Formas de engajamento
Da Rússia revolucionária à Paris dos anos 1930-1960, a trajetória de Nadia Léger ilustra as grandes questões estéticas colocadas na primeira metade do século XX aos artistas engajados: abstração ou figuração? Quais meios utilizar para inscrever a arte em todas as manifestações da vida? Ela deve ser posta a serviço de uma causa? Como?
Poucos dias antes da Fête de L’Humanité de 13 a 15 de setembro passado, houve um evento singular na Artcurial, uma casa internacional de leilões localizada em uma rotatória conhecida como Rond-Point des Champs-Élysées, em Paris. Recepcionado por canções revolucionárias e anfitriões vestidos como membros da organização de jovens comunistas Pioneiros Soviéticos, um grande número de curiosos se acotovelava na inauguração de uma exposição de pinturas de Nadia Léger (1904-1982) e no lançamento de sua monumental biografia ricamente ilustrada,1 coordenada por Aymar du Chatenet, editor do Petit Nicolas. “Nadia, a comunista” teria gostado de saber que suas telas mostrando mineiros e revolucionários menos importantes foram objeto de uma mise-en-scène na DAU?2 Obviamente não. Há poucos anos, seu Lénine Aéroflot desafiava as lojas luxuosas da avenida.
A obra reúne toda a documentação possível sobre essa artista pouco conhecida, se não desconhecida, que assinava seus trabalhos não só como Nadia Léger (ela se casou com o pintor Fernand Léger em 1952), mas também (e anteriormente) Nadia ou Nadiejda Khodossievitch, Wanda Nadzieja Chodasiewiczowna, Nadia Grabowska, Wanda Chodasiewitch-Grabowska, Nadia Grabowski, N. Khoda etc. Múltiplas identidades às quais se somam seus nomes de sua época de resistente durante a ocupação – Georgette Paineau – e de esposa de Georges Bauquier, seu terceiro marido.
Nadia Khodossievitch nasceu na Bielo-Rússia e tinha 13 anos de idade quando sua família fugiu dos combates e da penúria da Primeira Guerra Mundial e se refugiou em Beliov, perto de Tula (Rússia central). Lá, ela fez cursos no Palácio das Artes, criado pelo novo governo soviético, e teve de ir embora sozinha, aos 15 anos de idade, para Smolensk, onde foram abertos Ateliês Nacionais Superiores de Belas-Artes. Nessa cidade, teve dois encontros decisivos: com Władysław Strzemiński, que dava aulas com sua esposa, Katarzyna Kobro, e, em seguida, com Kasimir Malevitch, convidado pelo casal para fazer conferências. Ele tinha estudado com Strzemiński nos Ateliês Livres do Estado em Moscou.
Em 1919, quando explodiu o conflito entre a Rússia soviética e a Polônia, Malevitch se dirigiu a Vitebsk, para onde tinha sido convidado por Marc Chagall, comissário de belas-artes para o governo daquela cidade desde 1918. Strzemiński, polonês nascido russo, por sua vez, deixou Smolensk e foi para Vilnius (a Lituânia era aliada dos soviéticos), enquanto Nadia Khodossievitch seguiu para Varsóvia. Ela frequentou as Belas-Artes e espalhou entre os estudantes o “bacilo” do suprematismo, que tenta contestar a figuração por meio de uma redução formal e colorida tendendo ao imaterial. Lá, ela conheceu um jovem pintor, Stanislas Grabowski, com quem se casou em 1924. Convencidos de que deveriam ir a Paris para desfrutar da Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas em 1925, ambos expuseram na galeria de arte contemporânea do Boulevard Raspail em 1926. Frequentaram depois a Academia Moderna, dirigida por Fernand Léger e Amédée Ozenfant, que recebia alunos de todas as origens.
Mais tarde, Nadia Khodossievitch diria que tinha ficado encantada em Smolensk, mas também desapontada, pois, em 1919 e 1920, as vanguardas soviéticas preconizavam o abandono da pintura feita com o uso do cavalete e a expansão da arte no espaço social, com objetos do cotidiano, com a prensa, com cartazes e com a arquitetura. Foi a leitura de uma revista que a levou para Paris: a L’Esprit Nouveau, de Le Corbusier e Amédée Ozenfant, que abriu um espaço em que conciliava as artes e a vida moderna em todas as suas manifestações (pintura, escultura, cinema, urbanismo, esportes, engenharia, ciências…). Fernand Léger foi a figura marcante desse movimento na área das artes plásticas, com suas obras “mecânicas”, composições inspiradas em peças de máquinas (hélices, engrenagens, pistons) que o conduziram para o lado da abstração. Antes de trabalhar com Léger, a jovem pintora estava ao lado de Ozenfant e do movimento purista – que queria superar o cubismo, impulsionando o tratamento dos objetos em direção à abstração. Ela criou uma revista, L’Art Contemporain (três números entre 1929 e 1930), com o poeta polonês Jan Brzekowski, cofundador, com Strzemiński, do Grupo a.r. (de “artistas revolucionários”). Como seu compatriota, o “divulgador” Ilya Ehrenbourg,3 que, como ela, conservava sua nacionalidade soviética ao mesmo tempo que residia na França, Nadia Khodossievitch criou laços entre os grupos artísticos europeus, particularmente na Polônia. Ela favoreceu, assim, os intercâmbios entre os grupos Abstração-Criação, Círculo e Quadrado, Arte Concreta, que iriam enriquecer a coleção de arte contemporânea de Łódź, organizada por Strzemiński.
Foi no Ateliê Léger que Nadia Khodossievitch realizou um de seus gestos artísticos determinantes. Restam poucos vestígios de seus trabalhos anteriores, e os de seu período de suprematista mostram como ela era uma aluna aplicada. Além disso, as pistas que retomam temas suprematistas nas décadas de 1960 e 1970 são meio confusas e, às vezes, mostram alguns quadros com datas anteriores ou refazem os que estavam perdidos. A cor na época não era calma e pura – como Léger preferia –, mas mosqueada. Suas composições planimétricas e seus esboços de formas não geométricas é que iriam dar início a um caminho mais original, que irrigaria uma boa parte de seus trabalhos posteriores, inclusive aqueles de sua volta ao realismo e até mesmo ao realismo socialista.
Acima de tudo, porém, ela iria aceitar superar a pintura com uso do cavalete – exatamente o que ela deplorava em Smolensk. Fernand Léger não parou de pintar durante toda a vida, mas também não parou de praticar algumas “saídas”, como o mural, a integração à arquitetura, a ilustração, cenários e figurinos de teatro e cinema. Por sua vez e de sua maneira, Nadia Khodossievitch acabou optando pela expansão por meio dos debates sobre a arte social e a questão do realismo, que explodiram nos anos 1930 e 1950. O Ateliê Léger, espaço de trabalho coletivo, tornou-se o lugar em que essas mudanças se misturam.
Os afrescos monumentais, os murais, de cerâmica ou mosaico, até mesmo tapeçarias e, mais ainda, os “murais fotográficos”4 constituem uma parte importante e um pouco renegada da história da arte do século XX.5 Essas práticas, esplendidamente ilustradas pelos muralistas mexicanos (Diego Rivera, David Siqueiros…), desempenharam um papel decisivo nas relações entre arte e política, arte e sociedade, seja nos Estados Unidos na época do New Deal, quando o Estado fez milhares de encomendas para os artistas, ou no breve período da Frente Popular na França. Assim, por ocasião da Exposição Internacional de 1937 em Paris, Léger, Charlotte Perriand, Lucien Mazenod e Le Corbusier conceberam imensas fotomontagens para alguns pavilhões. No Ateliê, sob a direção de Nadia Khodossievitch e de Bauquier, os alunos (entre eles, Asger Jorn, que foi do movimento Cobra e da Internacional Situacionista) trabalharam nas obras encomendadas para a abertura do Palais de la Découverte em 1937, como Le Transport des forces, de Léger, ou executaram os trabalhos de cenários de teatros para Naissance d’une cité, de Jean-Richard Bloch, no Vélodrome d’Hiver (15 mil espectadores), um espetáculo montado com a ajuda de sindicatos e de organizações culturais da Frente Popular.
Depois da guerra, durante a qual ela fazia parte de uma rede FTP-MOI (Francs-tireurs et partisans-Main-d’œuvre immigrée), Nadia Léger realizou imensos retratos pintados em lençóis, para manifestações políticas, como o X Congresso do Partido Comunista Francês (PCF), em 1945. O modo de fazer esses retratos conjuga a pintura com a fotografia (que se generalizou na década de 1970) e um tratamento da superfície em que o fundo não se opõe à imagem, mas combina com ela. Militante do PCF desde 1933, ela defendeu a volta ao realismo prescrito pelo partido em 1947 – até 1953 –, mas propondo uma versão singular e sem renegar suas prospecções abstratas. A complexidade e a diversidade de tratamento dessa injunção do realismo foi, com frequência, ignorada e foi resumida no discurso de Maurice Thorez por ocasião do XII Congresso (1950). Nele, o secretário-geral do PCF afirmou que “nossos escritores, filósofos, pintores, artistas” devem “combater as posições ideológicas e políticas da classe operária” para ajudá-la “em sua luta libertadora”. O enunciado é brutal. A época era também de repressão sobre qualquer pessoa que contestasse as guerras coloniais, repressão social às vezes sangrenta (greves de mineiros, de portuários e de operários) etc., numa atmosfera de guerra civil latente em que a ameaça nuclear e a volta do autoritarismo do poder dominavam.
A questão do tipo de engajamento dos artistas era inflamada, e o debate, ardente. Léger e Pablo Picasso se dedicaram ao combate social e político, mas desde 1938 Léger salientava que “é preciso deixar sempre um caminho livre para os artistas” e que “a obra de arte não deve participar da batalha […]; ela não necessita testemunhar nada”.6 Além dele, que seria considerado o símbolo desse realismo socialista francês, André Fougeron, os jovens pintores Gérard Singer, Boris Taslitzky, Mireille Miailhe e Georges Bauquier, muitas vezes procedentes das fileiras da Resistência e alguns dos quais deportados, decidiram participar desse movimento com a ajuda de seus pincéis e lápis. Nadia Léger pintou trabalhadores, vendedoras de peixes ou maternidades, mas cultivando mais a esperança da felicidade do que o trágico da condição operária. Sem dúvida, mais diretamente, ela se engajou em trabalhos anônimos de decoração, em trabalhos coletivos no âmbito do Ateliê. Exibindo especialmente um recurso de contraste colorido, eles foram precursores da pop art e da figuração narrativa dos anos 1960, ilustrada por Henri Cueco, Erró, Eduardo Arroyo…
No entanto, desde sua morte, essa grande figura de vanguarda foi mantida na “sombra”, para citar o título do livro que, hoje, lhe presta homenagem. Essa sombra não é a de Léger, com quem ela se casou em 1952, três anos antes de ele morrer. E seria problemático considerar que ela formou com ele uma dupla ao longo de suas respectivas carreiras. Não, de fato trata-se da sombra que cobriu, nesse período, não só o tipo de engajamento de artistas que, como ela, ficaram fora do mercado de arte, mas também a função social que eles tinham escolhido assumir. Não é possível que, atualmente, se faça sua “reavaliação” a título de um comércio de imagens entendido como kitsch…
François Albera é professor emérito da Universidade de Lausanne e diretor de redação de 1895. Revue d’histoire du cinéma. Sua última obra publicada é Le Cinéma au défi des arts [O cinema na disputa das artes], Yellow Now, Crisnée (Bélgica), 2019.
1 Aymar du Chatenet (coord.), Nadia Léger. L’histoire extraordinaire d’une femme de l’ombre [Nadia Léger. A extraordinária história de uma mulher na sombra], IMAV Éditions, Paris, 2019.
2 Nome de uma instalação (filmes, performances etc.) supostamente destinada a oferecer um mergulho no âmago dos anos soviéticos (1938-1968), apresentada no início de 2019 em três locais parisienses.
3 Seu manifesto em prol da arte moderna, Et pourtant elle tourne [E, no entanto, ela volta] (1921), enfim foi publicado em francês pela Presses du Réel, Dijon.
4 Cf. Romy Golan, Mural nomad. Le paradoxe de l’image murale en Europe (1927-1957) [Mural nômade. O paradoxo da imagem mural na Europa (1927-1957)], Macula, Paris, 2019.
5 Como evidenciou a recente controvérsia sobre os murais de Arnautoff. Ler, de Serge Halimi, “Os talibãs de São Francisco”, Le Monde Diplomatique Brasil, ago. 2019.
6 Fernand Léger, “La couleur dans le monde” [A cor no mundo], Europe, Paris, 15 maio 1938.