França: o déficit permanente da moradia
Ainda que atinja cerca de 1 milhão de famílias a falta de moradias na França deixou de ser um tema relevante do debate político. Com a indústria da construção civil caminhando a passos lentos e isenções fiscais que beneficiam apenas os grandes os proprietários, o governo segue considerando essa questão como secundária
Tornar possível o acesso à propriedade por meio do desenvolvimento do crédito hipotecário. Essa foi a resposta oferecida, em setembro de 2006, pelo presidente francês Nicolas Sarkozy para uma crise habitacional que está longe de se resumir aos 150 mil sem-teto do país.
Atualmente, os aluguéis representam cerca de 25% da despesa das famílias francesas, contra 12,5% no final dos anos 1980. Calcula-se ainda que 10 milhões de pessoas enfrentem dificuldades para quitar dívidas relativas à habitação ou encontrar uma moradia decente. Em 2007, eram 9,3 milhões. Um casal de modestos assalariados com dois filhos, por exemplo, ganhando cada um 1.500 euros por mês, é obrigado a gastar cerca de um quarto da sua renda para viver numa moradia classificada como habitação popular. “O discurso dominante estabelece uma relação entre a crise habitacional e a baixa dos preços do setor imobiliário. Não há nada mais equivocado: a verdadeira crise ocorre quando os preços são puxados para cima”, coloca um funcionário do Ministério da Habitação.
Esse colapso não resulta simplesmente do confronto entre oferta e demanda. Conforme sublinhou o sociólogo Pierre Bourdieu, “o Estado contribui de maneira decisiva para os rumos do mercado imobiliário por meio do controle que exerce sobre a comercialização de terrenos e o auxílio que proporciona para a compra ou para a locação”1.
Ora, foi o poder público que permitiu que a construção de habitações declinasse. Essa situação gerou um déficit de aproximadamente um milhão de moradias, das quais 400 mil na região administrativa de Île-de-France, que engloba a capital Paris e onde desde 1992 apenas 40 mil construções têm sido edificadas por ano. Além disso, as demolições de moradias populares não param de se multiplicar, o que agrava ainda mais esse desequilíbrio.
“Os proprietários tratam os habitantes de uma cidade populosa como os detentores do monopólio da produção de grãos tratariam sitiados reduzidos à fome!”, já denunciavam brochuras durante a Restauração (1814-1830)2. Mais tarde, Friedrich Engels analisou a penúria crônica que estava atingindo Londres, Paris, Berlim e Viena nos seguintes termos: “Nos dias de hoje, a crise da habitação pode ser explicada pelo agravamento das más condições de moradia dos trabalhadores, em consequência [do seu] repentino afluxo nas grandes cidades; o que se vê é um enorme aumento das locações; um amontoamento sempre maior de inquilinos e, no caso de alguns dentre eles, a impossibilidade de encontrar até mesmo um lugar pra morar. E se essa crise está dando tanto o que falar, é porque ela vitima igualmente a pequena burguesia3”.
Naquele tempo, a construção dependia dos empreendimentos particulares. A partir de meados do século XIX, as empreiteiras imobiliárias começaram a aparecer e passaram a drenar a poupança dos bancos. Essa movimentação de capitais provocou uma explosão do preço dos terrenos dos bairros populares, reservando-os para a construção de moradias chiques no estilo daquelas implantadas durante a reforma urbana de Paris, empreendida por Georges-Eugène Haussmann. A partir de 1880, a drástica diminuição da produção de moradias acentuou a demanda e aumentou os preços. Segundo o sociólogo Christian Topalov, essa tendência contribuiu para revelar “uma inadequação estrutural entre a produção e o poder aquisitivo” dos operários e dos artesãos4. Um vento de revolta começou a soprar então contra os proprietários, que foram descritos como “usurários, agiotas e incansáveis agentes de opressão”5!
Durante a Primeira Guerra Mundial, a União Confederativa dos Inquilinos, cujos militantes eram adeptos do sindicalismo revolucionário, impôs um quase congelamento dos aluguéis. Essa medida proporcionou um alento para as famílias, mas não favoreceu a retomada da atividade no setor da construção e tampouco garantiu a manutenção dos imóveis existentes. Depois das destruições provocadas pela Segunda Guerra Mundial, a IV República tentou devolver aos capitais privados “o apreço pela pedra”: os aumentos de aluguel voltaram a ser autorizados e os preços ficaram desgovernados.
Auxílio do Governo
Foi preciso esperar até os anos 1950 para ver um consenso se instaurar em torno da necessidade de implantar circuitos de financiamentos públicos que permitissem subvencionar diretamente a construção civil. De fato, por proporcionarem empréstimos com taxas inferiores às dos capitais privados e prazos de reembolso de maior duração, os capitais públicos permitiram diminuir e repartir os custos. Esse sistema de ajuda ao setor funcionou graças aos empréstimos do Banco da França e às subvenções do Tesouro Nacional. Em sua esteira nasceu outra fonte de financiamento barato: a cobrança de um imposto de 1% sobre a massa salarial das empresas de mais de dez assalariados. Por fim, o circuito de auxílio à moradia foi completado, de um lado, pelo Crédito Predial e, de outro, pela Caixa dos Depósitos e Consignações. Valendo-se das cadernetas da Caixa Econômica, esta última ofereceu empréstimos com juros ainda mais baratos aos organismos de “habitation à loyer moderé” (HLM, voltados para a implantação de moradias de aluguel moderado, ou seja, de conjuntos habitacionais populares), tornando-se a principal empreiteira imobiliária por intermédio de uma das suas filiais, a Sociedade Central Imobiliária (SCIC).
O esforço considerável empenhado por essas entidades gerou frutos. Seu auge foi alcançado em 1973, com a construção de 556 mil novas habitações. Essa ação fez com que a quantidade de moradias ofertadas tivesse um crescimento de mais de 50% entre 1953 e 1975. Conforme apontou a historiadora Sabine Effosse, dos 8 milhões de casas construídas no período, cerca de 80% se beneficiaram de uma ajuda pública6.
A partir de 1972, a legitimidade da intervenção do Estado passou a ser abertamente contestada por um grupo de altos funcionários públicos7. O mais influente dentre eles era Valéry Giscard d’Estaing, que havia iniciado sua carreira no Ministério das Finanças em 1958 e na década seguinte tornara-se um de seus diretores. D’Estaing se empenhou em restaurar “os mecanismos ‘naturais’ do mercado8”. Impondo um racionamento das ajudas para o setor imobiliário e retirando do Crédito Predial o monopólio dos empréstimos que facilitavam o acesso à propriedade, ele organizou a transferência do financiamento da construção de moradias, que passou a ser controlado por bancos privados.
Eleito presidente da República, em 1974, Giscard d’Estaing entregou a Raymond Barre, que seria o seu primeiro-ministro a partir de agosto de 1976, a direção de uma comissão de reforma do sistema de ajudas ao setor imobiliário, que era acusado de onerar o orçamento do Estado. Dois colaboradores próximos do presidente, o relator-geral da comissão e inspetor de finanças Antoine Jeancourt-Galignani, e Pierre Richard, futuro dirigente da Dexia, uma poderosa entidade dedicada ao financiamento de serviços públicos, elaboraram um parecer favorável à supressão dessas ajudas. Convencido pelos seus argumentos, Jacques Barrot, o então secretário de Estado para Habitação (1974-1978), considerou que “a construção de moradias, sua localização e sua qualidade deveriam então necessariamente passar a ser determinadas pelas leis do mercado”9. Era uma solução liberal, a mais liberal possível.
Apesar de o aumento dos encargos ser demasiadamente brutal para que essa lógica fosse concretamente implementada, o processo havia sido desencadeado. Em 1977, Barrot optou por um “retorno progressivo à liberdade dos aluguéis”, atendendo com isso uma antiga reivindicação da União Nacional da Propriedade Imobiliária (UNPI). Para o secretário de Estado, não se tratava de “suprimir as ajudas ao setor imobiliário, mas sim de diminuí-las. E compensar esta redução por meio da criação da ajuda personalizada para o acesso à moradia”, a Aide Personnalisée au Logement (APL), destinada aos assalariados mais pobres.
Porém, e infelizmente, com o crescimento do desemprego, o setor da construção civil sofreu uma derrocada considerável e o custo da disparou.
De maneira gradativa, o sistema de intervenção pública passou a favorecer mais os proprietários privados. O financiamento público em favor da moradia popular se tornou mais caro durante os anos 1980 e 1990. Paralelamente, a partir de 1986, uma lei nacional autorizou os proprietários a reajustarem o preço dos aluguéis em função dos índices mais elevados toda vez que o contrato de locação fosse renovado. A consequência dessa mudança foi terrível: “No decorrer dos últimos trinta anos, o aluguel dos inquilinos pobres aumentou mais rapidamente que o dos outros”, avalia a economista Gabrielle Fack. De acordo com ela, “entre 50% e 80% das verbas para moradia recebidas por essas famílias teriam sido engolidas pelos aumentos de aluguéis”10.
O resumo da ópera é que a APL, que deveria ser uma política de suporte à população de baixa renda, terminou subvencionando os proprietários. Aliás, desde 2002, estes últimos também vêm sendo beneficiados por uma multiplicação das exonerações fiscais para os investimentos locativos, graças aos dispositivos implantados pelos ministros Gilles de Robien e Jean-Louis Borloo11.
Essas medidas favoreceram as sociedades imobiliárias com ações na Bolsa de Valores, que venderam parte de suas propriedades para corporações ou instituições a preços proibitivos para os então inquilinos, sequer consultados sobre o processo. Nessas transações, essas mesmas sociedades foram isentadas do pagamento de impostos sobre os lucros, com a condição de garantirem um dividendo importante e de pagarem uma pequena compensação fiscal no fechamento final do negócio.
Participação do Setor Público
“Nunca as famílias tiveram de empenhar esforços financeiros tão significativos para garantir sua moradia, ao passo que o esforço financeiro do Estado nunca esteve tão reduzido”, constata a Confederação Nacional da Habitação (Confédération Nationale du Logement, CNL)12. Hoje, a participação do setor público representa menos de 2% das riquezas produzidas, taxa essa que, aliás, não para de diminuir. Para efeito de comparação, a proporção era de mais que o dobro durante a IV República. Pierre Mendès-France, ex-ministro das Relações Exteriores da França, já alertava em 1968: “Querer solucionar a crise da habitação classificando esta última na categoria dos ‘bens rentáveis’ equivale a preconizar soluções que remetem aos tempos da belle époque”. Para esse político, a saída era investir pesado, sem estabelecer limites para a contribuição do Estado. Era uma medida para “enquadrar e reduzir os lucros especulativos13”. Estes, aliás, nunca estiveram tão elevados como atualmente. A propriedade territorial e imobiliária constituía, em 2005, a metade do patrimônio nacional, ou seja, 5,5 trilhões de euros14. Desse total, 3 trilhões provinham diretamente da especulação imobiliária.
Desde os anos 1970, a habitação deixou de ser um tema relevante do debate político, ainda que o setor represente 23% da economia nacional. Essa constatação não foi desmentida pela mais recente campanha presidencial, durante a qual os dois principais partidos – a União por um Movimento Popular (UMP) e o Partido Socialista (PS) – se limitaram a prometer a construção de 120 mil moradias populares por ano, ao longo de cinco anos. Ou seja, a metade da demanda apontada pela Comissão para a Habitação da Attac (Associação pela Tributação das Transações Financeiras para ajuda aos Cidadãos), pela Liga dos Direitos Humanos e pela CNL. Mais grave ainda, em nome da “pluralidade social”, os dois partidos se mostraram afinados em relação à necessidade de incentivar a demolição dos conjuntos habitacionais populares, que muitos consideram hoje obsoletos. Geralmente, tal medida implica no afastamento de seus habitantes dos centros das cidades.
Frente a um Partido Socialista que nunca chegou a questionar a política neoliberal da habitação ao longo das últimas décadas, o então candidato Sarkozy acrescentou a promessa da propriedade para todos. “Em vão eu tentei convencer Lionel Jospin de que, em nome da justiça social, a esquerda deveria se preocupar tanto com a habitação quanto com o regime de 35 horas semanais de trabalho”, tentou se desculpar a última ministra da Habitação da Esquerda Plural, Marie-Noëlle Lienemann, por ocasião de um encontro com socialistas de Massy no final de 2005. Ela também confessou perante os militantes que se mantinham em silêncio: “Vocês sabem como as coisas funcionam. Na França, nada muda enquanto as classes médias não são atingidas!”.
*Olivier Vilain é jornalista.