A Time Magazine publicou fotos chocantes de Bibi Aisha, mulher mutilada pelo regime talibã, indagando como ficaria o país caso as forças armadas estrangeiras deixassem a região. Dias antes vazaram documentos confirmando o fracasso moral, político e militar da guerra travada pelos ocidentaisSerge Halimi
Serge Halimi
No mês passado, Bibi Aisha foi capa da revista Time Magazine (9 de agosto de 2010). Mutilada por talibãs afegãos, segundo afirmam, ela não tem mais orelhas nem nariz1. No Irã, Sakineh Mohammadi-Ashtiani não foi apenas chicoteada por adultério, como também condenada a uma pena de apedrejamento. O seu rosto ainda intacto tornou-se um símbolo da mobilização contra o regime de Teerã. As duas imagens de mulheres dão o que pensar, mas exatamente no quê? Não na ferocidade dos islâmicos afegãos: os soviéticos já tinham sentido na carne seus efeitos numa época em que os ocidentais armavam os fundamentalistas, com a bênção dos intelectuais da mídia. As fotos tampouco nos revelam algo mais sobre o regime do presidente Mahmoud Ahmadinejad: as fraudes eleitorais dos seus partidários e a repressão contra os seus opositores, que inclui enforcamentos, já demonstraram sua natureza. Em vez de estimular a reflexão, essas imagens não apresentariam o risco de refreá-la, associando de maneira intencional ou não um símbolo irresistível (atos de mutilação que gostaríamos de punir, execução que gostaríamos de conjurar) a um projeto estratégico incerto e arriscado (prosseguimento da guerra no Afeganistão, escalada das sanções contra o Irã)? Quanto mais poderoso é o símbolo, menos o projeto deve ser debatido, uma vez que a emoção viabiliza aquilo que a reflexão teria impedido. Para conferir um sentido ao seu relato do suplício de Bibi Aisha, a Time Magazine o intitulou de “O que acontecerá se nós deixarmos o Afeganistão”. Dias antes, 77 mil documentos publicados pelo site Wikileaks haviam confirmado o fracasso moral, político e militar da guerra travada pelos ocidentais (ler pág. 37). Mas o choque de uma imagem exige muito menos tempo do que a análise de vários milhares de páginas. Uma foto contra as Luzes.
Por muito tempo, os partidários da pena de morte justificaram esse suplício destacando algum assassinato horrível, o de uma criança, de preferência. Câmeras de vigilância, sistematização dos testes de detecção antidrogas, condenações incompressíveis, castração química dos delinquentes sexuais: inúmeras medidas atentatórias às liberdades públicas – inclusive a de ir e vir sem ser observado nem fichado – foram adotadas na esteira de uma foto de impacto. Seguramente, um “símbolo” também pode repercutir combates justos – vale lembrar-se aqui de Guernica ou de Abu Ghraib. Mas, uma mobilização impulsionada apenas por essa alavanca seria suplantada sem demora por outras emoções contrárias, considerando-se o caráter inesgotável do estoque de vítimas disponíveis.
Será que mutilações serão perpetradas “se nós deixarmos o Afeganistão”? Em todo caso, a “nossa” presença não impediu aquelas que lá foram cometidas… Os talibãs dispõem de inúmeras fotos de civis amputados ou mortos por mísseis ocidentais. Um dia, a Time Magazine talvez venha a publicar uma delas. Será que ela a publicará na capa? E qual será a manchete?
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).
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