construído num ambiente de tolerância e, o que era mais importante no mundo em guerra, paz.
A ironia foi que Zweig não viveu nem para ver o entusiasmo de JK, a política dos cinqüenta anos em cinco, Brasília e a Bossa Nova: em 1942, ainda vivendo em Teresópolis, estado do Rio, não agüentou de tanta angústia e cometeu suicídio. Pode ter sido aí que a idéia de país do futuro morreu no nascedouro: se o sujeito que foi o primeiro estrangeiro a afirmar isso categoricamente se matou, poderíamos confiar no que fora dito? O suicídio de Zweig foi o equivalente intelectual/cultural da derrota da Copa de 1950 para os brasileiros. Enterrou mais fundo o punhal da auto-estima nas costas da nossa gente.
Claro que isto é um exagero proposital; como diria Norbert Elias (certamente teria dito se fosse brasileiro), o buraco do nosso processo civilizador é bem mais embaixo. Mas este não é um texto sobre história pré-colombiana ou pré-cabralina, e sim de ficção científica, e ficção científica feita no Brasil.
Assim como no meu artigo anterior eu já havia escrito que falar de FC não é tarefa simples, tampouco é fazer a mesma coisa de maneira menos genérica e mais centrada em nosso país de origem. Assim, caveat lector: não é intenção deste escriba fazer uma grande e profunda análise deste gênero literário, nem no Brasil nem no exterior (tanto é que me sinto obrigado a ressaltar que, depois de publicado o primeiro artigo, percebi que havia deixado de lado ninguém menos que a grande precursora da ficção científica, a inglesa Mary Shelley, e seu Frankenstein. Peço, portanto, desculpas aos leitores e sigo em frente).
Esgotar qualquer tema relativo à literatura de ficção científica é uma tarefa impossível para um gênero que, oficialmente, nasceu há cerca de oito décadas e simplesmente nunca mais parou de produzir autores e obras. Há alguns anos, quando parei de assinar a revista Locus (a Publishers Weekly do gênero), ela registrava, em toda edição de janeiro, a quantidade de livros de FC, fantasia e terror publicados nos EUA/Inglaterra no ano anterior. Antes do ano 2000, essa quantidade anual quase chegava a 700, ou seja, cerca de dois livros publicados por dia em língua inglesa.
Claro, dirão os cínicos (e estarão certos): ah, mas a maior parte disso é lixo literário. Ao que respondo concordando e citando outro luminar da ficção científica, Theodore Sturgeon, autor do clássico More Than Human (que já foi publicado no Brasil pela L&PM e infelizmente anda esgotado), autor de uma citação que ficou conhecida (lá fora, inclusive fora do métier science-fictional) como Lei de Sturgeon, que reza: “Noventa por cento de toda a ficção científica escrita é lixo; mas, se pararmos para analisar, noventa por cento de TUDO o que se escreve é lixo”. E também não vamos entrar aqui em nenhuma análise de qualidade. A questão que cabe fazer é: existe ficção científica made in Brazil? E, se existe, por que ela não é conhecida?
Os precursores
Precursores tivemos muitos, mas quase todos no século 19 eram mais ligados ao que hoje classificamos como fantasia, e não com romances científicos (como se chamava a FC na época de Verne e Wells), como Gastão Cruls e Coelho Netto. Machado de Assis também escreveu vários contos num registro fantástico, como “Uma visita de Alcibíades”, em que o protagonista de 1875 recebe a visita, de corpo presente, como se teletransportado ao século 19, do político ateniense do século V a.C. Em 1994 foi encontrado e publicado o manuscrito de O Doutor Benignus, de Augusto Emílio Zaluar, avô da antropóloga Alba Zaluar e precursor, entre nós, de um romance científico numa linha entre Arthur Conan Doyle e Jules Verne.
Mas essas obras, quando publicadas em seu próprio tempo, eram quase sempre encaradas como humorísticas (definitivamente no caso de Machado, satirista convicto e juramentado) ou como cautionary tales (que talvez pudéssemos traduzir para o português como “contos de acautelamento”, histórias beirando o horror em que, na verdade, se avisa ao leitor para não se meter em esferas além de seu conhecimento).
Jerônymo Monteiro e Gumercindo Rocha Dórea
Uma ficção científica que realmente lidasse com conceitos científicos surgiria de modo mais organizado e consciente com dois nomes: Jerônymo Monteiro e Gumercindo Rocha Dórea. Monteiro, jornalista e editor (foi o primeiro editor do Pato Donald no Brasil, em 1950), fundou a Sociedade Brasileira de Ficção Científica em 1964 e no início da década de 1970 tornou-se editor do Magazine de Ficção Científica, edição brasileira da Magazine of Fantasy & Science Fiction norte-americana.
Monteiro publicou três livros que se encontram esgotados mas que ainda são disputados a tapa nos sebos pelos fãs: Três meses no século 81, de 1947, A cidade perdida, de 1948 e Fuga para parte alguma, de 1961. Morreu em 1970, mas antes disso um outro nome se destacaria como editor: o baiano radicado em São Paulo Gumercindo Rocha Dórea, que lançou, entre outros, nomes como Rubem Fonseca (é da editora GRD a primeira edição de O Caso Morel) e Nélida Piñon. Gumercindo bancou do próprio bolso suas edições e lançou dezenas de livros de várias temáticas, de política a ficção, com especial predileção pela ficção científica.
Nos anos 1980, Gumercindo se aproximou da nova geração que estava começando a lançar contos em fanzines (de papel, ainda não existia a Web) e se dispôs a publicar material novo, coisa que fez no mesmo esquema de duas décadas antes. Desta vez foram publicados novos autores, como José dos Santos Fernandes, Roberto Schima e Cid Fernandez, entre vários outros. Foi nesta época que surgiu o termo “Segunda Onda” para batizar essa nova geração, em contraposição, obviamente, à Primeira Onda, capitaneada por Jerônymo Monteiro e Gumercindo Rocha Dórea.
A FC e a Web
Os anos 1980 e pelo menos metade dos anos 1990 foram o tempo dos fanzines de papel, entre os quais o SOMNIUM (zine oficial do Clube de Leitores de Ficção Científica, entidade criada em 1985 por Roberto Nascimento para unir os fãs do gênero), MEGALON, criado por Marcello Simão Branco, HIPERESPAÇO, de César Silva e Renato Rosatti, e SCARIUM, de Marco Bourguignon. Destes, apenas SCARIUM fez a transição para a Web sem deixar de publicar, até hoje, seu zine em papel. Megalon e Hiperespaço optaram por encerrar as publicações sem entrar na Web. O SOMNIUM está voltando este mês, dentro do site do CLFC, somente em formato digital.
O começo do novo milênio marcou a transição definitiva para a Web. A coisa começou devagar, com um blog ou outro, e estourou mesmo por volta de 2004, quando surgiu o Orkut, ferramenta de relacionamento do Google, que permitia a criação de comunidades. Isto facilitou em muito a comunicação com pessoas do mundo inteiro (muito embora o Brasil tenha invadido de forma um tanto visigoda o Orkut, a ponto de os americanos e a maioria esmagadora dos falantes de língua inglesa simplesmente cometerem orkuticídio e partirem dessa para melhor, ou seja, o MySpace (e atualmente o FaceBook e o Twitter, mas estas últimas ferramentas estão encontrando um equilíbrio maior entre usuários do mundo todo).
Antes disso, pode-se dizer que um site se destacou mais do que os outros do gênero no Brasil: foi o portal da Intempol, um shared universe (universo compartilhado) criado por Octavio Aragão. Criada em 1998, a Intempol surgiu originalmente num conto escrito para a coletânea Outras Copas, Outros Mundos, da editora independente Ano-Luz (criada, por sua vez, por um coletivo de escritores de FC, entre os quais Carlos Orsi, Gerson Lodi-Ribeiro e o próprio Octavio Aragão). Incentivado por várias pessoas, entre os quais este escriba, Aragão decidiu fazer uma experiência inédita no Brasil: compartilhar seu universo com quem quisesse escrever histórias ambientadas nele.
Isso gerou uma coletânea de onze contos inéditos que foi lançada em 2000, além de um projeto multimídia que até hoje vem gerando ondulações no mar da ficção científica: foi criado um portal com mais contos e entrevistas com autores brasileiros e estrangeiros, um RPG (escrito a quatro mãos por Aragão e este que vos digita) ainda inédito, uma graphic novel que concorreu ao Prêmio HQMix, o “Oscar” dos quadrinhos brasileiros, e promete dar mais alguns frutos no futuro próximo, entre os quais mais uma HQ e talvez mais uma coletânea. O site sofreu um grande baque no ano passado, quando, por problemas no mainframe do provedor, todo o conteúdo foi deletado. Felizmente, a maior parte desse material estava salva, e o espaço da Intempol na Web está voltando aos poucos, temporariamente hospedado no endereço http://intemblog.blogspot.com/.
O monstro está despertando
Mas a história está longe de terminar para a FC brasileira. Graças às comunidades de Web, novos autores, que não tinham a menor ligação com o CLFC nem com os autores citados anteriormente, foram surgindo e ocupando um lugar fundamental na literatura do gênero e em suas discussões críticas. A diferença de nomes como Flávio Medeiros, Tibor Moricz, Clinton Davisson, Ivan Hegenberg, Christie Lasaitis e Ana Cristina Rodrigues, entre outros, é que a maioria destes novos nomes não só não publicou nada em fanzines, como partiu diretamente para a experiência da publicação em livro, o que está gerando um grande burburinho e debates envolvendo os grupos da chamada Segunda Onda e desta que já foi batizada como Terceira Onda.
Mas, hoje, esses rótulos parecem estar caindo por terra. A possível Terceira Onda é bem menos monolítica que a Segunda, por conter gente de todas as faixas etárias (da casa dos 20 à dos 50) e opções sexuais (heteros e gays convivem num clima agradabilíssimo, algo que ainda não tinha sido visto antes no gênero no Brasil). Essa desmistificação dos rótulos é algo parecido com o que aconteceu com a chamada Geração 90 do mainstream literário – certa vez encontrei Marçal Aquino no metrô, às vésperas do lançamento da coletânea Geração 90, da Ateliê Editorial.
Marçal estava bem contente pela publicação, mas não considerava que fizesse parte nominal da tal geração, uma vez que começara a publicar antes, no final da década de 1970, e também achava que, no fim das contas, esse tipo de rótulo até serve para reunir pessoas com interesses semelhantes, mas não muito mais que isso.
Talvez seja este o caso agora. Apesar de a FC não tratar necessariamente de futuro, os brasileiros que fazem ficção científica estão cada vez mais dispostos a esquecer o que o passado deixou de marcas ruins e amargas e encarar o futuro próximo de frente. Não um futuro utópico, mas o futuro pos