Gastronomia político performativa
O processo de construção da politização da gastronomia e quais estratégias estão sendo utilizadas para tanto
O apelo do podcast Panela de Impressão é “olhar para o mundo pelas lentes da comida”. E sob essa mesma instigante lente, cozinheiros, chefes de cozinha, artistas e ativistas têm usado a comida para expandir fronteiras gastronômicas, legitimar novos espaços culinários e problematizar questões políticas, sociais ou ambientais do tempo presente.
No âmbito da gastronomia, ainda faltam estudos nacionais que identifiquem como têm se dado o processo de construção da politização da gastronomia por aqui, e quais estratégias estão sendo utilizadas para tanto. Este texto provoca reflexões acerca do tema e olha para alguns autores e estratégias que complexificam a gastronomia concebida como ciência de conhecimentos relativos à culinária, elitizada e politicamente apática.
Gastropolítica
O conceito de gastropolítica foi introduzido em 1981 pelo antropólogo Arjun Appadurai em um estudo sobre o papel da comida na organização social no sul da Índia. Para ele, o termo gastropolítica refere-se “ao conflito ou competição por recursos culturais ou econômicos específicos, que surgem nas transações sociais em torno dos alimentos, onde comida é o meio e, muitas vezes, a mensagem do conflito”. Essa sua abordagem antropológica que envolve as transações em torno da comida dentro da cultura hindu não é exatamente o contexto de gastropolítica que será usado neste texto, mas é bom louvar as origens.
Raul Matta, pesquisador do Institute of Cultural Anthropology/European Ethnology da University of Göttingen, Alemanha, e Maria Helena Garcia, autora do livro Gastropolitics and the Spectewr of Race, mostram, em seu artigo sobre a Virada Gastropolítica no Peru, que os governos são os protagonistas na formação dos significados culturais e políticos dos alimentos. Iniciativas empreendidas por administrações locais, nacionais e internacionais indicam como as culturas alimentares são chamadas a estabelecer estruturas ideológicas para aumentar as particularidades culturais e a competitividade econômica. Eles mencionam o processo de modernização da cozinha turca, construído através de um projeto multicultural e cosmopolita, apoiado por instituições governamentais e privadas com o objetivo de aproximar a Turquia da Europa, sem perder sua identidade única. E apontam como o governo japonês e as organizações civis espalharam discursos que enfatizam a comida japonesa como o cerne da cultura nipônica. O discurso alimentar no Japão funciona como um dispositivo biopolítico mobilizado para propagar uma prática alimentar normativamente saudável, que criará uma imagem “deliciosa“ de um Japão “saudável”.
A socióloga Michaela DeSoucey, da North Caroline State University, cunhou o termo gastronacionalismo para se referir ao “uso da produção, distribuição e consumo de alimentos para demarcar e sustentar o poder emotivo do apego nacional, bem como o uso de sentimentos nacionalistas para produzir e comercializar alimentos”. Segundo Michaela, a construção do gastronacionalismo pode contribuir para entender melhor as tensões pan-nacionais na política de fronteiras simbólicas – políticas essas que protegem certos alimentos como representantes das tradições culturais nacionais. Para o sociólogo Carlos Alberto Doria, o que move o Estado e o setor público em relação à gastronomia é o turismo, um atrativo hegemônico para assegurar recursos financeiros e uma imagem positiva do país entre os estrangeiros.
Matta e Garcia apresentam outro conceito afinado com a gastropolítica – a gastrodiplomacia de Paul Rockower; uma dimensão da diplomacia cultural que conecta narrativas históricas com práticas gastronômicas atuais, exibe tradições alimentares atualizadas com o objetivo de melhorar a reputação dos países e promover relações culturais e comerciais globais. Na gastrodiplomacia, a comida é usada para perseguir objetivos diplomáticos.
O atual Estado brasileiro está dolorosamente distanciado de um projeto governamental que apoie qualquer tipo de cultura, muito menos a alimentar. As políticas públicas de segurança alimentar, que endossam a cultura como importante legitimadora do conceito de alimentação saudável, vêm sendo destruídas desde o primeiro dia do governo Bolsonaro. Desde sua campanha, ele se demonstrou muito mais interessado em fortalecer as monoculturas de grãos que migram para o exterior, junto com nossa soberania e segurança alimentar. A tarefa de celebrar e promover a fértil cultura alimentar brasileira se mantém como desafio para movimentos como o Slow Food e a Agroecologia, e iniciativas como a do Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares da Fiocruz, além de esforços individuais de ativistas alimentares, culinaristas e chefs de cozinha politizados, que atuam em seus restaurantes.
Mas a América Latina está atenta a esse movimento. Matta e Garcia afirmam que nenhum país do mundo é mais gastropolítico do que o Peru contemporâneo, onde centenas de escolas de culinária estão treinando mais de 80 mil chefs e onde um chef famoso foi, inclusive, candidato a presidente. O Peru está se reconstituindo como um país de cozinheiros e uma meca gastronômica não só por razões comerciais e estéticas, mas também em busca de um projeto político, econômico e cultural em que a culinária seja o motor do desenvolvimento inclusivo, da reconciliação racial entre nativos e colonizadores e de unificação nacional. Assim sendo, esses autores estendem o conceito de gastropolítica para problematizar as relações de poder vinculando os alimentos e cozinhas a mercados, instituições políticas, identidades culturais e sociais e corpos racializados e de gênero.
O autor do livro El Engaño de La Gastronomia Española, José Berasaluce Linares, em artigo sobre Política e Gastronomia, publicado no Diário de Cadiz, diz que grande parte da gastronomia ainda vive no desperdício ostentoso. Muitos agem sob uma frivolidade irresponsável, como se atrás de um prato tivesse apenas um ato de amor supremo, tradição, prazer e esforço, como se a cozinha fosse um campo de margaridas cujas fachadas escondem muita miséria e mazelas sociais. “Alguns chefs acreditam que cumprem seus compromissos cívicos alimentando os pobres para promover sua imagem pública”, diz Linares que continua a provocação ao afirmar que “nossa inovação culinária também deve justificar nossos conflitos de uma forma inovadora. Já imaginou uma criação gastronômica que homenageie a jornada dos imigrantes africanos que arriscam a vida na tentativa de atravessar o estreito? Ou que reivindique nossa culinária ibero-americana de miscigenação?”. “Já pensou”, continua, “que a nossa crise industrial é um bom motivo para criar um prato que exponha as ideias que apoiam a decadência do sistema agroalimentar?” E o historiador finaliza afirmando que “sentar à mesa tem um significado político. O cliente quer ser um consumidor ativo, um ator ético e não um sujeito passivo. O futuro da gastronomia é rir menos e pensar mais”.
Entretanto, em termos de fome endêmica, reverenciamos projetos como a Gastromotiva, a Cozinha Coletiva da Ocupação 9 de Julho, a Casa Solano Trindade, o Orgânico Solidário, a Favela Orgânica, entre muitos que atuam em uma dimensão que é política e essencial por aqui: oferecer comida para quem tem fome e alimentos de qualidade para algumas minorias socialmente desfavorecidas. O projeto Minutos do Bem conta a história de muitos outros projetos solidários e chefs empenhados na difícil tarefa de minimizar a fome estrutural, causada por falta de vontade política.
Mas a ideia aqui é mostrar alguns projetos de ativismo alimentar[1] e o que chamamos de gastronomia político-performativa. São projetos criativos que provocam reflexões sobre a comensalidade e que lidam com questões como a fome, a contaminação alimentar, de gênero, nacionalismo e imigração, entre outros problemas que fazem parte do nosso contrato com a contemporaneidade.
Artevismo Alimentar: sirva-se
O alimento é um potente catalisador para aproximar as pessoas. Além dos simples prazeres do convívio, ao reunir um grupo para participar de experiências compartilhadas, a comida contribui para diminuir a hostilidade, construir noções de civilidade e democracia e desmantelar preconceitos.
Em 1962, Alison Knowles apresentou uma performance fazendo uma salada no Institute of Contemporary Art de Londres. Esse mesmo projeto, chamado posteriormente de Make a Salad, foi refeito em 2008, no Tate Long Weekend, e atraiu um público de 3 mil pessoas, que se serviram da gigantesca salada coletiva. Seguindo essa experiência gastronômica, há uma lista imensa de artistas que usam a comida como troca social dentro e fora dos espaços de artes, desde Gordon Matta Clark, Rirkrit Tiravanija, até os coletivos brasileiros Opavivará e Banquetes.
No projeto Enemy Kitchen (Food Truck), Michel Rakowitz, artista judeu-iraquiano interessado em difundir receitas da culinária de seus ancestrais, ofereceu, em 2003, dentro de um food truck na Califórnia, hospitalidade em vez de hostilidade na forma de pratos da culinária iraquiana, servidos em reproduções de papel de pratos roubados do palácio de Saddam Hussein por soldados dos Estados Unidos durante a guerra do Iraque.
Já o jantar da artista Anna Maria Maiolino celebra a fome em uma grande mesa posta com pratos cheios de terra, de onde germinam sementes de arroz e feijão – uma refeição prometida pela qual o comedor tem que esperar muito tempo para comer. A instalação é uma referência irônica ao modelo econômico da ditadura militar no Brasil, baseado na concentração de renda e na famosa frase “fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”. Outro clamor “a fome não pode esperar” tornou-se tristemente atual no momento em que o Brasil retorna ao Mapa da Fome.
A performance de Geovanni Lima provoca a Vale S.A, a empresa de mineração responsável pelo crime ambiental que afetou o Rio Doce e as cidades de Mariana e Brumadinho, matou mais de duzentas pessoas e poluiu com metais pesados não só o meio ambiente, mas a comida da região. A contaminação por arsênio, cádmio e chumbo em alguns peixes do Rio Doce ultrapassou os limites permitidos por legislação em até́ 140 vezes. Durante a abertura da exposição/denúncia dos impactos da mineração realizada em 2017, na Galeria de Arte e Pesquisa da Ufes (Vitória – ES), e chamada de Deslizes monumentais e sonhos intranquilos: a estética do antropoceno, Lima, em traje culinário pouco usual – pelo menos antes da pandemia – cozinhou uma moqueca com o peixe do Rio Doce e ofereceu o prato capixaba ao público, junto com sua composição nutricional que incluía a quantidade de metais pesados.
A obra Cloaca, do artista Wim Delvoye, consiste em uma máquina monumental com vidros interligados através de tubos e bombas, que recebe diariamente uma quantidade de comida e a mistura com ácidos e enzimas como num sistema gastrointestinal humano. A comida é preparada por renomados chefs de cozinha que proviam a máquina e o resultado final é algo parecido com fezes humanas. No nosso estudo sobre Artevismo Alimentar, afirmamos que o artista belga “ironiza o processo de elitização e espetacularização do ato biológico digestório, até então íntimo e silencioso. A máquina humana se relaciona com as promessas da gastronomia contemporânea – inéditas sensações e inusitadas expectativas gustatórias – e expõe também resultados do processo de modernização ao forçar a máquina a se humanizar”.
Chefs artevistas
Não são somente artistas os envolvidos nessas inspiradoras iniciativas. Alguns projetos desenvolvidos por chefs ou cozinheiros também merecem destaque pela sua criatividade e impacto social.
O Projeto Conflict Kitchen, ou cozinha de esquerda, por exemplo, acontece em um restaurante em Pittsburg, que serve somente comida de nações com as quais os Estados Unidos estão em conflito. A refeição é também uma ocasião para o público conversar sobre a política externa norte-americana em um espaço de formação social alternativa. Versões diferentes da cozinha incluem culinária do Afeganistão, de Cuba, da Coréia do Norte, da Palestina, do Irã e da Venezuela.
My Lucky Tummy é um evento organizado pelo menos duas vezes por ano pelo chef Adam Sudmann, no qual a maioria dos cozinheiros é composta por imigrantes que chegaram aos Estados Unidos como refugiados de diferentes origens. Além de oferecer comida e oportunidade de se vincular com quem come diferente de você, o evento também é uma forma dos chefs se conectarem com o lugar de onde vieram, sob as premissas de um movimento gastronômico chamado Migratory Meals.
Combater o preconceito contra imigrantes e refugiados por meio da promoção de festas e encontros gastronômicos nos quais são servidas refeições de seus países de origem, preparadas por eles, também é a proposta dos franceses Louis Jacquot e Sebastien Prunie, em seu projeto Les Cuistots Migrateurs. A dupla já organizou algumas versões do Refugee Food Festival, em Paris. Os eventos propiciam encontros entre nativos e imigrantes e expõem os locais a novas experiências gastronômicas. Além disso, criam trabalhos e oportunidades para os migrantes, e mudam a percepção preconceituosa dos europeus acerca dos refugiados sob a proposta Babetteana: a reconciliação é mais fácil depois de comer juntos uma boa refeição.
Mais uma tentativa de aproximação e integração de imigrantes via comida é o fenômeno chamado fleet-farming, que acontece nos Estados Unidos e na Inglaterra e permite que pessoas possam cultivar seus alimentos em áreas oferecidas por outros em troca dos produtos alimentares produzidos. Populações de imigrantes e refugiados estão plantando em seus novos países, nos quintais e jardins locais, proporcionando momentos de convivência com “outros”, além de trocas afetivas, fusões de sabores e a emergência de novas heranças alimentares. Por fim, a experiência proporciona sobrevivência e integração para quem está chegando.
Em Nova York, a organização Eat offbeat oferece serviços de entrega de refeições étnicas ou banquetes para festas e recepções nas quais chefes e cozinheiros imigrantes e refugiados cozinham, servem a comida e interagem afetivamente com os convidados, criando integração social e promovendo o sustento para esses indivíduos.
Mas nem só de ativismo a favor de imigrantes vive a gastropolítica. O racismo e a igualdade de gêneros também entram na arena política da gastronomia.
O chef nigeriano radicado nos Estados Unidos, Tunde Wey, assume uma gastronomia político-performática, mesclando a culinária com uma crítica vigorosa sobre a desigualdade racial. Em 2018, ele organizou um evento chamado Hot Chicken Shit, em Nashville, no qual ele cobrou mil dólares para os comensais brancos por quatro pedaços de frango, enquanto os negros comeram de graça. O jornalista Martin Brett apresenta outro projeto do chef realizado em Nova Orleans, onde Wey abriu uma lanchonete na qual os brancos são convidados a pagar duas vezes e meia a mais por um prato de comida do que negros – o equivalente aproximado da disparidade de renda entre os dois grupos.
Um restaurante em São Paulo entrou na Campanha Unfair Menu e apresenta um cardápio no qual todas as refeições custam 30% a mais para os homens. Todos reclamam! Homens e mulheres! “Isso é uma injustiça!”. O gerente é chamado e apresenta os dados: “As mulheres recebem, em média, 30% a menos do que os homens para desempenhar as mesmas funções, “Isso sim é uma injustiça!”.
Na Polônia, o Projeto “O Pão Nosso de Cada Dia” (Our Daily Bread), tem como objetivo promover a tolerância e integrar, socialmente, grupos marginalizados vítimas de crimes de ódio. Assim, gays, imigrantes, judeus e negros fazem o pão para os clientes em uma padaria de Varsóvia, cada pão é embrulhado em uma fita preta com uma foto e informações sobre a pessoa que o preparou e a pergunta: “Esse pão tem o mesmo sabor que teria se um polonês tivesse assado? Experimente o nosso pão e conheça nossos heróis”. Em Curitiba, tem a padaria que prepara pães com ideologia de gênero. O ator Gabriel Castro resolveu virar padeiro e criou o delivery O Pão Que o Viado Amassou, que entrega pães e promove a cultura homossexual.
E por aí seguem esses deliciosos projetos gastropolíticos. No mínimo, eles fazem a gente pensar que política também se faz à mesa, com ironia e criatividade.
Elaine de Azevedo é socióloga e doutora em Sociologia Política, professora no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), autora do Podcast Panela de Impressão e da Escola Livre ComidaETC e coordenadora do Grupo de Pesquisa Diálogos entre Sociologia e Arte/DISSOA.
Yiftah Peled é doutor em Artes Visuais, professor no Departamento de Artes Visuais da Ufes, coordenador do Espaço de Performance, Participação e Performatividade ContemporãoSP e do Grupo de Pesquisa Diálogos entre Sociologia e Arte/DISSOA.
[1] Conceito explorado em
http://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/343/149