Guia básico para pensar a política externa brasileira
Auxiliar no processo de superação da condição estrutural de dependência pode ser considerada como a principal função da diplomacia brasileira
O texto abaixo não pretende apresentar um receituário capaz de resolver os nossos dilemas diplomáticos. Tal proposta seria meramente uma ilusão. O objetivo é contribuir, mesmo que de forma modesta, com a necessária reflexão coletiva a respeito das possibilidades e dos limites das diversas estratégias geopolíticas que circulam nos meios de comunicação. É preciso ter a consciência de que praticamente tudo que está sendo proposto já foi aplicado e alcançou resultados variáveis. O resgate da experiência histórica, pois, é fundamental para a confrontação da teoria com a realidade. É desse modo que a chama do passado pode amenizar a escuridão de incertezas que virá pela frente.
Segundo os especialistas, abstratamente, a política externa de um país serviria a dois propósitos básicos: 1) segurança e 2) desenvolvimento. O desejo mais elementar de um Estado seria autopreservação, condição essencial para que se possa pensar em seguida no próprio desenvolvimento interno. Haveria, portanto, precedência nas questões relativas à segurança.
É assim que a teoria política interpreta a conduta externa dos governos. Na prática, porém, há muitas nuances. No caso brasileiro, por exemplo, a ordem de prioridades deve ser vista de forma invertida. Isso ocorre em função de algumas peculiaridades da nossa história. De um lado, no entorno regional, o país não sofre grandes ameaças às suas fronteiras e, comparada a outras regiões, a América do Sul tem um passado de poucos conflitos armados envolvendo exércitos nacionais.

Por outro lado, tendo sido formado ao longo de um processo de incorporação à divisão internacional do trabalho na condição de dependência, o desejo por maior autonomia decisória atravessa a nossa história política e pode ser considerada como a principal aspiração nacional. A demanda por independência externa foi definida, por um famoso diplomata, San Tiago Dantas, como sendo o complexo de aspirações nacionais. É esse sentimento que guia a inserção internacional brasileira.
Em suma, auxiliar no processo de superação da condição estrutural de dependência pode ser considerada como a principal função da diplomacia brasileira. Quanto a isso não há muitas divergências, quase todos concordariam.
A disputa ideológica ocorre em outra esfera. Ela está relacionada aos métodos empregados para que tal objetivo comum seja alcançado. Ou seja, as interpretações do pensamento diplomático brasileiro devem priorizar o entendimento dos meios propostos para atingir o mesmo fim. Como a tão sonhada emancipação nacional pode ser finalmente conquistada? Eis a questão central.
Aqui, grosso modo, há dois paradigmas teóricos antagônicos. O primeiro entende que, dada a condição periférica do país, o mais realista seria a acomodação da nossa diplomacia à esfera de poder de alguma superpotência. E, considerando que a maior potência mundial, os Estados Unidos, está geograficamente localizada no continente americano, não haveria outra opção viável a não ser estabelecer uma parceria especial com o poderoso irmão do norte.
Seria um erro ver esse tipo de estratégia de inserção internacional simplesmente como fatalista, como muitas vezes acontece. Muito pelo contrário. Ela parte do pressuposto de que a dinâmica global é definida pelo centro sistêmico e pouco adiantaria a oposição por parte das nações periféricas. O mundo subdesenvolvido, portanto, deveria tirar o máximo proveito da correlação de forças existente e não tentar modificá-la.
A proposta é que a aceitação da dependência poderia ser contrabalançada através de compensações específicas. E, no caso brasileiro, a contrapartida seria justamente a facilitação da aquisição dos meios necessários para a superação futura da condição periférica do presente. A aceitação da dependência seria o caminho para a sua superação adiante.
A segunda corrente diplomática, ao contrário, parte do princípio de que o sistema internacional nunca se encontra perfeitamente equilibrado e que a correlação de forças está vinculada à conduta dos Estados que o compõe. A diplomacia brasileira, portanto, não deve se limitar ao conformismo ou à passividade em relação a imposições exógenas.
Nessa perspectiva, o papel da política externa das nações emergentes seria o de se contrapor àquilo que o embaixador Araújo Castro chamou de mecanismos de “congelamento do poder mundial”. O conceito de “congelamento do poder mundial” é importante porque joga luz num dos problemas fundamentais do jogo político, a saber, o conflito inescapável entre as potências hegemônicas e os países emergentes, como o Brasil.
Assim, os interesses do primeiro grupo de Estados estariam vinculados à manutenção do status quo, que os beneficia, por isso a palavra “congelamento”; enquanto o segundo bloco de nações demandaria um novo equilíbrio, mais favorável as suas ambições.
Na mesma linha de Araújo Castro, o economista José Luis Fiori argumenta que: “quando um estado se propõe a expandir seu poder internacional, terá que questionar e tentar alterar, em algum momento e de alguma forma, a distribuição prévia de poder dentro do sistema mundial. Para isto, terá de ter sua própria leitura do sistema para poder definir os seus objetivos estratégicos específicos e diferentes das potências dominantes” (Opera Mundi, 23 fev. 2010).
Nos dois casos a conclusão é a de que qualquer relação bilateral entre nações desses dois grupos teria limites muito claros, relacionados à defesa ou não do congelamento do poder mundial. “Como consequência, não haverá jamais uma política externa progressista e inovadora que não questione e enfrente os consensos éticos e estratégicos das potências que controlam atualmente o núcleo central de poder do sistema. Neste campo, não estão excluídas as convergências e as alianças táticas, e temporárias, com uma ou várias das antigas potências dominantes” (idem).
É possível demonstrar empiricamente qual dessas duas estratégias geopolíticas seria a mais eficiente? Acredito que sim. Não é difícil perceber que, nas vezes em que o modelo de parceria especial Brasil/Estados Unidos foi aplicado, os resultados ficaram muito aquém daqueles que haviam sido prometidos.
Tais frustrações decorrem justamente do fato de que é impossível equilibrar a política externa de países que ocupam posições de poder opostas na geopolítica global. Cedo ou tarde haverá choque de interesse e, quando isso ocorrer, uma vez que o alinhamento já havia sido decidido antecipadamente, o lado mais fraco ficará sem poder para barganhar as concessões desejadas. No fim, a dependência será acentuada.
Para evitar que erros desse tipo se repitam, é fundamental reconhecer que, em caso de embates diretos, as assimetrias de poder invariavelmente estarão contra os interesses brasileiros. A balança penderá para a outra direção. É preciso caminhar com muito cuidado.
Sabendo de tais limitações, a recomendação dos diplomatas vinculados à tradição autonomista é de que, qualquer pauta que envolva os temas relacionados ao congelamento do poder global, seja negociada no âmbito multilateral, recorrendo ao auxílio das agências especializadas. O objetivo é contornar a assimetria presente nos processos de negociações bilaterais que envolvem países em diferentes estágios de desenvolvimento. A estratégia é compensar a concentração dos recursos de poder de um lado por meio da quantidade de participantes na ponta mais vulnerável.
Ou seja, a escolha do melhor parceiro para o país é um falso problema. A solução para a dependência está na diversificação das parcerias e na conformação de identidades entre nações com demandas compartilhadas. Mais uma vez, é José Luis Fiori quem nos esclarece: “muito mais do que uma escolha ideológica. Trata-se de ampliar a capacidade de decisão e iniciativa estratégica autônoma do estado ‘questionador’, no campo político, econômico e militar, e portanto de aumentar a eficácia de suas ideias e propostas de mudança do sistema mundial” (idem).
Essa dinâmica explica o motivo de as recentes decisões do governo Bolsonaro estarem fadadas ao fracasso. A ideia de existência de um alinhamento natural entre Brasil e Estados Unidos, motivado supostamente por valores compartilhados entre ambos, deve ser encarada como uma construção ideológica da Guerra Fria, com objetivos geopolíticos muito claros, relacionados à manutenção da hegemonia norte-americana no continente.
Não deixa de ser curioso notar que, neste momento, ao contrário do século anterior, essa posição tem sido defendida fortemente pela diplomacia brasileira, com a desculpa de estar combatendo fantasmas ilusórios. Ou seja, nos últimos anos, a conduta do Brasil tem contribuído para o congelamento do poder mundial e aprofundado a sua condição de dependência na geopolítica global.
O chamado paradigma americanista foi gestado durante o período em que o Barão do Rio Branco esteve à frente do Itamaraty. Na época, o deslocamento do eixo político da Europa para a América atendia a uma necessidade geopolítica, tratava-se de uma estratégia de defesa da soberania nacional frente às investidas imperialistas do velho mundo. Rio Branco também percebeu que o centro dinâmico do capitalismo mundial estava sendo deslocado e se antecipou a tais mudanças. Essa é a principal herança daquele que é considerado o maior diplomata da história brasileira, não a vinculação cega aos interesses de Washington.
O século XXI está presenciando mutações semelhantes. Os rumos da política mundial dependerão do resultado do vertiginoso crescimento econômico chinês. É a partir desse deslocamento do eixo político para o continente asiático que a retomada dos preceitos da Política Externa Independente deve ser pensada.
O aspecto mais evidente é a possibilidade do retorno daquilo que um importante historiador, Gerson Mouro, definiu como “equidistância pragmática”. Explico. Por meio de uma postura de neutralidade, o Brasil poderá aproveitar as rivalidades emergentes no interior de uma geopolítica que caminha para a multipolaridade. Desse modo, como na década de 1930, será possível barganhar acordos vantajosos ao desenvolvimento nacional, inclusive em áreas consideradas estratégicas, que, de outra forma, seriam negadas pelas superpotências.
Sem a capacidade militar e a influência simbólica dos Estados Unidos, a projeção do poder econômico chinês dependerá da capacidade do país asiático de apresentar condições favoráveis à entrada do seu capital, o que também limita as imposições exigidas pelos seus concorrentes que atuam nessas mesmas áreas.
Percebendo tais oportunidades, de forma habilidosa, a China definiu o seu modelo de cooperação como “ganha-ganha”. A proposta tentadora, que já está sendo executada com sucesso na África, é estabelecer acordos equilibrados e que, ao contrário das investidas ocidentais do passado, não engessam o desenvolvimento do lado mais fraco. A chamada Nova Rota da Seda, o plano de investimentos mais ambicioso da história, é um exemplo cabal do que está sendo dito.
A ascensão chinesa também produzirá efeitos simbólicos para os rumos da política brasileira. O fim da Guerra Fria foi apresentado como a prova definitiva da superioridade do sistema neoliberal em relação aos demais.
No Brasil, o avanço das medidas liberais no âmbito doméstico está intimamente vinculado ao aprofundamento da dependência em relação aos Estados Unidos no enquadramento externo. Após a crise da dívida externa nos anos 1980, o receituário neoliberal voltou a ser aplicado de forma ainda mais intensa na região. Caberia aos países periféricos se ajustarem à globalização, pensamento que seria definido por um político argentino como realismo “periférico”. “Após a vitória norte-americana na Guerra Fria e o fim da URSS, a ideologia e a ética internacional liberal-democráticas reinaram vencedoras durante alguns anos e se transformaram na linguagem imperial do poder vitorioso, como se não existisse mais nenhuma divergência de interesses entre os países que desejam manter e os que desejam mudar o status quo mundial” (idem). Aparentemente, não haveria alternativa.
O impressionante sucesso chinês abalou de forma decisiva tais crenças. Ora, o país mais bem sucedido do mundo está seguindo o caminho que, pouco tempo atrás, era apontado como o da estagnação. Os números apresentados são robustos demais para serem ignorados.
Por sua vez, outrora confiantes, os países ocidentais aparentam desorientação diante da expansão de um modelo concorrente cujo estonteante sucesso eles não conseguem entender muito bem o motivo.
A quebra da hegemonia ideológica favorece a conformação de modelos alternativos. Ao contrário da visão liberal, que prioriza o mercado como motor do desenvolvimento, a proposta chinesa entende as duas instâncias como complementares, devendo, portanto, agir de forma conjunta, de modo a propiciar o crescimento equilibrado. Xi Jinping, principal liderança do Partido Comunista Chinês, definiu com as seguintes palavras a proposta do seu país: “temos que usar bem tanto a ‘mão invisível’ como a ‘mão visível’ para formar uma configuração na qual os papéis do mercado e do governo integram-se organicamente, complementam-se, coordenam-se e estimulam-se para alavancar o desenvolvimento socioeconômico sustentável e saudável” (Xi Jinping, A governança da China, Editora Contraponto, 2020).
Aliás, o crescimento chinês demonstra outra fraqueza do paradigma que estamos chamando de realismo periférico. Ora, se a política externa das nações atrasadas é determinada no núcleo da produção capitalista, o que fazer quando há mais de um centro? Qual direção seguir?
O historiador Amado Cervo, referindo-se ao governo de Castello Branco, usou a expressão “passo fora da cadência” para definir o modelo de inserção externa orientado por conceitos, valores e dogmas importados.
O descompasso, ressaltado pela imagem construída por Cervo, viria da negação da busca pelo desenvolvimento interno como o principal horizonte estratégico da política externa brasileira, obliterado por questões como segurança, defesa do mundo livre e interdependência.
O passo fora da cadência seria, usando as palavras de San Tiago Dantas, uma marcha fora do ritmo ditado pelo complexo das aspirações nacionais. Se essa interpretação está correta, os próximos passos da política externa brasileira deverão seguir o compasso da soberania nacional. Essa é a cadência da tradição brasileira.
Eduardo Migowski é professor formado em História, mestre em Filosofia pela PUC/Rio e atualmente faz doutorado em Ciência Política na UFF. Escreve também regularmente para a Revista Voyager.