Golpes de Estado na pós-modernidade
É possível asseverar a existência de uma diferença essencial entre os golpes de Estado praticados por militares pertencentes às Forças Armadas da modernidade e os executados por fardados partícipes de organizações castrenses da pós-modernidade
Em livros didáticos a história da civilização ocidental geralmente aparece dividida em períodos denominados Pré-História, Antiguidade, Idade Média, Período Moderno e Era Contemporânea. Além dessa divisão existe outra que congrega três épocas, quais sejam, pré-modernidade, modernidade e pós-modernidade. Embora criticada por estudiosos do assunto, tais separações visam facilitar a compreensão, o enquadramento e o exame dos eventos emergentes.
A pré-modernidade diz respeito a um lapso de aproximadamente 2 mil anos que começou a ser ultrapassado a partir do Renascimento. Ela se caracterizou pelo desenvolvimento da vida em áreas rurais, ordem social hierarquizada em classes, governo baseado na monarquia absoluta e no feudalismo, papel central da religião no cotidiano e predominância de narrativas míticas, superstições e ritos mágicos.
O estágio moderno que se iniciou no desenrolar do Renascimento e chegou até meados do século passado apresentou novas peculiaridades, tais como o apreço ao progresso científico e tecnológico, a industrialização, a urbanização, a crença no poder da razão para resolver problemas e melhorar a sociedade, a divulgação de metanarrativas centradas em ideologias diversificadas e a assunção do princípio determinista segundo o qual todo estado presente no mundo está contido em qualquer estado passado e contém todos os estados futuros o qual se assenta nos pressupostos da previsibilidade e da relação entre causa e efeito.
Quanto à pós-modernidade, seus defensores expõem um elevado ceticismo em relação ao poder da razão e renegam a ideia de progresso linear e unidirecional. Revelam uma grande descrença quanto às metanarrativas pois consideram inexistir uma única verdade ou uma cosmovisão abrangente; ao contrário enfatizam a diversidade e a multiplicidade de perspectivas. Apontam a marcante presença do hibridismo cultural e da interconexão global em termos de interação entre diferentes culturas, identidades e formas de conhecimento. Indicam o poder da conduta do consumo, o florescimento do pós-fordismo e a pujante influência da mídia na formação de identidades e na construção da realidade social. Assumem a atitude da incerteza porquanto têm como crença que a realidade circundante é predominantemente instável, descontínua, efêmera, caótica e que a história humana caminha em direção a rumos indefinidos.
Vale ressaltar que muitos investigadores dessa temática exibem uma postura divergente, porém sustentável e admissível, qual seja, rejeitam sua existência enquanto um novo estágio superador do antecedente e negam algumas das suas particularidades. Veja-se o que disseram: trata-se de uma outra forma de modernidade que é marcada pelo significativo aumento da contingência face à crescente ação humana sobre a natureza e pela expansão da autonomia das pessoas; diz respeito a um projeto inacabado da modernidade; faz referência à uma modernidade líquida cujas relações sociais consequentes do capitalismo globalizado se revelam menos frequentes e duradouras; refere-se a um lapso da modernidade onde acontece a progressiva degradação das classes dominantes, o vertiginoso desenvolvimento dos meios de comunicação e o soçobro mundial da esquerda na política; indica a emergência de uma altermodernidade, isto é, de uma realidade marcada pela mobilidade resultante da porosidade das fronteiras entre Estados nacionais, das migrações, do turismo crescente e dos fluxos econômico-financeiros acelerados.
A modernidade trouxe consigo um tipo de Estado que lhe é consoante. Ele se mostra possuidor de uma autoridade centralizada, portador de um governo burocrático, detentor de um território definido por fronteiras visíveis, mantenedor de forças coercitivas regulares, fruidor do monopólio legítimo da violência e defensor da soberania nacional.
Imagem: Creative Commons/Flickr
Tal Estado criou Forças Armadas congruentes à sua feição. Assim sendo, elas apresentam uma estrutura de comando baseada em uma hierarquia rígida, com ênfase na disciplina imposta e na conservação de uma flórea cadeia de comando. Voltam-se predominantemente aos conflitos convencionais, com uma abordagem centrada no Estado-Nação e emprego de estratégias tradicionais de combate. Seus governantes, principalmente dos Estados mais desenvolvidos, agem para instalar extensões delas em pontos relevantes do planeta visando garantir a capacidade de projeção do poder. Os soldados, alistados pela conscrição, são dotados de uma mentalidade padronizada decorrente do treino relativo ao ato de pensar e agir segundo os parâmetros da guerra convencional que é assentada em objetivos claros, busca da derrota do inimigo, luta em confrontos diretos, presença de armas portáteis, veículos blindados e equipamentos de proteção pessoal.
Por sua vez, a pós-modernidade que agrega a globalização neoliberal, forjou um Estado com características diferentes, porém harmônicas a ela. E embora a concepção de Estado moderno e pós-moderno não sejam mutuamente excludentes e muitas vezes coexistem em diferentes formas e graus, o pós-moderno agrega uma maior descentralização do poder, a valorização da participação cidadã, a rejeição do uso da violência para a solução de litígios, a crescente irrelevância das fronteiras, o apreço à transparência dos atos de governo, a afeição pela interdependência dos países, a consciência da vulnerabilidade e a vigilância mútua entre os mesmos.
Forças Armadas correspondentes emergiram. E suas peculiaridades apontam para a valorização da flexibilidade e da capacidade de adaptação a ameaças e ambientes operacionais em constante transformação; ênfase nas operações multinacionais conjuntas de países aliados; exibição de capacidades específicas para enfrentar cominações não convencionais como terrorismo, insurgência, ataques cibernéticos, conflitos assimétricos e contendas híbridas; manutenção de grupamentos voltados para causas humanitárias, missões de paz e enfrentamento de desastres e maleabilidade da hierarquia pela utilização de formas de liderança descentralizadas.
Militares contratados e regidos por leis trabalhistas possuidores de atributos compatíveis passaram a compor suas fileiras com habilidade para realizar diligências pessoais; apresentação de ideias alternativas; demonstração de competência adaptativa; exibição de mentalidade flexível; experiência para atuar em operações especiais e diversificadas; talento para coletar, analisar e avaliar informações de modo rápido e preciso, desfrute da consciência situacional; destreza no uso de tecnologia avançada de última geração e capacidade para atuar em ambientes multinacionais envolvedores de forças aliadas, agências governamentais, ONGs e atores locais.
De modo parecido ao que foi dito em relação aos Estados modernos e pós-modernos referente à impossibilidade de estabelecer uma clara delimitação entre ambos, cabe dizer que também é inviável fixar uma tipologia impermeável para cada uma das instituições bélicas junto a um modelo distintivo de militar pertencente a cada uma delas. Entretanto, é possível asseverar a existência de uma diferença essencial entre os golpes de Estado praticados por militares pertencentes às Forças Armadas da modernidade e os executados por fardados partícipes de organizações castrenses da pós-modernidade.
Dezenas de golpes ocorridos em sociedades modernas situadas na América Latina, Ásia, África e Europa, ou seja, as destituições ilegais de governantes pelos fardados, se caracterizaram pela retirada expedita deles do poder e colocação de militares para o exercício da gestão do Estado, de forma ditatorial e com permanência por vários anos. Quanto a esses golpes é preciso dizer que o perfil moderno das Forças Armadas dotadas com servidores uniformizados de feitio correlato, conforme exposto anteriormente, contribuiu de maneira decisiva para a materialização dos mesmos.
Exemplo típico e ilustrativo foi o acontecido no Chile em 1973. Em setembro daquele ano, o general Augusto Pinochet decretou o fim do governo de Salvador Allende democraticamente eleito pelos chilenos e assumiu o cargo de presidente da República. O golpe foi desencadeado por uma firme coalizão entre Exército, Marinha, Força Aérea e Polícia. Essa superciliosa aliança contou com o sólido apoio da elite financeira local, da nata do empresariado nativo, das grandes corporações alóctones e dos Estados Unidos da América, cujos dirigentes políticos viam Allende como uma ameaça aos interesses regionais por causa das decisões tomadas por ele referentes a nacionalizações de empresas estrangeiras e da aproximação com regimes socialistas.
Teorias modernas foram elaboradas para explicar os atos golpistas. Elas se apresentaram de duas formas, quais sejam, as que enfatizavam os caracteres das instituições bélicas e as que concediam relevo aos fatores externos a elas. Dentre as primeiras podem ser mencionadas a da defesa do Estado em função do entendimento por parte dos fardados de que ele é uma entidade neutra e autônoma; a da indisciplina social baseada na crença da derrocada da ordem civil e da superioridade moral da ordem militar e a da ação tutelar sobre o Estado decorrente da elevada autonomia desfrutada pelos servidores de uniforme.
Em relação às segundas cabe citar a do destacado poder inerente ao capital internacional consoante e favorável à instauração do Estado burocrático autoritário; a da fragilidade da dominação burguesa no que diz respeito ao evento da transição da democracia restritiva para a democracia de participação ampliada e à do nível de atuação política na sociedade, isto é, o crescente envolvimento dos múltiplos setores da coletividade em questões debatíveis no âmbito da esfera pública.
Por sua vez os golpes de Estado manifestados na pós-modernidade se mostram bem diferentes. Eles decorrem de salientes pressões exercidas pelos militares com vistas a fazer com que os governantes visados abdiquem de seus cargos. Seus lugares não são ocupados por funcionários fardados e sim por outros políticos civis que seguem dirigindo seus países de acordo com as normas democráticas.
O golpe de Estado pós-moderno inicial deu-se na Turquia em fevereiro de 1997. Para expor suas insatisfações com a administração do primeiro-ministro Necmettin Erbakan, os militares realizaram um protesto usando um comboio de tanques e blindados em Ancara no dia 4 daquele mês. No dia do golpe, o Conselho de Segurança Nacional, composto por cinco militares e cinco políticos emitiu um comunicado sobre a presença de uma séria ameaça islâmica no país. Posteriormente divulgaram um documento exigindo o encerramento das escolas religiosas, a finalização das atividades de grupos religiosos e a entrega de todos os cursos religiosos privados ao Estado sob a alegação de sua laicidade constitucional. E mais à frente o almirante Salim Dervisoglo enviou um memorando ao primeiro-ministro solicitando sua renúncia, ocorrida em junho, baseado no argumento do apoio outorgado às políticas religiosas que colocavam em risco a secularidade do país. Seu lugar foi ocupado pelo líder do Partido da Pátria Mesut Yilmaz nomeado pelo presidente Süleyman Demire.
Na Venezuela, em abril de 2002 também ocorreu uma tentativa de golpe que causou o afastamento de Hugo Chávez da presidência por um curto período. Na época reinava um crescente sentimento de insatisfação entre militares que pediam a renúncia em razão das alianças feitas por Chávez com Cuba e grupos paramilitares. Por sua vez, fardados da reserva reforçaram esse pedido. Tais conspiradores também ensaiaram utilizar as manifestações sociais favoráveis à sua remoção. Diante das ameaças circundantes, Chávez mobilizou uma força de emergência para proteger o palácio do governo cujo resultado foi o ferimento e a morte de dezenas de venezuelanos durante a rebelião popular. Essa tragédia levou o alto comando militar a exigir sua saída do governo e seu consequente aprisionamento. O presidente da Federação Venezuelana de Câmaras de Comércio, Pedro Carmona, tornou-se presidente interino. O retorno de Chávez ao poder foi facilitado graças a manifestações populares e ao empenho de grupos militares leais existentes nas fileiras do Exército.
Outrossim, um golpe semelhante aconteceu Bolívia em 2019 causador da deposição de Evo Morales. Algumas de suas condutas, particularmente a relativa ao empenho no processo de reeleição presidencial afetaram a estabilidade politica do país e ele passou a receber constantes críticas e pressionamentos oriundos da oposição. Sua reeleição tornou-se questionada pelo povo, apesar de ter muita gente ao seu lado, e a oposição acusou o Tribunal Superior de fraude nas eleições. A Organização dos Estados Americanos também levantou suspeitas sobre a credibilidade e transparência do escrutínio. Embora tenha feito a convocatória de novas eleições, o pensamento vigente era de que ele havia demorado demais para a anunciar. Tendo em vista a complexidade da situação o comandante das Forças Armadas, general Williams Kaliman, em nome do alto comando e por meio de um comunicado, pediu a Morales a abdicação da Presidência de República com vistas a solucionar o impasse político. No mesmo dia ele anunciou sua renúncia, e a senadora Jeanine Anez se autoproclamou presidente interina do país.
Houve ainda o golpe em Madagascar em 2009 antecedido por uma série de protestos populares. Nesse evento os soldados do Exército se dirigiram ao palácio do governo e afastaram o presidente Marc Ravalomanana. O vice-almirante Ramaroson passou a chefia do país a Andry Rajoelina, ex-prefeito da capital. Na Guiné Bissau em 2010 veio à tona outro golpe. Ele se concretizou porque o Exército descobriu a existência de um acordo militar secreto com Angola destinado à recepção e alocação de tropas estrangeiras. Em decorrência disso, os fardados removeram o primeiro-ministro Carlos Gomes e o presidente Raimundo Pereira. A presidente do Conselho de Ministros, Adiatu Djaló Nandigna assumiu a chefia do governo. No Brasil, aconteceu uma frustrada tentativa de golpe nos primórdios de 2023. Militares da ativa e da reserva ensaiaram impedir a posse de Lula, eleito no ano anterior, e manter Bolsonaro na Presidência.
As descrições dos golpes de Estado mencionados apontam diferenças essenciais entre os da modernidade e os da pós-modernidade. Entretanto vale destacar que eles não são plenos de exclusividade, haja vista que na época contemporânea já ocorreram alguns dotados de características próprias do passado, tal como o ocorrido no Chade em 2021 liderado pelo general Mahamat Déby, que assumiu o controle do governo.
O golpe pós-moderno se apresenta como uma novidade no repertório castrense relativo às intromissões na esfera política, ao lado do exercício do poder moderador e da tomada e assunção ilegal da administração do Estado. Seu aspecto atenuante diz respeito ao fato de não assassinar o regime democrático em vigor. E as teorias explicativas da modernidade pouco servem para sua elucidação, haja vista os diversos motivos provocadores de sua emergência.
Parece que ele tende a ser o preferido porquanto é consoante às características da suposta pós-modernidade. Com efeito, as nações atuais encontram-se submetidas a diversas amarras resultantes de inúmeros acordos mútuos e tratados internacionais. Os tribunais de justiça localizados no exterior se revelam dotados de uma elevada capacidade dissuasória. Acontece o exercício de uma explícita e recíproca vigilância entre os Estados. As sociedades exibem o avanço do processo de fragmentação bem como a exacerbação da autonomia e do individualismo. A crescente e irrefreável onda de civilinização tem causado transformações significativas nas Forças Armadas, tais como o recrutamento voluntário, o ingresso das mulheres e o emprego de estilos participativos de gestão e liderança. Todos esses eventos, dentre outros, dificultam demasiadamente a ocorrência de alianças no âmbito social e o mantenimento da coesão nas fileiras castrenses, ambas indispensáveis à prática do ato golpista tradicional.
Antônio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em Educação pela USP e autor de Democracia e ensino militar (Cortez) e A reforma do ensino médio e a formação para a cidadania (Pontes).