Fluxos de capitais para países em desenvolvimento: volatilidade exacerbada na pandemia
Nesta nova fase de integração internacional no contexto de uma globalização financeira assimétrica, a exposição dos países em desenvolvimento a fluxos de portfólio voláteis e pró-cíclicos e ao ciclo financeiro global se ampliou. Não apenas as economias emergentes enfrentaram novos canais de transmissão desses ciclos e novas fontes de vulnerabilidade externa, como várias economias de baixa e média renda começaram a encontrar alguns dos desafios que essa integração representa para a gestão macroeconômica, a vulnerabilidade externa e a estabilidade financeira. Veja novo artigo do Observatório da Economia Contemporânea
Após a Crise Financeira Global de 2018 (CFG), surgiu uma nova fase de integração dos países em desenvolvimento na globalização financeira assimétrica, na qual sua exposição aos fluxos voláteis e pró-cíclicos de portfólio e aos ciclos financeiros globais (com co-movimento das condições financeiras globais e domésticas em todos os países) aumentou. Enquanto as economias emergentes – países em desenvolvimento de renda relativamente alta que aderiram à globalização financeira nos anos 1990 – enfrentaram novos canais de transmissão desses ciclos e novas fontes de vulnerabilidade externa, alguns países em desenvolvimento de baixa e, principalmente, de renda média se integraram aos mercados internacionais de capitais, mediante a emissão de títulos soberanos e da abertura de seus mercados acionários pouco profundos para não residentes, tornando-se economias de mercado de fronteira (frontier-market economies). Tais economias começaram a enfrentar os vários desafios que a integração financeira internacional acarreta para a gestão macroeconômica, fragilidades financeiras e redução da autonomia de política monetária e fiscal.
Duas tendências principais caracterizam essa nova fase. Em primeiro lugar, a expansão dos balanços externos das economias emergentes ganhou impulso. No lado do passivo, os gestores de ativos dos países desenvolvidos aumentaram sua participação nos mercados domésticos de títulos soberanos. A elevação da dívida pública denominada em moeda local mitigou o descasamento da moeda no balanço patrimonial dos governos dessas economias, reduzindo a vulnerabilidade à volatilidade da taxa de câmbio, mas frequentemente criando descasamentos de maturidade (dado o menor prazo de vencimento dos títulos soberanos domésticos em comparação com os emitidos no mercado internacional) e deslocando o descasamento de moedas para os balanços patrimoniais dos credores que possuem ativos na moeda doméstica da economia emergente, mas têm obrigações na moeda de seu país. Como o episódio de saída de fluxos de portfólio de março de 2020 mostrou, no auge da crise de Covid-19, a fuga de capitais dos mercados domésticos de títulos soberanos desencadeou uma amplificação e retroalimentação mútua de depreciações de moeda e elevações bruscas nos spreads soberanos que contaminaram os custos de amortização da dívida em moeda estrangeira e os riscos de refinanciamento dos tomadores privados (Hofmann et al. 2020).
Em segundo lugar, os investidores globais têm confiado cada vez mais em fundos geridos de forma passiva ou com base em benchmarks – que seguem um índice de referência com pesos específicos para uma lista pré-definida de países e títulos (por exemplo, JP Morgan EMBI) – para investir em economias emergentes e de fronteira. Esses fundos são mais correlacionados entre países e reagem com maior intensidade e rapidez a mudanças nas condições monetárias e financeiras globais, reforçando o comportamento de rebanho (herd behavior) de investidores de portfólio (Miyajima e Shim, 2014; Raddatz et al., 2017). Consequentemente, a influência dos “fatores externos” (push factors) e o movimento comum dos fluxos de portfólio entre países em desenvolvimento aumentaram, tornando-os ainda mais expostos a mudanças inesperadas naquelas condições.
A expansão e as mudanças na composição dos passivos e ativos externos das economias emergentes ampliaram a suscetibilidade dos ativos e passivos externos brutos e das posições líquidas dos ativos externos às variações nos preços dos ativos e das taxas de câmbio, implicando grandes transferências de riqueza e renda das economias emergentes para economias avançadas (Akyuz, 2021).
Esse novo nível e perfil de integração dos países em desenvolvimento na globalização financeira moldou o padrão dos fluxos de portfolio de não residentes para economias emergentes e de fronteira desde o início da pandemia de Covid-19: (i) fluxos recordes de saída de capitais em março de 2020 desencadearam enormes depreciações cambiais e aumentaram os spreads de crédito, mas com maior intensidade para emissores de baixa classificação das frontier-market economies; (ii) na esteira das políticas monetárias historicamente frouxas nos países desenvolvidos e da recomposição de carteira de fundos baseados em benchmarks, recuperação nos fluxos de entrada de capitais para economias emergentes a partir de abril de 2020 – mas de forma desigual, se direcionando inicialmente para as economias emergentes com melhor classificação de risco de crédito e somente nos últimos meses do ano para algumas economias de fronteira; (iii) nova onda de saídas de capital no primeiro trimestre de 2021, provocando desvalorizações cambiais e aumento dos spreads soberanos, como reflexo do aumento das taxas de juros de longo prazo nos Estados Unidos (UNCTAD, 2021a; IMF, 2021).
Desde o início da pandemia de Covid-19, assim como na onda de entrada de capitais após a CFG, os investimentos de portfólio altamente voláteis de não residentes juntamente com investimentos diretos estrangeiros (IDE) foram os principais motores dos fluxos líquidos de capitais para os países em desenvolvimento – a diferença entre as entradas líquidas de capitais (variação no passivo externo líquido de não residentes) e as saídas líquidas de capitais (variação no ativo externo líquido dos residentes) (ver gráficos). A queda no IDE em 2020 foi particularmente forte para as economias desenvolvidas, mas o IDE nas economias em desenvolvimento diminuiu apenas 8%, principalmente por causa da resiliência dos fluxos de capitais para a Ásia, em especial para China e Índia (UNCTAD, 2021b).
Embora as saídas de capitais não sejam significativas para a maioria dos países em desenvolvimento, no caso de algumas economias emergentes da América Latina e, principalmente, da Ásia, a expansão dos balanços externos na última década envolveu a formação não só de reservas internacionais, mas também de outras modalidades de ativos externos, como investimento direto e de portfólio no exterior e depósitos bancários (Akyüz, 2021). Consequentemente, a dinâmica dos fluxos líquidos de capitais para esses países também se tornou cada vez mais moldada pelas saídas líquidas de capitais.
Isso explica por que os fluxos líquidos de capitais para países em desenvolvimento foram negativos entre o segundo trimestre de 2020 e o primeiro trimestre de 2021, apesar da recuperação dos fluxos líquidos de entrada de não residentes. Os fluxos líquidos de capitais negativos da China responderam à maior parcela do total (ver gráficos). Embora esse país tenha sido o principal destinatário dos investimentos de portfólio líquidos e dos investimentos diretos líquidos nesse período – ou seja, as entradas de portfólio de não residentes e o IDE foram muito maiores que os investimentos de portfólio chineses e os investimentos diretos no exterior –, as saídas líquidas ultrapassaram as entradas líquidas de capital em razão das expressivas saídas líquidas em “outros investimentos” associadas ao aumento dos depósitos de empresas e bancos no exterior, aos empréstimos bancários no exterior e, em menor escala, aos créditos e adiantamentos comerciais (UNCTAD, 2021b).
A partir de abril de 2021, os fluxos de portfólio para as economias emergentes e de fronteira se recuperaram novamente, estimulados pela retomada da economia global, pelo aumento do apetite ao risco (após os investidores globais incorporarem nas suas projeções o início da fase de alta da taxa de juros básica dos Estados Unidos em 2023, confirmado na reunião do Fed em junho) e pelas oportunidades de carry-trade na esteira da elevação das taxas de juros básicas em algumas economias emergentes para enfrentar as pressões inflacionárias associadas ao aumento dos preços das commodities e às desvalorizações cambiais. A retomada beneficiou, sobretudo, os títulos de renda fixa emitidos no mercado internacional de capitais, abrindo espaço inclusive para colocações soberanas de economias de fronteira com baixa classificação de risco de crédito (IMF, 2021b). Os fluxos de portfólio em ações também se recuperaram, mas num ritmo menor, enquanto os investimentos nos mercados domésticos de títulos soberanos continuaram deprimidos. No entanto, o contexto global ainda é muito incerto, como destaca o FMI no seu Panorama da Economia Global de outubro (IMF, 2021c), e uma nova fase de saída de capitais poderá voltar a qualquer momento.
Concluindo, nesta nova fase de integração internacional no contexto de uma globalização financeira assimétrica, a exposição dos países em desenvolvimento a fluxos de portfólio voláteis e pró-cíclicos e ao ciclo financeiro global se ampliou. Não apenas as economias emergentes enfrentaram novos canais de transmissão desses ciclos e novas fontes de vulnerabilidade externa, como várias economias de baixa e média renda começaram a encontrar alguns dos desafios que essa integração representa para a gestão macroeconômica, a vulnerabilidade externa e a estabilidade financeira.
Referências bibliográficas
Akyüz, Y. (2021). “External balance sheets of emerging economies: low yielding assets, high-yielding liabilities”. Review of Keynesian Economics, 9 (2): 232-252.
IMF (2021a). Global Financial Stability Report. Washington, D.C: International Monetary Fund, abril.
IMF (2021b). Global Financial Stability Report. Washington, D.C: International Monetary Fund, outubro.
IMF (2021c). World Economic Outlook. Washington, D.C: International Monetary Fund, outubro.
Miyajima, K. e I. Shim (2014). “Asset managers in emerging market economies”, BIS Quarterly Review, September.
Raddatz, C., Schmukler, S.L e Williams, T.S. (2017). “International asset allocations and capital flows: The benchmark effect”. Journal of International Economics, 108 (C): 413–30.
UNCTAD (2021a). Trade and Development Report: from recovery to resilience: the development dimension (United Nations Sales No. E.22.II.D.1, Geneva).
UNCTAD (2021b). World Investment Report 2021. Investing in a Sustainable Recovery (United Nations Sales No. E.21.II.D.13, Geneva).
Daniela Magalhães Prates é economista sênior da UNCTAD e professora associada (afastada) do IE/Unicamp.
Luiz Fernando de Paula é professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do GEEP/IESP-UERJ.
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O Observatório da Economia Contemporânea tem como foco a discussão da economia nas suas várias dimensões; estrutural e conjuntural, empírica e teórica, internacional e doméstica. Sua ênfase, porém, será na política econômica, com acompanhamento aprofundado da conjuntura internacional e da economia brasileira no governo Bolsonaro. Fazem parte do Observatório, economistas e cientistas sociais, professores e pesquisadores de diversas instituições, listados a seguir: Alex Wilhans, Alexandre Barbosa, André Calixtre, André Biancarelli, Angelo Del Vecchio, Antonio Correa de Lacerda, Bruno De Conti, Carolina Baltar, Claudio Amitrano, Claudio Puty, Clelio Campolina, Clemente Ganz Lúcio, Cristina Penido, Daniela Prates, David Kupfer, Denis Maracci Gimenez, Elias Jabbour, Ernani Torres, Esther Bermeguy, Esther Dweck, Fabio Terra, Fernando Sarti, Giorgio Romano, Guilherme Magacho, Guilherme Mello, Isabela Nogueira de Moraes, Ítalo Pedrosa, João Romero, Jorge Abrahão, José Celso Cardoso, José Dari Krein, Luiz Fernando de Paula, Luiz Gonzaga Belluzzo, Marcelo Manzano, Marcelo Miterhof, Marcos Costa Lima, Marta Castilho, Maryse Farhi, Nelson Barbosa, Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Barros, Ricardo Carneiro, Tânia Bacelar e William Nozaki.