Futebol como instrumento de mobilização político contra Bolsonaro
Partindo do pressuposto de que a realidade é socialmente construída, a partir de interação humana, estruturas sociais, discursos e ideias compartilhadas, destaca-se que o futebol é a representação da identidade nacional e elemento relevante para compreender o Brasil. Mas qual seria o impacto do futebol nos protestos contra Bolsonaro?
Com os campeonatos paralisados em decorrência da pandemia de Covid-19, o futebol foi às ruas contra o autoritarismo crescente no país. Torcidas organizadas de clubes com rivalidades históricas se uniram, nas últimas semanas, em atos pró-democracia. As bandeiras levantadas pelos torcedores fazem contraponto a grupos bolsonaristas que defendem pautas anti-democráticas, como o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional, além de defender o presidente Jair Bolsonaro.
As ruas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre, entre outras capitais brasileiras, presenciaram grupos antagônicos marchando unidos, em um pacto. Para muitos, seria inconcebível a união diante da beligerância em que muitas vezes estes torcedores se confrontam, mas há algo neste esporte que poucos compreendem.
Partindo do pressuposto de que a realidade é socialmente construída, a partir de interação humana, estruturas sociais, discursos e ideias compartilhadas, destaca-se que o futebol é a representação da identidade nacional e elemento relevante para compreender o Brasil. Mas qual seria o impacto do futebol nos protestos contra Bolsonaro?

Contextualização histórico-política: nunca foi só um esporte
O futebol é muito mais do que um esporte, é um complexo jogo de relações sociais e políticas. Como diz Franklin Foer, o futebol é um esporte com interesses reais, mas também possui poder simbólico. Outrora, já foi utilizado por governos autoritários e democráticos na defesa de interesses internos e externos – como pelos ditadores Benito Mussolini, na Itália, na década de 1930; Rafael Videla, na Argentina, em 1978; ou Emílio Garrastazu Médici, no Brasil, na década de 1970, só para citar alguns. Ou, do outro lado, pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no Jogo da Paz, realizado no Haiti em 2004.
Não há, contudo, apenas histórias de instrumentalização estatal deste esporte, como as citadas anteriormente. Ele também já foi catalisador de insatisfação e de transformação social contra regimes autoritários – como no capítulo egípcio da Primavera Árabe, quando as torcidas de Al Ahly e Zamalek, os dois maiores clubes do país, se juntaram aos protestos contra o ditador Hosni Mubarak; ou quando torcedores de Colo-Colo e Universidad de Chile, principais rivais do futebol chileno com histórico de violência entre eles, protestavam lado a lado em torno da Praça Baquedano, em Santiago, em 2019; ou quando a Democracia Corinthiana, liderada por Sócrates, se uniu aos protestos das Diretas Já! na década de 1980.
Presidentes de clubes, técnicos, jogadores e até líderes de torcidas organizadas falam para uma massa de torcedores, com os quais compartilham alguma identidade. Seus discursos podem não encantar corações e mentes de todos, mas ecoam em muitos. Estes agentes sociais são formadores de opinião. E não raro se tornam políticos profissionais, com mandatos eletivos, como o ex-atacante Romário, que se elegeu senador, ou o ex e atual presidente do Corinthians, Andrés Sanchez, que já teve mandato como deputado federal.
Eles têm capacidade de influenciar aquela massa, com a qual já possuem relação por uma ideia compartilhada, por amor a determinado clube. Ou pelo futebol. Deixemos de lado, neste momento, aqueles que se utilizam do futebol com finalidades exclusas. Não há aqui uma defesa das organizadas – que possuem o estigma de violência -, mas da relação entre futebol e política.
O presidente Jair Bolsonaro talvez não compreenda o complexo instrumento político e social que é o futebol, mas demonstra entender a relevância dele na cultura brasileira. Não à toa, tenta a todo momento associar sua imagem com a do esporte – com frequentes aparições em estádios, fotos com jogadores, técnicos de futebol e camisas de clubes variados. Estratégia usual na busca por popularidade. Afinal, o futebol é um dos principais símbolos da cultura e da identidade brasileira. Bolsonaro não é o único, tampouco está errado ao fazê-lo. Faz parte do jogo.
Há também clubes com ligações ideológicas, embora estas ideias não sejam corroboradas pela massa de torcedores. O que dizer do Flamengo, cujo presidente se associa a figuras políticas da extrema-direita, como o próprio Bolsonaro; o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC); e o deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL-RJ). Ou do Corinthians, que, além de ter participado de movimentos pró-democráticos de outrora, tem torcedores à frente dos movimentos atuais em São Paulo.
As ruas como arenas
Após a contextualização da relação estreita entre futebol e política, pode-se observar que os atos das últimas semanas não são fatos isolados. Na ausência dos estádios, as ruas se tornaram arenas simbólicas, o futebol foi o elemento aglutinador e as bandeiras não são necessariamente clubistas, mas, sim, a defesa de algo tão abstrato quanto real: a democracia brasileira.
Torcedores de Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos marcharam juntos na capital paulista. Gremistas e colorados na capital gaúcha. Torcedores de Flamengo, Botafogo, Vasco, Fluminense e América realizaram ato na capital fluminense. Atleticanos, cruzeirenses e americanos também ocuparam as ruas da capital mineira. Esse pacto ocorreu em diversas outras cidades do país. Por sua natureza organizacional, estes torcedores possuem um grande poder de mobilização espontânea e até horizontal, porém é imprevisível saber a proporção que estes atos vão tomar.
Isso, todavia, é menos importante agora. Afinal, a mobilização dos torcedores representa um ponto de inflexão no contexto atual – de pandemia e, até então, de hegemonia bolsonarista nas ruas. Para começar, demonstrou que Bolsonaro não é o dono da rua, como imaginara, e que as torcidas estão assumindo o protagonismo no vácuo deixado pela oposição – ou melhor: pela esquerda tradicional, como partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais.
É precoce afirmar que os atos terão algum efeito prático quanto aos rumos do governo Bolsonaro. Porém, já cumpriram um papel simbólico e relevante: o de ser a centelha na batalha das ruas. Ao contrário do que os defensores da separação entre futebol e política pregam, futebol não se joga apenas dentro das quatro linhas, mas em diversos cenários e campos. Afinal, futebol não é só um esporte, é uma metáfora.
Marcelo Montanini é jornalista e mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Lisboa.