Futebol americano: cada vez mais violento, cada vez mais lucrativo
Os Estados Unidos têm quatro grandes festas populares: Dia de Ação de Graças, Natal, Ano-Novo e… o Super Bowl. No entanto, se a final do campeonato de futebol americano constitui de fato um momento de fervor, esse esporte se encontra hoje no centro de um escândalo: vítimas de lesões cerebrais, milhares de ex-jogador
O domingo, 1o de fevereiro de 2015, acontece o 49o Super Bowl, ápice do campeonato de futebol americano, um esporte derivado do futebol (chamado soccer nos Estados Unidos) e do rúgbi. Ritual nacional que glorifica a América musculosa e as lutas, esse encontro é o ponto culminante de uma temporada que vai de setembro a janeiro. É difícil escapar à tempestade que varre o país nos dias que precedem o grande show da Liga Nacional de Futebol (National Football League, NFL).
Retransmitido pela rede NBC, o Super Bowl é o acontecimento mais visto de todo o ano. Em 2014, recorde absoluto, 115 milhões de norte-americanos se juntaram diante da televisão. Meios de comunicação e especialistas não cessam de se extasiar diante das quantias colossais desembolsadas pelos anunciantes – na última edição, um spot de trinta segundos era negociado entre US$ 3 milhões e US$ 5 milhões. Graças a seu status de associação sem fins lucrativos, a NFL não paga imposto algum. No entanto, ela granjeou US$ 9,5 bilhões de rendimentos em 2012, dos quais US$ 4 bilhões em direitos televisivos, e produziu oito dos dez programas mais vistos do ano…1
As ocasiões de brilhar em um Super Bowl são raras para os jogadores profissionais, cuja carreira efetiva dura em média três anos e quatro meses.2 Uma brevidade ainda mais surpreendente quando se sabe que uma temporada tem apenas dezesseis partidas e os jogadores, a cada encontro, só ficam alguns minutos no campo. Em decorrência da especialização das posições de ataque e defesa e da intensidade do jogo, as substituições são constantes. Embora tenha o tempo todo apenas onze membros em campo, uma equipe pode utilizar até cinquenta jogadores por partida, mas isso não impede os ferimentos, que não deixam de acontecer às dúzias. Seu número aumentou em 37% entre 2009 e 2012.
A lógica do espetáculo de circo que reveste o futebol americano – e isso desde a escola básica – conduz a uma violência ampliada. Apesar das proteções sofisticadas, sobretudo um capacete que passou a recobrir toda a cabeça em 1950, e especialmente concebidas para evitar traumatismos cranianos desde o início dos anos 2000, as concussões cerebrais se contam às centenas a cada ano. Os choques são de uma brutalidade extraordinária. Os responsáveis pelo tackle, cujo papel é deter os que recebem os passes ou os corredores quando a bola aterrissa em suas mãos, projetam a cabeça em primeiro lugar. Alguns literalmente perdem os sentidos. Em 2013, um escândalo explodiu quando foi revelado que jogadores e treinadores da equipe do New Orleans Saints recebiam gratificações por ferir seus adversários.
As repetidas concussões cerebrais acabam por provocar lesões definitivas, como a encefalopatia traumática crônica, que foi identificada pela primeira vez no cérebro de jogadores falecidos (ainda não é possível verificá-la sem autópsia). Trata-se de uma forma de degenerescência que se assemelha à doença de Alzheimer e que se estima afetar os boxeadores. No final da carreira, inúmeros ex-jogadores começam a sofrer de perda de memória, depressão profunda, perturbações graves do comportamento ou mesmo demência. Esses distúrbios engendram muitos suicídios e mortes prematuras. Assim, a expectativa de vida dos jogadores da NFL está entre 55 e 60 anos (contra 78 anos para os norte-americanos brancos e 70 para negros).3
Há cerca de vinte anos essa descoberta vem sendo alardeada e, apesar das provas esmagadoras fornecidas pelas universidades de Pittsburgh e Harvard, a NFL e os clubes recusam-se a admitir que seu esporte possa causar lesões no cérebro. Recentemente, o presidente da Liga afirmou em um documentário difundido pela rede PBS: o futebol americano não seria mais perigoso do que qualquer outra atividade.4 Mestre na arte de se comunicar e se esquivar, armada de um batalhão de advogados, a NFL chegou a instalar sua própria comissão de investigação e financiou pesquisas que, evidentemente, concluíram pela inocuidade.
Gladiadores do gramado
Quatro mil e quinhentos jogadores acabaram por prestar queixa contra a NFL em 2012, acusando-a de ter deliberadamente dissimulado os riscos incorridos. Prática corrente nos Estados Unidos para evitar o processo, a Liga inicialmente propôs pagar US$ 765 milhões em vinte anos às vítimas, ou seja, US$ 8,5 mil por jogador por ano. Uma soma irrisória quando se sabe quais são os custos dos cuidados de saúde nos Estados Unidos, onde um exame de imagem por ressonância magnética custa em média US$ 2.611. A NFL esperava desse modo não ter de testemunhar, e assim correr o risco de cometer perjúrio.
Desde então, o descontentamento cresceu – o número de queixosos se eleva hoje a 5 mil –, e os meios de comunicação raramente perdem uma ocasião de cobrir essa epidemia de concussões cerebrais e mortes prematuras de ex-gladiadores.5 A NFL acabou por admitir, em 2014, que um terço dos jogadores de futebol americano profissionais desenvolverá traumatismos cerebrais e terminou por aceitar não limitar o montante das compensações financeiras. Os cálculos de suas seguradoras a levam a pensar que ela não sairá perdendo, pois o aumento previsível de seus rendimentos deverá compensar largamente esses custos.
A NFL se imagina uma multinacional: ela sonha em lançar franquias na Europa, a começar por Londres. Roger Goodell, que ganhou US$ 74 milhões em 2012-20136 – o que faz dele um dos diretores-gerais mais bem pagos do mundo –, anunciou que a NFL projeta receitas de US$ 25 bilhões até 2027. Sem perder, porém, o status de associação sem fins lucrativos…