Gregos com a faca no pescoço
Nem os aposentados nem os assalariados (do setor público ou privado) sabem quanto ganharão no fim do mês. Trabalhar sem receber tornou-se comum. Até 2015, 120 mil assalariados com mais de 53 anos devem deixar o emprego. E, se de um lado, os salários diminuem, do outro, novos impostos são criados constantementeNoëlle Burgi
Você não sabe o que vai acontecer no dia seguinte, quando acordar.” Não há quem não pronuncie essa frase, em um momento ou outro, pelas ruas de Atenas, da Tessalônica ou de outra cidade grega. Na Grécia, o fantasma do amanhã é vivido como uma prisão, cada um com a certeza de uma existência individual e coletiva ameaçada pela destruição iminente. Contudo, não é a primeira vez que esse país de história tormentosa passa por uma provação. Os gregos ainda se concebem como um povo de inteligência especial, caráter forte, sobretudo em momentos adversos. “Sempre vivemos períodos difíceis, porém sempre conseguimos remediar a situação. Agora, arrancaram nossa esperança”, suspira a gerente de uma pequena empresa.
Enquanto os programas de austeridade se acumulam, leis, decretos, circulares ou simples decisões políticas colocam em xeque as normas sociais, econômicas e administrativas do país. Tudo muda todos os dias. O que ontem era verdade hoje já não é mais; amanhã, não se sabe. A população agora lida com uma burocracia cada vez mais kafkiana, com regras incompreensíveis e mutáveis. “As pessoas querem estar em conformidade com a lei, mas não sabemos o que dizer aos cidadãos, não temos os detalhes das novas medidas!”, explica um funcionário a seus colegas em uma prefeitura de Cíclades. Um homem teve de pagar 200 euros e apresentar treze papéis e cópias da identidade para renovar a carteira de motorista. Alguns funcionários públicos resistem de forma passiva. “Se cortarem os salários, eles não trabalham mais. Quando você chama a polícia para avisar que algo aconteceu, ela responde: ‘O problema é seu, vire-se!’”, conta um engenheiro da Marinha mercante aposentado, muito exaltado contra o governo. As tensões se tornam agudas, e é possível observar um aumento sensível da violência familiar, de roubos e homicídios.1
De um lado, os salários diminuem – de 35% a 40% em alguns setores –; do outro, novos impostos são criados constantemente, às vezes com efeito retroativo para abarcar o ano civil, alguns cobrados na fonte, outros não. O arrocho salarial ultrapassa os 50%. Entre as últimas taxas inventadas, figuram, a partir do verão [do Hemisfério Norte] de 2011, um imposto de solidariedade (de 1% a 4% da renda anual); uma taxa de petróleo e gás natural que é subtraída dos contribuintes diretamente nas contas de energia; a diminuição do limite a partir do qual a renda deve ser tributada (de 5 mil euros, passou a 2 mil por ano); uma taxa imobiliária de 0,50 a 20 euros por metro quadrado também cobrada na conta de energia e pagável em duas ou três vezes sob ameaça de corte de luz e outras penalidades.
No início de novembro de 2011, nem os aposentados nem os assalariados (do setor público ou privado) sabem quanto ganharão no fim do mês. Trabalhar sem receber tornou-se comum. Nas empresas e serviços públicos em via de “recuperação”, um plano de redução drástica de efetivos foi colocado em andamento. Até 2015, 120 mil assalariados com mais de 53 anos devem deixar o emprego e entrar na “reserva”. Essa é a antecâmara da aposentadoria dos funcionários que cumpriram 33 anos de serviço: os empregados vão para casa e passam a receber 60% do salário-base. Um grande número de funcionários aposentados terá uma remuneração miserável, como nos explica um grupo de ex-ferroviários de 50 anos ou mais. Convertidos em guardas de museu no contexto do que se chama “mobilização voluntária”,2 chegam a ganhar entre 1,8 mil e 2 mil euros por mês, salário relativamente confortável na Grécia; o salário-base dos trabalhadores oscila atualmente entre 1.100 e 1.300 euros e se limitará a 600 euros para os “reservistas”. Legalmente, eles podem perder o direito a essa remuneração se buscarem outro trabalho remunerado e, neste momento, as autoridades não hesitam em aplicar as sanções.
Catastrófica e selvagem
A compressão dos salários cria uma situação selvagem. “Não pago mais minhas contas, reduzi as compras, as lojas fecham, o desemprego aumenta…”, confessa uma habitante da Tessalônica. Em maio de 2011, a taxa de desemprego oficial – provavelmente muito inferior à taxa real – era de 16,6% (e de 40% entre os jovens), ou seja, dez pontos percentuais a mais que em 2008.
Catastrófica, a crise econômica, social e política tem consequências alarmantes para a saúde pública. Os orçamentos dos hospitais e postos de saúde foram cortados em média em 40%. Enquanto isso, a demanda nos prontos-socorros aumenta e, simultaneamente, cai a disponibilidade de medicamentos. Muitas pessoas afirmam que os remédios não serão, pelo menos não imediatamente, distribuídos. “Meu pai sofre de Parkinson e seus medicamentos custam 500 euros por mês. A farmácia avisou que não poderá mais entregá-los se não pagarmos o seguro-saúde”, indigna-se um jornalista.
As doenças físicas (principalmente as cardíacas) e psíquicas aumentam em proporções inquietantes. Pesquisas epidemiológicas recentes mostram que a insustentável dificuldade da vida cotidiana, em contextos de endividamento pessoal e desemprego, provoca “mais transtornos depressivos, perturbações e uma angústia generalizada”, o que contribui para explicar o aumento vertiginoso do número de suicidas.3 De acordo com dados não oficiais evocados pelos parlamentares, os suicídios cresceram 25% em 2010 em relação a 2009 e, segundo o Ministério da Saúde, 40% durante a primeira metade de 2011, se comparados com o mesmo período no ano anterior. Os dados publicados pela revista The Lancet4indicam um aumento preocupante da prostituição, assim como das contaminações pelo HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis.5 O número de desabrigados nunca foi tão alto, e o perfil das pessoas nessa situação está mudando: “Antes, os moradores de rua eram principalmente alcoólatras, dependentes de drogas e doentes mentais; agora, há mais chance de encontrar entre eles indivíduos de famílias de classe média, jovens e pessoas moderadamente pobres”.6
Como sair de uma crise tão grave, “bárbara”, segundo a expressão de um assistente social? Abandonada à própria sorte, a sociedade não tem mais recursos suficientes para contar com a solidariedade familiar que, em geral, compensa as tradicionais carências do Estado social. Muitos querem deixar o país, e os que podem partem. Para os que ficam, as oportunidades são muito limitadas. Não raro recorrem à Igreja, que oferece apoio organizando refeições coletivas ou emprestando edifícios para abrigar pessoas. Na Tessalônica, o chanceler da Metrópole Ortodoxa, o pai Stefanos Tolios, recebe dezenas de pessoas desesperadas à procura de trabalho. O que ele pode fazer diante das pilhas de dossiês que crescem a cada dia depois das visitas? Em muitas cidades (Volos, Patras, Heraklion, Atenas, Corfu, Tessalônica), comunidades se aventuram em criar uma economia paralela com sistemas locais de troca. Essas iniciativas, porém, não estão à altura do problema. A situação é tão grave que muitas famílias chegam a trazer de volta para casa avós e avôs que estavam em casas de repouso para recuperar os 300 ou 400 euros de suas aposentadorias.
A crueldade científica
Nenhum país pode resistir a tal choque. A Grécia, menos ainda, pois não está preparada para enfrentar as consequências sociais e sanitárias da austeridade que as elites transnacionais e nacionais estão impondo ao país, com “crueldade científica”.7 A Grécia não teve tempo nem meios de desenvolver um sistema de proteção social consolidado, e o pouco que existe estruturado está ruindo. Ademais, o sistema clientelista, outra face de um Estado historicamente com pouca capacidade de crescimento, gangrenou o pouco que se pôde construir. “Agora, tudo está afundando”, observa o intelectual Sotiris Lainas, da Universidade Aristóteles de Tessalônica, responsável, entre outras coisas, pela estrutura de intervenção terapêutica.
O vice-primeiro-ministro do governo anterior, o de George Papandreou, suprimiu 210 frentes orçamentárias do Ministério da Saúde na tentativa de economizar para satisfazer as exigências da Troika (União Europeia, FMI e Banco Central Europeu). Com o mesmo objetivo, condenou ao fechamento estruturas (grandes e pequenas) e programas de saúde para moradores de rua, sem considerar a qualidade dessas ações e colocando em risco o trabalho de equipes realmente úteis, muitas vezes indispensáveis (como as da Federação Pan-Helênica da Doença de Alzheimer, por exemplo). A intervenção de forças transnacionais que trabalham há pelo menos trinta anos no projeto de desconstrução do Estado social tem como equivalentes, em âmbito nacional, atores que há muito tempo estão incorporados ao sistema clientelista, ineficaz e corrupto.
Como se já não fosse suficiente, jogam com o suposto atentado à moralidade pelo qual os gregos, à imagem de seus dirigentes, seriam considerados culpados – e devolvem a responsabilidade da crise para a população. O procedimento é clássico: basta estigmatizar alguns grupos sociais e colocá-los sob veredicto popular. Funcionários, médicos e comerciantes suspeitos de dissimular suas contas ao fisco são o alvo dessa política. A população não ignora a raiz do problema – “o sistema e os dirigentes” –, porém não sabe como agir.
A corrupção e o clientelismo possuem raízes históricas profundas. A Grécia jamais contou com um Estado moderno dotado de burocracia relativamente autônoma, livre dos interesses privados e de soberanos. Esse país periférico no sistema internacional, cujas instituições foram importadas e impostas do exterior por potências estrangeiras desde sua independência, em 1830,8 sempre foi tributário de relações de forças internacionais e integrado à economia capitalista em uma posição de dependência. Desde sua origem, a Grécia herdou dessa trajetória um modelo político artificialmente imposto a uma sociedade tradicional e fragmentada, estruturada em lealdades locais, laços familiares estendidos, vilarejos e valores comunitários. O sistema político instituído, ao contrário, está baseado na autoridade e na centralização, e é refratário tanto à separação dos poderes como às reivindicações de autonomia local ou de democracia consistente.9 O clientelismo e a corrupção encontram nesse contexto um terreno fértil para se perpetuar. Servem aos interesses e asseguram a dominação das elites. Os cidadãos sucumbem a essa situação, à qual finalmente se adaptaram.
Virar a página
Críticos de si mesmos e do país, com certo orgulho, os gregos jamais foram inocentes. Mas são desprivilegiados. Que modelo de sociedade a população, até aqui “territorialmente incapaz de constituir uma comunidade política”,10 segundo as palavras de Cornelius Castoriadis, pode imaginar? Se quisesse “voltar ao contexto de antes da crise, quando vivia na mentira”, nas irônicas palavras de Lainas, tampouco poderia: o choque seria muito violento e se traduziria – o que é mais doloroso – em mais apelos à ordem e à autoridade. As sondagens favoráveis na época da formação do novo governo presidido por Lucas Papademos – antigo diretor do Banco da Grécia nomeado primeiro-ministro no início de novembro em substituição a Papandreou – traduzem o sentimento da população de que é melhor ter tecnocratas no poder que a classe política corrompida. Em todo caso, essa visão não expressa a adesão aos programas de austeridade, e sim o desejo de virar a página. Um “ditador estrangeiro” (podestà forestiero),11 expressão utilizada por Mario Monti em referência às exigências do Banco Central Europeu antes de ele mesmo ser nomeado presidente do conselho na Itália, é para alguns sinal de um governo honesto e competente, que agirá de acordo com os interesses do país.
Será verdade? Temos todas as razões para duvidar. Após acreditarem que seria possível se livrar de seus dirigentes, os gregos correm o risco de não saber mais contra quem se revoltar. “Não há inimigos. O governo é abstrato, e essa é sua força. ‘Fesf’!12 O inimigo pode ser abstrato, mas o mal-estar é real. Eles roubam sua vida, eles me privam de futuro”, diz Lainas.