Governo federal viola direitos culturais
A opinião pública condenou a cópia do discurso de Goebbels por Alvim, mas a fala do ex-secretário apresenta elementos totalitários que vão além do proferido no passado pelo nazista alemão. Ao defender como política de Estado uma arte “enraizada na nobreza dos mitos fundantes do País”, o governo explicita sua intenção de voltar aos ideais colonizadores, em que a produção artística ilustrava o discurso forjado de uma nação em harmonia, em que indígenas e negros escravizados eram protegidos por senhores brancos benevolentes.
A queda de Roberto Alvim da Secretaria Especial de Cultura não resolve o problema que a pasta enfrenta na gestão de Jair Bolsonaro. O discurso proferido pelo dramaturgo conservador, que copia Joseph Goebbels, ministro da Propaganda na Alemanha nazista, não representa somente a afinidade pessoal de Alvim com a proposta autoritária, e sim o atendimento a diretrizes amplas do governo, que se empenha estrategicamente em uma espécie de Cruzada contra a liberdade de expressão, a diversidade e a memória.
Condenando certas manifestações artísticas como “degeneradas”, o plano de Bolsonaro para a Cultura visa exaltar o patriotismo, a família, a fé e os dogmas cristãos na construção de uma arte que os nazistas chamam de “heroica”. O propósito fere dispositivos legais que garantem o pleno exercício dos direitos culturais, expressos não apenas na Declaração Universal dos Direitos Humanos e em convenções internacionais, mas também determinados pelo artigo 215 da Constituição Federal.
A Carta Magna obriga o Estado a garantir o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional; a apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais; a proteger expressões populares, indígenas e afro-brasileiras; a valorizar a diversidade étnica e regional. O documento basilar da sociedade brasileira ainda garante a livre expressão da atividade intelectual e artística, independentemente de censura ou licença.
Colonizador
A opinião pública condenou a cópia do discurso de Goebbels por Alvim, mas a fala do ex-secretário apresenta elementos totalitários que vão além do proferido no passado pelo nazista alemão. Ao defender como política de Estado uma arte “enraizada na nobreza dos mitos fundantes do País”, o governo explicita sua intenção de voltar aos ideais colonizadores, em que a produção artística ilustrava o discurso forjado de uma nação em harmonia, em que indígenas e negros escravizados eram protegidos por senhores brancos benevolentes.
A civilização brasileira foi construída sobre mitos violentos que movimentos sociais centenários se empenham em combater. Vive-se até hoje, como bem explica Abdias do Nascimento, o mito da democracia racial, o mito dos senhores benevolentes, o mito de uma sociedade harmônica e justa. A arte brasileira tem o dever social de questionar esses mitos, de reconstruir os discursos da história fazendo jus ao passado e à memória, e não há comando superior de nenhuma ordem capaz de silenciar o que lhe é inerente.
Não foi Roberto Alvim quem extinguiu o ministério da Cultura; não foi ele quem cancelou editais de valorização da diversidade de gênero; não foi ele também quem submeteu a pasta ao Turismo, condição absurda posto que algumas políticas culturais vão de encontro com metas econômicas e turísticas. A cultura brasileira não é bibelô para estrangeiro ver, nem sagrada para agradar a Deus. Ela é raivosa, sangrenta, profana, fruto dos processos violentos que se deram nessa terra.
Aparentemente é necessário lembrar que a escravização e o sequestro de negros africanos conservam até hoje feridas não curadas; o genocídio de indígenas contabiliza cada vez mais mortes; a desigualdade social aumenta a fome; o patriarcado segue assassinando mulheres forçadas a voltar para um lugar de silêncio e obediência; o meio ambiente agoniza. Diante de tanta tragédia, é delírio esperar expressões artísticas baseadas em ideais belos e heroicos.
O convite a Regina Duarte para assumir uma pasta importante como a Cultura só comprova que é proposital a política de violação dos direitos culturais, que reverbera em fundações e institutos importantes ligados ao órgão para a preservação da diversidade e da memória. Bolsonaro tem consciência de seus atos, mas a classe artística vai sobreviver e vai ser central para fazer justiça e contar a história no futuro, como sempre fez. Seguiremos fortes, por mais que o governo tente nos calar.
Raisa Pina é jornalista, pesquisadora em arte, cultura e política. Divulga curiosidades da história da arte no Instagram (@raisarpina)