Guardiãs das águas
Ao ensinar a reutilizar esse recurso precioso, agricultoras assumem o protagonismo na preservação dos recursos hídricos que garantem comida em nossa mesas
Março chama a atenção para a igualdade de gênero, com o Dia Internacional da Mulher, mas também é o mês em que se comemora o Dia Mundial da Água (22/03). Alguns números saltam aos nossos olhos quando esse é o tema. Um deles é a relação conflituosa que estabelecemos com a água nas cidades e no campo. Relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2019, revela que uma em cada três pessoas no mundo não tem acesso à água potável.
No Brasil, desperdiçamos em 2019 quantidade de água potável suficiente para abastecer 63 milhões de pessoas, de acordo com estudo do Instituto Trata Brasil. O número representa 39,2% de toda a água potável captada no país. A situação ganha uma perspectiva ainda mais alarmante quando olhamos para o campo – de onde sai o alimento para nossas mesas.
Dados do relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima, divulgado no fim de fevereiro, mostram um Brasil fortemente impactado pelas mudanças climáticas e extremamente vulnerável. Na lista dos inúmeros itens que são consequência direta dos efeitos do clima, temos, por exemplo, problemas com abastecimento de água e consequente comprometimento da safra. Traduzindo: viveremos períodos mais longos de seca e menor oferta de alimentos.
Desmatamentos recordes e queimadas ilegais têm sido muito eficazes no intuito de transformar biomas, elevar a temperatura e contribuir para o aquecimento global e o efeito estufa. Como consequência, o fluxo de chuvas está mudando, afetando cabeceiras dos rios e, consequentemente, os rios voadores (massas de ar carregadas de vapor de água) que irrigam boa parte do país.
Para agravar o cenário já devastador, em algumas regiões do país, como no oeste baiano, o agronegócio avança sobre águas que são fonte de renda, lazer e manutenção dos meios de vida dos ribeirinhos. A ideia dos senhores do agro é expandir suas culturas sobre as áreas com chuvas menos intensas. Para quem não sabe, o agro, segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), consome 78,3% da água do país.
A boa notícia é que várias iniciativas de mulheres de comunidades tradicionais ajudam a garantir sustentabilidade, alimentos e condições de vida dignas para elas e suas famílias. Um exemplo é o município de Solidão, localizado no Sertão pernambucano, no bioma Caatinga, onde o clima semiárido é marcado por chuvas irregulares e longos períodos de estiagem. É de lá um projeto que faz o Reuso da Água Cinza, resultante do uso doméstico da lavagem de roupas e louças, para a irrigação das plantações e garantir mais autonomia para as mulheres.
Além do sistema com a água cinza, as sertanejas, historicamente, lutaram e conquistaram, por meio da inserção nos espaços públicos, políticas de convivência com o Semiárido, como a implementação de cisternas – que garantem o armazenamento da água da chuva para períodos de estiagem, permitindo o consumo humano e a produção em tempos de seca. A água captada nas cisternas tem boa qualidade, o que diminui o número de doenças e poupa as mulheres de caminharem grandes distâncias em busca desse recurso essencial à vida.
Mais recentemente, um novo conceito está ganhando força entre elas: o de “plantar água”. No Vale do Jequitinhonha, as agricultoras criam um microclima, espécie de microambiente, fazem a cobertura morta no solo para reter a água na terra, e reutilizam a água, inclusive a doméstica, na irrigação. Outra prática é a das agricultoras de Goiás, que aprenderam a lidar com os ciclos da terra goiana.
Em Goiás, o sol muito forte afeta as plantações. Os brejos e pequenos rios secam, tornando ainda mais difícil a sobrevivência do pequeno produtor. Como não dá para prever com certeza quando a chuva vai chegar, as mulheres da Associação de Mulheres Empreendedoras Rurais e Artesanais (Amera), dos municípios de Barro Alto e Santa Rita do Novo Destino, se ocupam das pequenas culturas de mandioca, frutas e verduras, além de baru.
A maior preocupação delas é conservar o meio ambiente, impedindo que terceiros abram espaço para novas culturas perto de nascentes. Elas seguem plantando árvores no sistema agroflorestal e ampliando quintais para tentar impedir que o processo de desertificação se intensifique cada vez mais.
A preocupação tem razão. O Brasil está secando e o estado com a maior perda absoluta e proporcional de superfície de água foi o Mato Grosso, segundo estudo recente do MapBiomas. Em 1985, esse estado tinha mais de 1,3 milhão de hectares cobertos por água, em 2020 eram pouco mais de 589 mil hectares. A redução aconteceu basicamente no Pantanal, mas é importante destacar que as nascentes que alimentam essa região estão no Cerrado.
É por isso que as práticas agroecológicas de produção desenvolvidas pelas sertanejas e pelas “guardiãs das nascentes de Goiás” precisam ser defendidas diante das práticas que degradam o solo e, em consequência, o meio ambiente, como os monocultivos de soja e do milho, entre outros.
O Projeto Ceres (iniciais de Cerrado Resiliente) surge como um sopro de esperança ao reunir recursos da União Europeia, do ISPN e do WWF para atuar junto a diversos atores, especialmente com os pequenos e médios produtores – onde essas mulheres estão inseridas. A ideia é estimular soluções mais sustentáveis de produção e uso dos recursos naturais.
Com as mudanças climáticas, os exemplos de tantas mulheres precisam ganhar o mundo e despertar interesse como prova de que é possível conviver com a seca e enfrentar as alterações do clima para garantir água e comida à mesa de todos nós.
Méle Dornelas é assessora técnica do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), um dos integrantes do Projeto Ceres.