Na nova cartografia das lutas planetárias: chave de leitura para um mundo em ebulição
Estamos diante de uma cartografia viva das lutas sociais, que se multiplicam por todos os continentes e em diversas temáticas, buscando rupturas e transformações em todas as áreas da vida social, ecológica e simbólica. Greta representa a passagem de um ativismo setorial para um ativismo ecossistêmico
Greta como expressão de um tempo histórico
A trajetória de Greta Thunberg — da greve escolar solitária na Suécia aos protestos ao lado do povo palestino — não pode ser compreendida como um fenômeno isolado. Trata-se de um caso exemplar de como subjetividades juvenis emergem como expressão e catalisação de uma nova era de mobilizações planetárias.
Greta simboliza a irrupção de um ecossistema de lutas interconectadas, que florescem em diferentes territórios, com protagonismo juvenil, desafiando paradigmas políticos, culturais e civilizatórios. Sua evolução ecoa e também influencia esse novo mapa vivo de resistências.

A nova cartografia das lutas planetárias
Estamos diante de uma cartografia viva das lutas sociais, que se multiplicam por todos os continentes e em diversas temáticas, buscando rupturas e transformações em todas as áreas da vida social, ecológica e simbólica. Essa cartografia é mais do que um pano de fundo: é sintoma de época e expressão de novas subjetividades políticas.
Exemplos emblemáticos incluem:
- Nos EUA: Acampamentos universitários pró-Palestina em universidades como Columbia e UCLA.
- Na França: Revoltas das periferias urbanas contra o racismo e a violência policial (ex. Adama Traoré).
- No Chile e na Colômbia: Insurreições protagonizadas por estudantes, povos originários e trabalhadores.
- No Sul Global: Protestos no Congo, Nigéria, Sudeste Asiático e Filipinas, contra o extrativismo, a corrupção e o colapso climático.
- Em Gaza e na Cisjordânia: Resistência de jovens e comunidades palestinas ao apartheid e ao genocídio em curso.
- Na Índia: Marchas por justiça ambiental e contra o nacionalismo excludente.
- No Brasil: Lutas indígenas por território, juventudes negras das periferias urbanas contra o racismo, mobilizações feministas contra o feminicídio e manifestações LGBTQIA+ por dignidade, visibilidade e políticas públicas.
Esses movimentos compartilham traços comuns:
- Liderança jovem e protagonismo periférico.
- Enraizamento local com projeção global.
- Intersecção entre causas (raça, gênero, ecologia, território, anticolonialismo).
- Criatividade estratégica: redes digitais, arte, ocupações, desobediência civil.
- Capacidade de gerar empatia coletiva e tensionar estruturas institucionais.
Essa cartografia revela também uma tendência crescente à multiplicação das lutas e dos sujeitos insurgentes, em meio a uma transição civilizatória onde se busca, em escala global, reimaginar modos de vida, estruturas de poder e formas de convivência.
Mais recentemente, novas expressões dessa cartografia revelam tendências à sua intensificação. No Brasil, manifestações denunciam privilégios dos super-ricos e as resistências por parte do Congresso Nacional, de setores da elite econômica e de seus aliados frente à pressão popular por justiça tributária. Nos Estados Unidos, as medidas anunciadas por Donald Trump — de cortes drásticos em políticas sociais – reacendem indignação e revoltas que evidenciam a insatisfação popular com a lógica neoliberal.
Todas essas expressões reforçam a vitalidade da cartografia de lutas sociais e sua capacidade de se expandir, cruzar fronteiras e produzir alianças inesperadas.
A evolução da trajetória de Greta Thunberg
Greta se destaca não apenas pela contundência de sua presença, mas por sua evolução política. Três etapas principais podem ser identificadas em sua trajetória:
- Foco na emergência climática: Com base científica, discursava contra a omissão de governos e mobilizava estudantes.
- Transição para a justiça climática: Incluiu a crítica às desigualdades estruturais, ao racismo ambiental e à hegemonia do Norte Global.
- Engajamento interseccional: Passou a focar na denúncia ao genocídio em Gaza, no apoio aos povos originários, na crítica à colonialidade e no descuido pela casa comum, dando ênfase aos direitos humanos.
Essa trajetória reflete, ao mesmo tempo, busca por coerência ética, abertura na escuta das lutas do mundo e capacidade de percepção clara das conexões existentes entre causas aparentemente fragmentadas. Assim, Greta está se tornando uma figura emblemática da transição para um ativismo ecossistêmico.
A relação dialética com o ecossistema das lutas
A figura de Greta não se sobrepõe às lutas, mas se entrelaça com elas em uma relação dialética: ela ganha visibilidade no contexto de insurgências contemporâneas, mas também as fortalece com sua voz global.
Greta aprende com os territórios e ensina, oferecendo inteligibilidade e coerência às demandas em curso. Representa uma nova geração que valoriza a escuta, a empatia e a articulação.
Um novo grito planetário
O tempo atual ecoa um novo grito. Se no século XIX Marx proclamou: “Trabalhadores do mundo, uni-vos!”, talvez hoje o grito seja:
“Jovens do mundo, uni-vos para salvar nossa casa comum!”
Esse grito nasce das cinzas da Amazônia, das ruínas de Gaza, dos campos de refugiados, das escolas ocupadas e das redes digitais.
Não se trata de propor uma nova hegemonia, mas uma nova consciência: ética, planetária, relacional. Uma consciência que articula lutas, reconhece diferenças e afirma a interdependência de todos os sistemas vivos.
Essa consciência supera a ortodoxia da luta de classes como eixo interpretativo único, propondo uma leitura mais ampla da realidade: não se trata apenas da disjuntiva capital x trabalho, mas de uma disjuntiva ainda mais abrangente: capital x vida.
Greta é uma das vozes mais visíveis desse grito, como jovem branca do Norte que ousa ouvir, reconhecer e somar-se às lutas do Sul e dos marginalizados.
Como nos alerta Leonardo Boff, vivemos um tempo de lutas antissistêmicas, onde não se contesta apenas uma política ou um governo, mas o próprio modelo de civilização que rompe os laços com a vida, com a Terra e com os saberes ancestrais. Essa leitura aprofunda a proposta aqui defendida e ajuda a compreender o sentido das novas insurgências juvenis planetárias.
Greta representa a passagem de um ativismo setorial para um ativismo ecossistêmico. Sua participação recente na Flotilha da Liberdade, a ênfase na justiça climática e a crítica ao sistema colonial-capitalista a colocam como figura emblemática de uma transição civilizatória.
Ela não é exceção. É emergência. Sua trajetória ilumina uma chave interpretativa das lutas em curso: rebeldia criativa, interconexão de causas, potência das juventudes, urgência de reimaginar o agir político.
Domenico Corcione é ex-professor de filosofia, pedagogia e teologia do ITER, UNIFAFIRE e UNICAP-PE. Foi assessor de Dom Helder Câmara na área de juventudes. É consultor em desenvolvimento social e institucional junto a OSCs e na esfera governamental. Também integra a Equipe Técnica do CAIS (Centro de Assessoria e Apoio a Iniciativas Sociais), focando na formação em incidência política.
Bibliografia essencial
- **Boaventura de Sousa Santos** (2019). *A cruel pedagogia do vírus*. Boitempo.
- **Ailton Krenak** (2020). *A vida não é útil*. Companhia das Letras.
- **Naomi Klein** (2015). *Isso muda tudo: capitalismo vs. clima*. Zahar.
- **Paulo Freire** (1996). *Pedagogia da autonomia*. Paz e Terra.
- **Leonardo Boff** (2025). *As lutas antissistêmicas e seus vários passos*. Brasil 247.
- **Eduardo Gudynas** (2011). *Derechos de la naturaleza*. RedGE.
- **Castro-Gómez & Grosfoguel** (2007). *El giro decolonial*. Siglo del Hombre.