Não tem tradução – dois mundos do Fluminense na final da Libertadores
Torcida que protegeu Chico Buarque durante a chegada ao Rio na ditadura é a mesma que conviveu com manifestações de extrema direita de jogadores. Leia no novo artigo da série Entrementes: futebol, política e cultura popular
A fleuma do Fluminense Football Club é exuberante: se manifesta até no próprio nome, que conserva a língua inglesa do período anterior à popularização do futebol. O idioma, sem expressões próprias para termos como golpe de Estado ou burguesia, preserva a pretensa sofisticação da aristocracia e a empresta ao time das três cores do Rio de Janeiro. Ao entrar no transe da cultura popular até o mais requintado dos clubes cariocas, no entanto, está sujeito a subversões. E é a experiência de Chico Buarque que reforça isso.
Faça barulho quando voltar, é a melhor forma de estar seguro – recomendou Vinicius de Moraes, de acordo com relatos da época. A sugestão foi endereçada ao filho de seu amigo Sérgio Buarque de Hollanda, que depois de escapar da perseguição imposta pelo Ato Institucional Número Cinco (AI-5), resolveu voltar para o Brasil. Às vésperas de gravar o magnum opus Construção, o compositor precisava ser notado ao desembarcar no país. O risco era seguir sua rotina no Rio de Janeiro e ser capturado pela repressão. Com alguma comoção, seria difícil preservar o silêncio em torno de uma eventual prisão.
Paulinho da Viola foi ao aeroporto receber Chico Buarque. Os conjuntos MPB-4 e Trio Mocotó também. A presença mais espantosa foi a de tricolores: a Torcida Jovem compareceu com um bandeirão do clube para receber aquele que seria seu torcedor-símbolo. Depois de mais de um ano fora do país, o cantor conseguiu mobilizar as atenções para a sua chegada e marcar posição perante a mudez que pairava no regime. Apesar da tensão que marcou o princípio dos anos 1970, reuniu uma equipe com o maestro Rogério Duprat e o produtor Roberto Menescal para criar o próximo álbum.
A virada para a nova década registrou a consolidação de novas formas de torcer na cidade e no país. As torcidas jovens se opunham ao modelo guiado por marchinhas, que acompanhou o futebol até a metade do século. Os acontecimentos políticos e os interesses comerciais, com destaque para a juventude, alimentavam as emergentes organizadas desde os anos 1960. Explodiu o número de novas organizações, grandes, médias ou pequenas, que nesse período passaram a frequentar os estádios e levar bandeiras para marcar território. Foi a partir disso que se reuniram multidões em torno das atuais uniformizadas.
A chegada ao Brasil em março de 1970 é um marco para a relação entre futebol, política e cultura popular. No momento que a Torcida Jovem se oferece para a proteção de um dos alvos do regime – o compositor da proscrita “Apesar de Você” –, é contida a atmosfera requintada da tradição mais elitizada do Fluminense. É a essa ruptura que o clube recorre ao lançar em 2023 uniforme em homenagem ao sambista Cartola. O músico nem pertence ao imaginário da zona sul, nem se assemelha às influentes famílias que ao longo das décadas circularam pelas dependências da sede nas Laranjeiras.
Os elementos do clube, as canções da torcida e as notícias sobre jogos ou atletas circulam pela cultura popular. É isso que torna o futebol quase incontrolável politicamente. A dificuldade de manejá-lo na direção de projetos ditatoriais, entretanto, não impede que autoridades experimentem diferentes tentativas. Os recentes exemplos da retomada dos campeonatos profissionais durante o período de isolamento social e das cerimônias de entrega de troféus que pretendiam promover políticos reforçam essas iniciativas. Contudo, o riso, a carnavalização e falta de formalidade caminham na direção oposta.
A Torcida Jovem do Fluminense não teve vida longa, foi uma formulação que partiu muito da classe artística e não permaneceu à beira dos gramados para apoiar o time. Caso diferente é o da Young Flu, criada no ano do desembarque e até hoje em atividade: grandes contingentes se identificam essa organizada, responsável simultaneamente pela festa na arquibancada e por manchetes policiais. A emergência desse novo fenômeno, contudo, não estava ligado às brigas entre torcedores de diferentes clubes. É a violência política contra a juventude que ajuda a explicar o que acontecia.
A profusão de torcidas pode ser lida como uma expressão da juventude na vida pública, em período de supressão de liberdades individuais. O ato é simbólico por esse motivo: Chico Buarque, ainda na casa dos 20 anos, é recebido por seus pares, apaixonados pelo mesmo time e representantes da mesma geração. A cisão na nobreza que ronda o Fluminense se dá em um momento crucial – o que não é o mesmo que dizer que o acontecimento anula o histórico de associações do clube com inclinações ao autoritarismo, ao racismo ou à intolerância. São dois mundos à primeira vista incomunicáveis.
Das fotos com a camisa tricolor do general Figueiredo, presidente da República na ditadura, à exclusão de jogadores negros no começo do futebol no país, o clube convive com um legado que também nesse sentido é determinante. O episódio transgressor com o compositor e esse histórico não se anulam. Essas diferentes propostas de clube estarão em disputa também na final da edição deste ano da Copa Libertadores, contra o Boca Juniors. A possível conquista inédita do torneio continental pode receber diferentes significados, a depender do desenrolar dos acontecimentos.
No elenco tricolor consta, por exemplo, o defensor Felipe Melo. Talvez seja o maior defensor de Jair Bolsonaro na comunidade esportiva. No seu antigo clube, o jogador dedicou um gol ao representante da extrema direita, ainda durante a vitoriosa campanha presidencial em 2018. No ano seguinte o gesto se repetiu e na corrida eleitoral de 2022 o atleta manteve seu apoio público ao candidato derrotado. Na lista de presentes recebidos pelo então presente há outro ambíguo sinal de apoio. O meia Paulo Henrique Ganso autografou duas camisas especialmente para o ex-presidente.
Na decisão da Libertadores, no Maracanã, estarão em jogo novamente essas disputas sociais. É possível que o caráter mais democrático se sobreponha, a despeito de parte considerável dos jogadores profissionais ainda nutrir admiração velada ou pública por Bolsonaro. Ainda que depois da gestão da pandemia e dos seus consecutivos apelos por golpes de Estado – justamente esse termo que precisa se remeter à expressão francesa coup d’état para ter algum sentido em língua inglesa. Não tem tradução.
Em tempo: Chico Buarque acabou de lançar nova versão de “Meu Guri” pela Biscoito Fino. Vale a pena escutar.
Helcio Herbert Neto é doutor em História Comparada (UFRJ), mestre em Comunicação (UFF), formado em Jornalismo (UFRJ) e em Filosofia (UERJ).
Que texto tendencioso.
Infelizmente teu clubismo falou mais alto. Flamengo foi o símbolo da extrema direita em todo período da do mandato do ex presidente.