Fronteiras abertas ao contrabando de armas
Para alegria das narco-milícias e da indústria de armamento brasileira o governo Bolsonaro revogou resolução que incidia a alíquota de 150% no imposto para exportação de armas e munições
No final dos anos 1990, houve um grande aumento dos crimes violentos no Brasil, com o uso de armas e munição brasileiras que haviam sido previamente exportadas para os países vizinhos, conforme constatamos através de nossas pesquisas. O que levou o então presidente Fernando Henrique a enviar, em 2000, uma missão de alto nível para negociar melhor controle com o governo do Paraguai, da qual fiz parte. Na audiência com o presidente Luis Macchi, este ironizou: “As armas brasileiras são trazidas por brasileiros para o Paraguai, vendidas em lojas de brasileiros e compradas por emissários do crime organizado brasileiro. Como podem ver, esse é um problema brasileiro”. Respondi: “Mas a barriga de aluguel é paraguaia, senhor presidente”. Gargalhadas descontraíram o ambiente e a missão, presidida pelo então ministro da Casa Civil Pedro Parente, acabou sendo um sucesso: a embaixada brasileira passou a negar documentos aos falsos “turistas”, o Paraguai suspendeu a importação de armamento brasileiro para civis por três anos e o país aprovou uma lei de controle de armas.
O contrabando diminuiu, mas tomou outros rumos. Por 10 a 20 dólares, pagos aos policiais de ambos os lados da fronteira, ironicamente chamados de “transpropina”, qualquer um continuava a entrar com armas e munição de grosso calibre, proibidas no Brasil para civis, anteriormente exportadas pela indústria brasileira para os países vizinhos, no que denominei “exportações bumerangue”. Além disso, segundo nos relatou o deputado Blas Llano, que presidiu a CPI do Congresso paraguaio sobre tráfico de armas, “em média, de cada 10 contêineres cheios de armas brasileiras legalmente exportados para o Paraguai pela indústria brasileira, apenas um de fato entra no Paraguai. Os demais são desviados para o mercado clandestino no Brasil, e apenas os papéis viajam, para simular a exportação”. O presidente FHC determinou então a Resolução GECEX 17/2001, aumentando em 150% a alíquota de exportação desses produtos para os países vizinhos.
No quente verão de 2005, voltei com meus colegas Pablo Dreyfus e Luiz Carlos Silveira, do Viva Rio, a visitar as lojas de fronteira, que antes da mencionada Resolução estavam abarrotadas de armas e munições brasileiras. Dessa vez, quase nada encontramos. “Ficaram caras”, respondiam os comerciantes. Com uma única norma, muito precisa e baseada em pesquisa científica, nosso governo fez secar uma das principais fontes de armamento do crime organizado no Brasil. Nosso trabalho na fronteira mereceu da Comissão de Segurança do Parlatino (Parlamento Latino-americano) o seguinte comentário: “Se a polícia brasileira fizesse a investigação que vocês fizeram, combateríamos o contrabando com mais eficiência”.
Pois, para alegria das narco-milícias e da gananciosa e irresponsável indústria de armamento brasileira, pasmem, o governo Bolsonaro acaba de revogar essa norma, através da nova Resolução GECEX 218/2021. Escancara de vez nossas fronteiras para a entrada de armamento ilegal, fronteiras secas de 16.886 quilômetros, 588 municípios fronteiriços, limites com nove países, que havíamos percorrido e constatado sua precária fiscalização por nossas polícias. Mais uma contribuição para o aumento dos homicídios por arma de fogo, que nesse governo subiu 4%, total de 50.033 mortes, após queda nos dois anos anteriores. Ano passado, 3.913 mulheres foram assassinadas, havendo 81,5% dos feminicídios cometidos pelo parceiro ou ex-parceiro íntimo da vítima, segundo Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Além disso, a cada hora morre um jovem ou uma criança no Brasil vítima de arma de fogo, de acordo com dados da Associação Brasileira de Pediatria.
Antes, o governo já havia tentado reduzir em 20% as alíquotas de importação de armas estrangeiras, medida suspensa pelo Supremo Tribunal Federal. Coerente com o lema do fascismo espanhol “Abajo la Inteligencia, viva la Muerte!”, além de glorificar as armas, Bolsonaro tentou impor 12% de impostos aos livros, norma também suspensa em boa hora.
Já chegam a 33 os decretos e resoluções deste governo contrárias à lei do Estatuto do Desarmamento, flagrante ilegalidade e forma malandra e inconstitucional de burlar a resistência encontrada no Congresso para mudar a lei. Neste caso, sua base de apoio evangélica rachou. Falou mais alto o princípio cristão da não violência.
O foco em armar a população, e por extensão a criminalidade, esconde a ausência de política de segurança. Como disse o general Santos Cruz, ex-ministro deste governo, “Estimular as pessoas a andarem armadas por uma questão de segurança pública não tem sentido, é absurdo”. Por sua vez, o general Eugênio Pacelli promulgou três portarias aperfeiçoando o rastreamento de armas e munições envolvidas em ilegalidades, para elucidar crimes, e também impedir que sejam desviadas para traficantes e milicianos, como sucedeu no assassinato da vereadora Marielle Franco. Por ter coordenado a Comissão do Exército que elaborou as portarias, o general Pacelli foi exonerado e as portarias anuladas por ordem do presidente no dia seguinte à sua promulgação. Assim, os militares que cumprem seu papel de controlar as armas, para prevenir que sejam usadas em crimes, vão sendo demitidos, no governo só ficam aqueles que prestam vassalagem ao capitão.
A mesma política obscurantista de destruição empreendida contra o combate à corrupção, liberdade de imprensa, apoio à educação e às artes, proteção ecológica, tolerância e pluralismo, trata de desconstruir os avanços que fizemos na segurança pública, em especial na fiscalização das armas. O Estatuto do Desarmamento salvou a vida de 275 mil brasileiros em 18 anos, segundo estimativa do Ipea, e por isso é elogiado nos fóruns internacionais de especialistas por ser “eficiente, avançado e democrático” (ONU). Mas o presidente insiste que “o Estatuto não funcionou” e quer “armar o povo” como forma de protegê-lo. Armar o povo com o revólver mais popular, o 38, custando mais de 3 mil reais? Os narco-traficantes podem comprar até os fuzis de guerra T4, liberados para venda aos civis por, no mínimo, 8 mil reais. Como demonstrado pelos países bem sucedidos, proteção se faz com a melhoria da polícia, política preventiva, inteligência, controle externo e fiscalização de armas.
Ao contrário, o governo alimenta a ilusão da autodefesa, quando de cada 10 vítimas de assalto que reagem, 7 são baleadas, de acordo com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Com isso, foge à sua obrigação constitucional de proteger o cidadão. “Cada um por si” é a política. É a arma individual que vai proteger as pessoas, assim como a cloroquina vai evitar o coronavírus. Como no caso da postura contra a vacina e rejeição da proteção coletiva. Deliberadamente confunde egoísmo com liberdade, ideologia com ciência. Nosso governo vai na contramão da segurança pública moderna. O controle de armas avança em todo o mundo, determinando a queda nos homicídios violentos, segundo foi celebrado na recém realizada Sétima Reunião Bianual de Estados sobre o Programa da ONU de Erradicação do Tráfico Ilícito de Armas Pequenas.
Antônio Rangel Bandeira é sociólogo, ex-consultor do Escritório da ONU sobre Drogas e Crimes, em Viena, e do Viva Rio. Autor de “Armas para quê?” (Editora LeYa)