Futebol e acordos internacionais de investimento: novos árbitros em campo?
A lógica capitalista ganhou espaço no futebol, e clubes se transformaram em clubes-empresa
Não é novidade que clubes de futebol vêm sendo adquiridos por fundos de investimento internacionais, transformando-os em clube-empresa. A criação da Premier League nos anos 1990 marcou a intensificação da financeirização no futebol profissional. Recentemente, um fato inédito chamou atenção: um investidor estrangeiro processou um país soberano em uma arbitragem internacional devido a investimentos em um clube de futebol. Em maio deste ano, Djamel Ben Ferha, um investidor argelino, processou a Bélgica invocando o tratado de investimento bilateral (TBI) entre Argélia e Bélgica/Luxemburgo de 1991.
Ben Ferha investiu 5 milhões de euros no clube belga White Star, de Bruxelas, através da empresa Gulf Dynamics Challenges. Em 2016, o município de Molenbeek anulou um contrato que permitia ao White Star usar um estádio, alegando descumprimento de obrigações contratuais. Sem estádio, o White Star não obteve a licença necessária para disputar a primeira divisão. Após várias tentativas fracassadas de recurso, o clube acabou na terceira divisão e declarou falência em 2020.
Ben Ferha, então, recorreu ao TBI Argélia-Bélgica/Luxemburgo, alegando conduta arbitrária e discriminatória por parte das autoridades belgas, violando disposições do tratado sobre tratamento justo e equitativo, proteção e segurança total, tratamento de nação mais favorecida e expropriação. Ele busca aproximadamente 50 milhões de euros em indenizações. Mas o que é um tratado bilateral de investimento?
Tratados Bilaterais de Investimento
Segundo a UNCTAD, um TBI é um acordo entre dois países para promover e proteger investimentos de empresas em ambos os territórios. Atualmente, existem 2.835 TBIs e outros 462 acordos de investimento internacional. Os primeiros TBIs surgiram após a Segunda Guerra Mundial. Assimétricos e não recíprocos, eles acabam favorecendo países desenvolvidos. Nos anos 1970, acordou-se nas Nações Unidas que os Estados tinham soberania sobre seus recursos naturais, podendo nacionalizar ou expropriar propriedades estrangeiras, desde que pagassem compensação apropriada.
Os TBIs incluem cláusulas de solução de controvérsias, permitindo que investidores privados processem Estados em cortes de arbitragem internacional. Nos anos 1990, a globalização aumentou significativamente o número de acordos multilaterais, regionais e bilaterais de comércio e investimento, resultando em um alto número de ações judiciais internacionais iniciadas por empresas contra Estados.
Críticos argumentam que os TBIs não aumentam os fluxos de investimento esperados e favorecem investidores em detrimento dos Estados receptores, reduzindo o espaço para políticas públicas em áreas de interesse social como saúde, meio ambiente e cultura. Casos notórios incluem a ação da Philip Morris contra o Uruguai por uma medida de saúde pública, da Occidental Petroleum contra o Equador, que pagou quase 2 bilhões de dólares em compensações, e da mineradora italiana Foresti contra a África do Sul por legislação pós-apartheid de inclusão econômica de pessoas negras. Atualmente, há 1.332 casos iniciados por empresas transnacionais contra Estados com base nos TBIs.
O Brasil nunca foi parte desse jogo. Os tratados assinados pelo governo Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990 não foram ratificados pelo Congresso Nacional por violarem a constituição brasileira. Nos anos 2010, com a expansão internacional de empresas brasileiras, o país elaborou um novo modelo de acordo de cooperação e facilitação de investimentos (ACFI), vigente desde 2015, começando com países africanos. O modelo brasileiro não inclui a cláusula investidor-Estado, diferenciando-se dos TBIs tradicionais. Assim, o Brasil não corre o risco de ser levado a uma corte internacional de arbitragem por empresas transnacionais, mas os investimentos estrangeiros em clubes de futebol no país avançam rapidamente. Atualmente, oito clubes da primeira divisão do campeonato brasileiro são clubes-empresa, dois deles comprados por fundos de investimentos (Vasco da Gama e Curitiba). Esse número tende a crescer.

Foto: Markus Spiske
Negócios do Futebol
A lógica capitalista ganhou espaço no futebol, e clubes se transformaram em clubes-empresa. Esse negócio, envolvendo transmissões e vendas de produtos, movimentou, segundo a FIFA, 286 bilhões de dólares em 2022. Clubes brasileiros de primeira e segunda divisão movimentam, anualmente, 8 bilhões de reais, segundo a consultoria Convocado.
Visando esses recursos, fundos de investimento de diferentes origens adquiriram clubes em vários países. O termo “Multi-club Ownership” se traduz no Brasil como “Multipropriedade”, quando grupos econômicos compram ações de clubes ao redor do mundo, similarmente a outros negócios.
Com a lei brasileira da Sociedade Anônima de Futebol (SAF) de 2021, grupos estrangeiros passaram a investir mais no futebol brasileiro. Clubes como Vasco da Gama, Botafogo e Bahia tiveram porcentagens adquiridas por grupos estrangeiros. O fundo 777 Partners comprou 70% da SAF do Vasco e parte dos direitos do clube belga Liège. Ambos recorreram a cortes de arbitragem no Brasil e na Bélgica por descumprimento de termos contratuais.
Dois dos maiores grupos de multipropriedade esportiva do mundo já atuam no Brasil: a Red Bull, que adquiriu o Bragantino em 2019 e o transformou em Red Bull Bragantino, e o City Football Group (CFG), pertencente ao Abu Dhabi United Group, que adquiriu 90% dos bens do Bahia em 2022. O CFG está presente em mais de dez países com diferentes participações acionárias em clubes.
O caso “Djamel Ben Ferha vs. Bélgica” mostra que investimentos estrangeiros em clubes de futebol podem ser arriscados. Embora possam resgatar clubes financeiramente vulneráveis, não há garantias de sucesso. Fatores como patrocínios, direitos de arena e venda de jogadores são cruciais, mas tudo depende da capacidade de consumo de cada clube e de seus gastos. O futebol é competitivo e exige constante investimento para manter a competitividade e o interesse do público.
Quando os negócios de futebol, envolvendo investidores estrangeiros, entram no jogo desigual dos TBIs, podem ser tão arriscados para Estados quanto investimentos em mineração e petróleo. Os TBIs reduzem a capacidade dos Estados de executar políticas públicas em benefício da sociedade, um gol-contra que o mundo do futebol agora começa a conhecer.