Filme debate o estado do mundo
Seis diretores aceitam desafio de organização portuguesa e produzem obra coletiva sobre o tempo em que vivemos. Contribuições enxergam crise e necessidade de mudanças, mas o fazem por meio de poesia e metáforas — exceto no caso do curta brasileiro de Vicente Ferraz…Bruno Carmelo
Uma organização portuguesa resolveu reunir seis cineastas para realizarem curtas-metragens em torno de um tema espinhoso, “o estado do mundo”. Logo de início, já se impõe a dificuldade da especificidade do projeto: o que se entende por esse conceito? Como em outros filmes episódicos, os temas muito abrangentes como Paris (Paris, Eu Te Amo) ou o erotismo (Eros) geralmente resultam obras que parecem insuficientes perto da grandeza da proposta.
No caso, pela (coincidente?) escolha de cineastas provindos de países de terceiro mundo (Brasil, China, Índia, Tailândia), o projeto parecia encaminhar-se para rumos claramente ideológicos, direcionado para a denúncia social e para o retrato das minorias.
O resultado, no entanto, mostra como cada realizador compreendeu a proposta de modo completamente diferente; e como cada um criou artifícios para escapar ao confronto direto com o tema. Exceto o filme brasileiro de Vicente Ferraz (diretor de Soy Cuba), que decidiu atacar diretamente as mazelas terceiro-mundistas, todos os outros buscaram saídas minimalistas ou poéticas.
Este filme brasileiro, intitulado Germinal, expõe a história de pescadores cariocas frente à falta de trabalho. Com uma imagem estranhamente estilizada (cores vibrantes, que conferem ao curta um aspecto irreal, fantástico), ele mostra essas pessoas que choram, xingam e reclamam com todas as palavras seus problemas. Fica clara uma certa brasilidade de tentar verbalizar todas as sensações, e atribuir culpa à um poder sem rosto. Xinga-se tudo e todos, nessa revolta tão típica de conversas de bar, nas quais não se busca compreender as complexidades cenário político. A culpa é do poder.
Por outro lado, o diretor português Pedro Costa retrata a difícil vida de cabo-verdianos expulsos de Portugal e forçados a voltar para seu país de origem. Mesmo que clarame inteinteressado na sensibilização do público, ele mantém- se sempre afastado dos personagens e, por meio de planos fixos, observa-os enquanto caminham e conversam pelas casas paupérrimas.
“Onde está o “estado do mundo” nessa dança de grãos, ondas e sons? ”
No curta indiano, quae não há palavras — só tristeza. No tailandês, estranha granulação faz referência à morte
Em chaves mais moderadas, o curta-metragem indiano mostra a rotina de um porteiro. Quase não há palavras, mas a tristeza dessa vida rotineira sem perspectivas de ascensão contamina toda a obra e deixa um gosto triste de poesia do real.
Dois extremos ficam por conta dos curtas chinês e tailandês. O primeiro é brutal e faz referência ao período de ditadura comunista, enquanto o segundo, no pólo onírico, é assinado por Apichatpong Weerasethakul, diretor que sempre recusou o panfletarismo político, e que não faz diferente neste caso.
Através de uma família que joga as cinzas de um parente em pleno mar, o diretor faz um curta experimental, próximo da vídeo-arte, no qual a granulação exagerada da película confunde- se com o ritmo das ondas, e os planos muito próximos chegam à própria materialidade do suporte e afastam- se do que esse material representa, de modo que as formas e os objetos não sejam mais reconhecíveis.
Onde está o “estado do mundo” nessa dança de grãos, ondas e sons? Talvez no velório como símbolo de indiferença perante à morte (não há grande emoção entre os parentes do falecido), ou talvez ainda da morte de uma certo tipo de cinema, mais próximo da experimentação, da poesia e da liberdade de formas.
Contribuição francesa foca a China e alterna plano fixo com imagens publicitárias em seqüência, das quais não se pode escapar
No entanto, sobre o questionamento da imagem, o fantástico curta final vem elevar o nível do filme e finalizá-lo com seu segmento mais complexo. Feito ironicamente pela única cineasta vinda de uma país rico, a francesa Chantal Akerman, ele retrata uma primeira viagem da diretora a Pequim, e é construído com uma simplicidade impressionante. Embora alguns poucos planos iniciais situem a localidade e, acima de tudo, o ritmo contemplativo, é uma imagem única que vai se fixar e se encarregar de transmitir toda a mensagem da diretora e todo o tema do “estado do mundo”.
Neste plano fixo de mais de dez minutos (ver foto), são mostradas dois grandes prédios chineses no cair no dia. Assim que a noite se estabelece por completo, essas construções se transformam em lugares de projeções de imagens publicitárias. Logo, vemos propagandas de roupas, de produtos alimentícios, de programas de televisão, e mesmo de quadros famosos. A trilha sonora, igualmente insólita, varia sobre o tema do pop e da reapropriação, com músicas remixadas (incluindo um inesperado I Will Survive em ritmo de salsa).
A intensidade das imagens projetadas (a rápida sucessão das projeções, a trilha incoerente) contrasta imediatamente com esse plano fixo do curta-metragem, que não apresenta nenhum discurso explícito e que não possui um diálogo sequer.
Entretanto, é nessa abordagem inusitada que se explicita a sobrecarga contemporânea de imagens e a impossibilidade de escapar de sua influência. Esta é uma obra cinematográfica que força o espectador a assistir à televisão, justamente porque nenhuma outra alternativa é oferecida, não há outros pontos de ação para se olhar. Somos prisioneiros de uma projeção indesejada.
Esse curta inteligentíssimo completa, por fim, a impossibilidade de se delimitar esse “estado do mundo”. Enquanto ele se dedica a investigar o próprio poder do cinema, outro filme acusa os problemas econômicos, outro mostra as dificuldades sociais, outro faz apelo à história. Independentemente do mundo retratado, ele está em crise, dotado de faltas e excessos, de inadequações e desigualdades. Em níveis diferentes de engajamento e de proximidade com a proposta, os seis curtas vêem o mundo pelo que eles gostariam que ele fosse e pela urgência de mudanças.
O Estado do Mundo (2008)
Filme coletivo de Apichatpong Weerasethakul, Vicente Ferraz, Wang Bing, Pedro Costa, Ayisha Abraham e Chantal Akerman.
Produção de Lx Filmes (Portugal).
Duração de 1h45.
Veja:
Fotos
Vídeo
Mais:
Bruno Carmelo assina a coluna Outros Cinemas. Também mantém o blog Nuvem Preta, onde resenha e comenta outros filmes. Edições anteriores da coluna:
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