Filmes órfãos na Cinemateca
Mostra Cinelimite exibe pela primeira vez em salas de cinema mais de 40 filmes recém-digitalizados
Em maio de 1985, foi enviado à Embrafilme o Manifesto das Cineastas, uma carta histórica que reivindicava mais apoio para a produção de filmes de mulheres para cinema e televisão, maior exibição desses filmes, capacitação técnica para mulheres em diversos setores da indústria e publicações comprometidas com a análise, pesquisa e inventário do cinema feminino, entre outras coisas. Os livros de história do cinema brasileiro mostram que as reivindicações não foram atendidas da forma como as cineastas gostariam, e grande parte delas tiveram seus filmes esquecidos ou destruídos pela negligência de outros tempos.
Essa história oficial do cinema brasileiro é repleta de buracos. Sem uma política de Estado voltada para a preservação e a restauração audiovisual, inúmeros rolos de filme se perdem a cada ano, e com eles é destruída a memória de uma outra história do cinema nacional, construída por mulheres e membros das comunidades LGBTQ+ e PPI. É com o objetivo de resgatar essa cinematografia marginalizada que a Cinemateca Brasileira organiza a Mostra Cinelimite, que exibe pela primeira vez em salas de cinema os filmes digitalizados pela Iniciativa de Digitalização de Filmes Brasileiros (IDFB).
Entre outubro de 2022 e janeiro de 2023, a IDFB realizou a Digitalização Viajante, a primeira iniciativa de digitalização itinerante do país. O objetivo do projeto era descentralizar e democratizar a preservação da memória audiovisual brasileira, saindo do eixo Rio-São Paulo em busca de filmes até então inacessíveis. Esses “filmes órfãos” incluem produções das comunidades LGBTQ+, PPI e por mulheres, além de filmes caseiros e não-comerciais.
O pôster da Mostra Cinelimite é ilustrado por uma imagem que reflete o estado de grande parte dos filmes encontrados durante a Digitalização Viajante: a imagem vem de “Banguê” (1978), o primeiro filme da documentarista Katia Mesel, cujo estado de degradação representa a importância da preservação dos filmes brasileiros, sobretudo de mulheres, que são protagonista do primeiro programa da mostra.
Mestras do Cinema Documental Brasileiro
Em quatro sessões de cinema, o programa “Mestras do Cinema Documental Brasileiro” exibe curta-metragens de Helena Solberg, Eunice Gutman, Katia Mesel e Elisa Cabral, documentaristas que desafiaram a censura e a falta de recursos e fizeram de seus filmes manifestos políticos que reforçam a presença da mulher em diferentes instâncias da sociedade, seja na luta política, nas fábricas ou dentro de casa.
Histórias como a de “Banguê” não são raras entre filmografias de mulheres brasileiras, e as complicadas histórias de preservação dos títulos a serem exibidos refletem uma história mais longa do cinema de mulheres, que tem sido negligenciado no Brasil. Matheus Pestana, diretor associado da Cinelimite, reflete: “Quando pensamos em mulheres no cinema, é muito comum tentarmos colocá-las como ‘a primeira’ a fazer tal coisa, ‘a única’ que participou de tal movimento. A ausência é tão grande que precisamos dar esses títulos para mostrar a importância dessas realizadoras. Nosso objetivo com esse programa é chamar atenção para o fato de que mulheres cineastas sempre estiveram aí fazendo filmes, a nossa história só não deu conta, esqueceu ou negligenciou muitas delas. O trabalho de descobrir, preservar e divulgar essas obras nunca vai terminar, é um exercício constante porque a forma que a História é contada está sempre em disputa.”
Um dos destaques da mostra é o filme “Mulheres: uma outra história”, de Eunice Gutman. O filme – que será exibido ao lado de outros dois curtas da diretora nesse sábado (20) – acompanha as mulheres que participaram da Assembleia Nacional Constituinte, mostrando figuras que se tornaram algumas das lideranças políticas mais influentes da história do país, como Jandira Feghali e Benedita da Silva, uma das poucas representantes negras na política do país na época. Signatária do Manifesto das Cineastas, Eunice Gutman co-dirigiu mais de 20 filmes, mas, assim como as 23 deputadas que conseguiram a aprovação da maior parte de suas propostas para a Constituição brasileira, seu nome raramente é citado em análises do cinema nacional.
O mesmo é verdade para Katia Mesel, cujos filmes se distanciam geograficamente dos outros que o acompanham no programa: nascida em Recife, a diretora se interessou em documentar o nordeste. Um destaque de sua prolífica filmografia – Mesel dirigiu mais de 30 filmes, incluindo curtas em Super-8, 16mm, 35mm e digital – é “Sulanca” (1986), que se volta para as mulheres de Santa Cruz do Capibaribe para explorar as alterações nas dinâmicas econômicas da cidade geradas pelas costureiras independentes que transformaram a cidade em referência na produção têxtil nacional.
Fugindo do eixo Rio-São Paulo
No entanto, mesmo quando o tema são as mulheres do cinema brasileiro, o nome de Mesel raramente é incluído, dada a centralização dos recursos audiovisuais no eixo Rio-São Paulo, outro aspecto que a Mostra Cinelimite busca enfrentar: “A Cinelimite sempre quis se concentrar em filmes brasileiros menos conhecidos, e isso necessariamente significou conhecer obras feitas fora do eixo Rio-São Paulo. Mesmo antes da Digitalização Viajante, que percorreu vários estados brasileiros, já havíamos feito programas dedicados a filmografias regionais. Nossa missão é dar prioridade a filmes órfãos,” define Matheus Pestana.
É com esse foco que a mostra inclui os programas “Retrospectiva Amin Stepple” e “A Onda de Filmes Queer em Super-8 da Paraíba”. O primeiro destaca a obra do jornalista, crítico, roteirista e diretor Amin Stepple Hiluey, que marcou profundamente o cinema experimental no Nordeste do Brasil ao longo das décadas de 1970 e 1980, enfrentando a ditadura militar com curtas como “Robin Hollywood” e “P.S. um beijo”.
O segundo, que foca no movimento cinematográfico paraibano da década de 1960 à década de 1980, explora a introdução pioneira da discussão LGBTQIA+ pelo cinema amador de João Pessoa. Ainda durante a ditadura militar, o primeiro coletivo LGBTQIA+ registrado na região foi formado em João Pessoa, por estudantes da UFPB, um dos grupos que começaram a promover, a partir de 1981, a discussão da sexualidade no cinema regional.
A programação completa da mostra, que ocorre entre 19 e 18 de maio, está disponível no site da Cinemateca, e inclui, além dos curtas, a exibição do longa-metragem “A Rainha Diaba”, de Antônio Carlos da Fontoura. Estrelando Milton Gonçalves, o filme de 1974 conta a história de uma travesti negra que controla o comércio de maconha no Rio a partir de seu bordel na Lapa. Digitalizado pela Cinelimite, o filme que driblou a censura durante a ditadura militar agora corre o mundo, tendo surpreendido audiências no 73º Festival de Cinema de Berlim, na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no 20º Festival Internacional de Cinema IndieLisboa e, agora, “traz seu baile de carnaval” para a Cinemateca Brasileira.
Carolina Azevedo faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.