Há tanta vida lá fora …
Todos falam numa frente de esquerda, mas cada um quer “sua” frente de esquerda. Nas entrelinhas dos rearranjos políticos que a esquerda está ensaiando correm inclusive argumentos apelativos. Alguns ainda acenam com a urgência de uma ação coordenada para enfrentar o avanço da direita.Silvia Adoue
Excessivo politicismo tem caracterizado os debates para uma formação de uma frente de esquerda entre as organizações surgidas do ciclo anterior da luta de classes. Como generais sem exército, lançam palavras de ordem que as classes trabalhadoras tratam com soberana indiferença, quando não com a mais sadia das desconfianças. Como haveriam de confiar naqueles que não veem no seu cotidiano de lutas, que não são poucas?
Os generais sem exército teimam em formular seus planos, traçados em pequenas reuniões de gabinete, bem longe dos ares carregados da tormenta das greves. Quando participam nelas, raramente se envolvem no trabalho de base, raramente ouvem o que a nova geração da classe tem a dizer. A greve lhes interessa na medida em que podem tomar decisões de “estado maior”.
A esfera da política é o ambiente que preferem. De uma política separada do vento das ruas e piquetes, e que se cozinha no ambiente protegido dos comitês. Não veem nas greves e nas lutas senão a pressão para medir forças, sobretudo, com as outras correntes com as quais pretendem compor a tal da frente de esquerda. Como se o novo impulso da luta de classes pudesse ser controlado para melhor negociá-lo, como se fosse pura energia muscular para movimentar o cenário segundo táticas próprias.
A irrupção de massas não funciona assim. Ela tem seu tempo, e vai formando sua vanguarda na própria luta direta. Não é força disponível para generais à espera de tropas.
Mas uma coisa esses candidatos a “generais” intuem de maneira realista: vai ter luta. Aliás, já está tendo. E cada um deles quer se adiantar para propor uma articulação política nacional achando que a direção dessas lutas vai cair, como uma fruta madura, na sua mão. Quem sair na frente, pensam, dá as cartas.
É isso que está por trás das tentativas de Lula de articulação de uma frente eleitoral para 2018, sem qualquer compromisso programático que supere o que os governos do PT têm feito. Mas também das idas e vindas do PSOL com relação à aprovação cláusula barreira, que impede aos pequenos partidos acesso a recursos públicos e a propaganda televisiva. Sem dúvida, o cálculo é que ela mobilizará argumentos de aparato para forçar uma “unidade” em torno desses recursos materiais.
Todos falam numa frente de esquerda, mas cada um quer “sua” frente de esquerda. Nas entrelinhas dos rearranjos políticos que a esquerda está ensaiando correm inclusive argumentos apelativos. Alguns ainda acenam com a urgência de uma ação coordenada para enfrentar o avanço da direita.
Ora, o único que pode parar o avanço da direita é a ampliação da mobilização de massas. E ela não se consegue em arranjos de cima das organizações. Mais, ela está acontecendo por fora desses arranjos. As lutas são também as únicas que podem dar solidez, vitalidade e materialidade social a qualquer ação política.
Um aviso para quem quiser sair no retrato: as lutas despenteiam. Pior, arrasam todos os arranjos por cima. As lutas obrigam a baralhar e dar de novo. Desmontam os planos minuciosos e “infalíveis”. Não respeitam credenciais e glórias passadas. Obrigam a reatualizar as credenciais. “Já faz tempo, eu vi você na rua, cabelo ao vento…”. Não temer as correntes de ar… “há tanta vida lá fora…”.
Silvia Adoue é professora da Escola Nacional Florestan Fernandes e da UNESP de Araraquara.