Fortalecer a resistência e mobilizar para a ação coletiva
A forma fascista neoliberal de fazer política precisa ser fortemente contestada. Em parte, isso significa criar uma nova linguagem, de fundamentação socialista, mas reinventada, para a política, a vida cívica, o bem público, a cidadania e a justiça social
Vivemos em tempos perigosos. Governos populistas autoritários estão em ascensão pelo mundo, ameaçando todos aqueles considerados descartáveis pelo sistema. O combate à ascensão do fascismo neoliberal pode começar expondo o regime de governo baseado em mentiras, notícias falsas e espetáculos fabricados. É essa linguagem fortemente ideológica que permite a normalização de condições bizarras e catastróficas, que tornam os discursos autoritários uma fonte poderosa de fantasia, sadismo e rentabilidade.
Esta é uma época em que vivemos as consequências do capitalismo global, que criou um cenário de precariedade e miséria em todo o mundo com suas medidas de austeridade fiscal, terceirização do emprego e uma ganância incontrolável por lucros em detrimento de maior exploração da mão de obra dos trabalhadores. O neoliberalismo está criando uma crise no mundo contemporâneo com enormes desigualdades sociais, intenso acúmulo de riquezas e concentração de poder. No meio dessa crise há uma crescente rejeição, por parte das populações, às elites tradicionais e seus modos de liderança. A implementação da lógica neoliberal tem exigido a adoção de políticas cada vez mais repressivas, punitivas e violentas em muitos países do mundo. Em alguns, como no caso de Estados Unidos, Israel e Brasil, esse populismo autoritário tem assumido características fascistas. Isso é o que Giroux tem denominando de fascismo neoliberal.1
Para políticos alinhados a essa ideologia, a mentira é reduzida a um artifício retórico no qual tudo o que é politicamente importante é negado, e a razão perde seu poder de iluminar decisões que impactam a vida coletiva. Ao mesmo tempo, a linguagem banal serve para infantilizar e despolitizar, pois não oferece espaço para os indivíduos traduzirem problemas particulares em considerações sistêmicas mais amplas. Mentir se tornou uma ferramenta tóxica de poder e, como aponta o romancista Toni Morrison, funciona “como um coma na população”, impondo miséria e traumas tão profundos e cruéis que matam a imaginação e purgam os ideais democráticos.
Infelizmente, a crise da economia foi acompanhada por uma crise das ideias. Em vez de reafirmarem a importância do humanismo, dos ideais democráticos e da ação coletiva a serviço da igualdade social, muitas sociedades se agarraram a um discurso apocalíptico, que necessita de homens fortes com ideias simplistas, não se importando com o modo como eles reprimem as críticas e zombam cinicamente da verdade. Em um mundo onde quase nada mais é verdadeiro, tudo o que se resta para escolher parece ficção ou filme de terror bizarro. Uma consequência é que as instituições cívicas e a cultura pública que ainda nutrem a capacidade de dizer a verdade começam a murchar.
Numa época em que os apelos à verdade e os esforços para responsabilizar os poderosos por suas ações são rapidamente descartados como fake news, a ignorância se torna terreno fértil para o ódio e para uma cultura que ataca a memória histórica, destrói qualquer entendimento sobre a importância dos valores compartilhados, se recusa a tornar a tolerância um elemento inegociável do diálogo cívico e permite que os poderosos militarizem o discurso cotidiano. Para um número crescente de políticos de direita, a mentira é uma mistura de performance e espetáculo usada para desacreditar qualquer tentativa de responsabilizá-los por suas ações, enquanto por outro lado minam esferas públicas como a educação e as artes, tão necessárias para formar cidadãos informados e imaginativos. Os cortes no financiamento das políticas sociais têm pouco a ver com o equilíbrio dos orçamentos e muito a ver com o ataque aos bens, serviços e outras esferas da vida pública que são cruciais para o funcionamento da democracia.
O neoliberalismo criou uma sociedade na qual a dor e o sofrimento são vistos como entretenimento; a guerra, como um estado permanente de existência; e o militarismo, como a força mais poderosa que molda a masculinidade. A política saiu da ética e, portanto, a questão dos custos sociais está divorciada de qualquer forma de intervenção no mundo. Essa é a métrica ideológica dos zumbis políticos e a moeda que financia o fascismo neoliberal. A palavra-chave aqui é atomização, maldição imposta por sociedades neoliberais e autoritárias, que representa uma ameaça terrível a qualquer forma viável de democracia.
Essa forma contemporânea, reacionária e perigosa de fazer política está em desacordo com os princípios mais básicos de igualdade, liberdade, solidariedade e justiça. A forma fascista neoliberal de fazer política precisa ser fortemente contestada. Em parte, isso significa criar uma nova linguagem, de fundamentação socialista, mas reinventada, para a política, a vida cívica, o bem público, a cidadania e a justiça social. O que é necessário é uma linguagem de possibilidades, de militância, que Gregory Leffel chama de linguagem de “futuros imaginados”, que “pode nos tirar do mal-estar sociopolítico atual para que possamos imaginar alternativas, construir as instituições de que precisamos para chegar lá e inspirar um compromisso social”. Não há política sem esperança e não há senso de resistência, a menos que se possa imaginar um futuro em que a democracia importe e valha a pena lutar por ela. O que deve ser lembrado é que a história está aberta e que é hora de pensar de outra forma, para agir de outra maneira, especialmente se queremos imaginar e lutar por futuros alternativos e novos horizontes de possibilidade. Precisamos alimentar a imaginação radical para criar alternativas ao crescente autoritarismo dos governos.
No Chile, Bolívia, Colômbia, Equador, México, Argentina, Brasil e diversos outros países, as pessoas estão se organizando contra um sistema neoliberal fascista que nega assistência médica, aposentadoria decente, educação de qualidade, transporte público, distribuição de renda, e corta, sem negociação, investimentos em bens e serviços públicos para o que eles consideram uma subclasse de pessoas, objetos descartáveis. Em outras palavras, dois tremores políticos distintos estão abalando o mundo: por um lado, a disseminação da resistência e da luta contra o neofascismo (evidente em países como Brasil, Estados Unidos, Europa e Israel); por outro lado, uma nova onda de formas maciças de resistência popular contra o neoliberalismo (evidente em nações como Chile, Equador, Bolívia e Colômbia). Isso sem falar nos protestos mais explícitos por democracia, como ocorrem na China, Rússia, Irã, Arábia Saudita, Turquia e Egito.
Esses eventos podem parecer não relacionados, mas na verdade fazem parte de tendências entrelaçadas que estão transformando o cenário político em todo o mundo. Esses movimentos de resistência e ação coletiva representam uma reação aos múltiplos abusos produzidos pela fusão do autoritarismo político e do neoliberalismo contemporâneo, marcado por políticas predatórias cruéis, pelo desdém aos direitos humanos e pelo impulsionamento de grupos fascistas de extrema direita, com seu discurso higienista de ódio e limpeza social.
Enquanto isso, no Brasil, o governo Bolsonaro tem atacado repetidamente grupos indígenas que trabalham para proteger o meio ambiente contra ruralistas, madeireiras e mineradoras ilegais que se articulam em redes infratoras para exploração e destruição da Amazônia e do Pantanal. Ao fazer isso, o governo brasileiro deu luz verde a grupos que pilham ilegalmente a floresta tropical e ameaçam matar povos indígenas, pequenos agricultores, agentes da lei e qualquer outra pessoa que tente detê-los. Exibindo um espetáculo de distração e uma propensão ao absurdo político, Bolsonaro recentemente chegou a acusar falsamente o ator Leonardo DiCaprio de “financiar a incineração deliberada da floresta amazônica”. Entretanto, Bolsonaro não é só um palhaço. O que ele fala é muito mais perigoso do que uma inocente palhaçada. Seu discurso falacioso e ridículo é intencional. Assume uma linguagem que difunde alienação e ódio, chegando inclusive a elogiar o golpe militar de Augusto Pinochet no Chile em 1973 e a declarar, mais de uma vez, seu apoio à violenta ditadura militar brasileira que ocorreu entre 1964 e 1985. Diante dos protestos da oposição, ele se baseia no manual de Donald Trump e produz novos bodes expiatórios para distrair.
Todavia, a resistência ao autoritarismo do governo Bolsonaro está crescendo no Brasil, especialmente com a libertação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, considerada uma prisão política para impedir a candidatura do mais importante líder de esquerda nas eleições de 2018 e considerada ilegítima até mesmo pela ONU. Os protestos algumas vezes lotam as ruas; outras muitas vezes ocorrem silenciosos no cotidiano da micropolítica no Brasil. A população começa a sair da resistência e a organizar ações de enfrentamento, embora não na mesma escala em que ocorrem em outros países da América Latina, como na Colômbia, Bolívia, Chile e Equador, provavelmente por conta da imposição de censura, da difusão do medo generalizado e das crescentes ameaças às forças de oposição, numa crescente onda de repressão estatal.
O cerne de qualquer tipo de política que deseje desafiar essa fuga ao autoritarismo não é apenas o reconhecimento de estruturas econômicas de dominação, mas algo mais profundo – que aponta para a construção de identidades particulares, valores, relações sociais ou, mais amplamente, agência em si. O ponto central de tal reconhecimento é o fato de que a política não pode existir sem que as pessoas invistam algo de si nos discursos, imagens e representações que surgem diariamente. Em vez de sofrer sozinhos, atraídos pelo frenesi da emoção odiosa, os indivíduos precisam ser capazes de identificar – ver a si mesmos e a sua vida cotidiana – dentro de críticas progressivas às formas de dominação existentes e como elas podem abordar essas questões não individualmente, mas coletivamente.

Hoje, esse é um desafio particularmente difícil, porque o flagelo da atomização é reforçado diariamente não apenas por um ataque neoliberal coordenado contra qualquer noção viável do social, mas também por uma cultura autoritária e baseada em finanças que une uma noção rígida de privatização a uma fuga de qualquer senso de responsabilidade social e moral. Além disso, sob a dinâmica de uma máquina política fascista, o poder está concentrado nas mãos de uma pequena elite financeira que promove divisões e ódio por meio de apelos ao nacionalismo, ao racismo, à discriminação, à violência e à supressão de dissidência.
A pedagogia, como política de persuasão, formação de identidade e resistência, oferece a oportunidade para tais movimentos falarem de uma visão de mundo que defenda os valores fundamentais da justiça, igualdade e solidariedade, ao mesmo tempo que critica a desigualdade econômica, o poder corporativo e a injustiça racial. Em vez de falarem de forma abstrata sobre liberdade, igualdade e justiça, é crucial que grupos políticos progressistas definam uma nova linguagem em relação às experiências e problemas que as pessoas enfrentam em seu cotidiano. Por exemplo, é importante que os movimentos sociais articulem uma linguagem que ressoe política e emocionalmente as necessidades, os valores e as relações sociais cotidianas das pessoas, ao mesmo tempo que adotam os valores fundamentais da igualdade, liberdade, solidariedade e justiça.
A atomização de indivíduos em sociedades fascistas e neoliberais encontra sua contrapartida na fragmentação política muitas vezes fatal que é frequentemente vista na esquerda com sua proliferação de diferentes grupos articulando e abordando formas de opressão de uma única questão, estejam elas enraizadas em alguma versão de políticas de identidade ou em instâncias específicas de dominação, como questões associadas às mudanças climáticas. Isso não significa que essas lutas não sejam importantes politicamente. Pelo contrário, o que é crucial e igualmente importante é o imperativo estratégico de uni-las em torno de uma política de solidariedade que consiga trabalhar por meio de narrativas que, como argumentam Nancy Fraser e Houssam Hamade, unem lutas pela emancipação e pela igualdade social.
*Henry A. Giroux é professor da McMaster University do Canadá (Chair for Scholarship in the Public Interest/The Paulo Freire Distinguished Scholar in Critical Pedagogy); e Gustavo O. Figueiredo é doutor em Psicologia da Comunicação e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
1 Henry Giroux, American Nightmare: Facing the challenge of Fascism [Pesadelo norte-americano: enfrentando o desafio do fascismo], San Francisco, City Lights Books, 2018; e Henry Giroux, The Terror of the Unforeseen: Rethinking the Normalization of Fascism in the Post-Truth Era [O terror do imprevisível: repensando a normalização do fascismo na era da pós-verdade], Los Angeles, Los Angeles Review of Books (Larb), 2019.