Governo brasileiro deixa de arrecadar bilhões com isenção fiscal aos agrotóxicos
Em tempos de cortes orçamentários em áreas sociais – como saúde e educação -, o governo brasileiro escolhe favorecer o agronegócio, em especial empresas produtoras de agrotóxicos, e com isso deixa de arrecadar bilhões
Neste momento da política brasileira domina a agenda da austeridade econômica e o enxugamento da máquina da administração pública, com cortes nos investimentos sociais. O discurso é certeiro: a reforma da previdência é necessária para não quebrar o Estado brasileiro. Contudo, nenhuma palavra é dita sobre os bilhões estimados que se deixa de arrecadar para beneficiar setores do agronegócio, especialmente os benefícios diretos de isenção de impostos aos agrotóxicos – nem se fala aqui dos subsídios diretos de crédito ou políticas de infraestrutura e pesquisa para o setor e nem dos custos indiretos arcados pela administração pública com tal política.
Não é novidade que os agrotóxicos são a prioridade no atual governo. Somente neste ano 239 agrotóxicos foram liberados. A equipe do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), responsável pela liberação do registro desses produtos foi reforçada e com isso, esse é o governo que, proporcionalmente, mais liberou agrotóxicos no Brasil. Também não é novidade que a priorização nos processos de liberações de agrotóxicos é uma decisão política.
Isenções tributárias
No entanto, as priorizações políticas aos agrotóxicos e ao agronegócio em larga escala no Brasil não param por aí. Não há somente uma flexibilização para a liberação de produtos agroquímicos no Brasil, mas uma real indução e incentivo do Estado brasileiro ao seu uso, por meio de benefícios tributários a esses produtos, com uma série de isenções ou reduções fiscais.
Os agrotóxicos, produtos comprovadamente danosos à saúde humana e à biodiversidade, têm uma série de benefícios fiscais, especialmente nos tributos Cofins, PIS/Pasep, ICMS e IPI. O Convênio 100/97 do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) concede redução de 60% da base de cálculo do Imposto de Circulação sobre Mercadorias e Serviços (ICMS) nas saídas interestaduais do produto. O Decreto 7.660/2011 estabelece isenção total do Imposto sobre Produtos Industrializados (TIPI) a inúmeros agrotóxicos.
Apenas em 2018, os cofres públicos brasileiros deixaram de receber R$ 2,07 bilhões em razão da isenção fiscal dos agrotóxicos em relação ao COFINS e PIS/PASEP, segundo o Tribunal de Contas da União. A estimativa do defensor público do estado de São Paulo, Marcelo Novaes, é que com os benefícios diretos tributários o Estado deixe de arrecadar R$ 8,53 bilhões anualmente.
Para minimizar as desigualdades de renda e de capacidade contributiva no país, a Constituição Federal estabelece como fundamento o princípio da seletividade, calcado na essencialidade do produto. Isto é, produtos essenciais para a população brasileira teriam menor carga tributária. Acompanhando a essencialidade, o princípio da seletividade permite a escolha de quais produtos e com quais alíquotas os produtos seriam tributados, conforme a maior ou menor utilidade social. O ICMS e IPI são impostos pautados na seletividade e essencialidade tributárias: quanto mais essenciais, menor a incidência tributária.
Frisa-se que há a previsão de que somente em tratamentos de saúde decorrentes de contaminação por agroquímicos o país gasta US$ 1,28 para cada US$ 1 utilizado na compra de agrotóxicos, conforme pesquisa do economista do IBGE, Wagner Soares. Nesta conta não estão os danos para reparação ambiental, a perda da biodiversidade nacional (como é o caso do extermínio de insetos polinizadores, por exemplo) e nem o prejuízo privado de inúmeros agricultores que têm suas plantações ou cultivos contaminados com venenos agrícolas disseminados pelo ar, pelo solo e pela água.
Isto é, as isenções favorecem especialmente determinadas parcelas de grupos econômicos e produtivos do país e do exterior, especialmente as indústrias dos agrotóxicos, em sua maioria transnacionais, e aos setores do agronegócio extensivo das culturas que mais aplicam agrotóxicos (soja, milho e algodão). Em oposição, a medida confere altíssimo custo à população brasileira de forma geral, ao patrimônio e ao erário público, por meio desses custos indiretos causados por tais produtos. É um verdadeiro deslocamento de recursos públicos aos setores privados, de forma obscura e implícita. É a privatização do lucro e a socialização do dano.
Deste modo, os critérios para o estabelecimento de benefícios fiscais não podem ser simplesmente arbitrários ou atender aos interesses exclusivos de mercado. A isenção de tributos deve estar num contexto de percepção ampla de garantia de qualidade de vida ou do mínimo para o consumo da população. Inclusive, há a inclinação do legislador e do Poder Executivo de elevar as alíquotas para produtos que devem ser desincentivados do consumo nacional, como é o caso das altas alíquotas determinadas na Tabela do IPI para bebidas alcoólicas e cigarros ou de incidência razoável aos refrigerantes, refrescos artificiais e chocolates.
É no mínimo contraditório e paradoxal que (como anuncia-se), um país que vive uma extrema crise financeira, que propagandeia a imprescindibilidade de cortes em investimentos sociais e políticas públicas, especialmente após a aprovação da Emenda Constitucional nº 95/2016, se opor à arrecadação com a tributação de agrotóxicos. Mas que, sobretudo, onera o erário público dirigido à saúde e meio ambiente na tentativa de reversão dos impactos de uso de tais produtos. É a edificação de um Estado debilmente liberal no discurso, mas que na realidade assume os ônus dos impactos nocivos da iniciativa privada de produção agroindustrial
Tal debate está em pauta na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5553 no Supremo Tribunal Federal, que tem nas mãos, sob a relatoria do Ministro Edson Fachin, a possibilidade de declarar tais benefícios aos agrotóxicos inconstitucionais. Cabe a sociedade, como um todo, acompanhar este debate e pressionar o governo brasileiro para que adote medidas em favor da vida e não em prol de “incentivos” que geram o adoecimento da população, a contaminação ambiental e a menor arrecadação de recursos que poderiam ser utilizados para áreas fundamentais.
Lizely Borges é jornalista da Terra de Direitos e mestre em comunicação pela Universidade de Brasília. Naiara Bittencourt é advogada popular da Terra de Direitos, doutoranda em direitos humanos e democracia pela UFPR e integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida.