Há uma guerra justa na Ucrânia?
Todas as tentativas de atribuir justiça aos atos de guerra fracassaram na história das relações internacionais
A imprensa hegemônica brasileira tem veiculado um posicionamento maniqueísta sobre a guerra na Ucrânia, ressaltando a necessidade de uma forte reação do Ocidente contra a invasão promovida pela Rússia, demonstrando com detalhes os horrores sofridos pelo povo ucraniano fruto de uma empatia seletiva e elitista, a diáspora dentro do território europeu, mas com doses elevadas de reprodução e legitimação do discurso e das ações promovidas pelos Estados Unidos e dos países que fazem parte do pacto de segurança coletiva previsto no Tratado da Organização do Atlântico Norte.
Por outro lado, a imprensa alternativa faz um contraponto na mesma medida, operando o discurso da Rússia, buscando interpretar questões geopolíticas e os riscos à soberania do outrora império russo, denunciando a insensibilidade do Ocidente com outras guerras e outros povos, mas silenciando sobre a opressão do regime de Putin, um senhor da guerra tão condenável quanto os demais de espectro mais liberal.
É um tanto difícil encontrar uma abordagem que dimensione a complexidade do conflito, trazendo elementos e apontando responsabilidades coletivas, identificando a submissão da Europa, a venda de armas do Ocidente numa guerra por procuração, a fragilidade do sistema universal de segurança coletiva, a violação da Rússia ao direito internacional, mas também a ilegalidade das medidas de retorsão frente a um ataque a território de país terceiro, a ingerência política na Ucrânia antes do ataque territorial, mas igualmente denunciando o imperialismo russo e o autoritarismo de um governo com verniz czarista.
Tentar compreender ou explicar o conflito, no entanto, não pode significar a aderência às justificativas de um ou de outro lado, pois todas as tentativas de atribuir justiça aos atos de guerra fracassaram na história das relações internacionais.
Até a constituição das Nações Unidas em 1945 que estabeleceu a proibição da guerra em prol da segurança coletiva, a história do chamado direito internacional foi, em grande medida, marcada por filósofos, teólogos e estudiosos que aprofundaram análises para o correto uso da força nas relações internacionais, desenvolvendo princípios e limites para as chamadas “guerras justas”, que encontra suas raízes ainda na Idade Média.
Em Suma Teológica, São Tomás de Aquino[1] considerava a guerra pecado, mas admitia situações em que guerrear era moralmente aceitável, desde que se cumprissem determinados requisitos, como a necessária autoridade para declaração de guerra, a causa justa, que deve ser a correta motivação para o combate, bem como a intenção correta dos combatentes que indicava a proibição de determinadas condutas na guerra, o que hoje conhecemos como direito humanitário.
Desde então, a fundamentação da guerra justa foi se movendo, de acordo com o contexto geopolítico do teórico de ocasião, mas não abandonou completamente a excepcionalidade defendida pelo padre católico, apenas foi alterando as condicionantes de acordo com os interesses do poder constituído.
A chamada escola hispânica do direito natural e das gentes que se desenvolveu entre os séculos XVI e XVII foi palco de um debate político, moral, jurídico e teológico em torno da justificação da conquista das índias pelos espanhóis. A legitimidade do uso da força contra os senhores dos bárbaros ou de leis inumanas foi defendida por um dos nomes mais expressivos da Escola. Foi Francisco de Vitória[2] que resgatou os princípios tomistas para defender a legitimidade da guerra para repressão das injustiças entre os povos, para tanto, causa justa, autoridade legítima e justa intenção eram novamente colocadas como condicionantes. Vale a pena aqui citar que dentre as oito definições de justa intenção identificadas pelo filósofo espanhol, estaria a resistência dos “bárbaros” em receber o evangelho! Justificava-se também a guerra para proteção dos cristãos convertidos contra sua própria autoridade estatal. Francisco de Vitoria justificava, em razão do imperialismo do seu tempo, a imposição do poder espanhol sobre os territórios invadidos.
Contemporâneo da escola hispânica, Bartolomeu de Las Casas fez um importante contraponto aos filósofos de sua época, o que rende sua má-fama na historiografia espanhola até os dias de hoje. Em “Brevíssima relação da destruição das índias”,[3] Las Casas relata, em riqueza de detalhes, o genocídio e a escravização dos indígenas, em uma forma de colonialismo primitivo que se traduziu em pilhagem, roubo e destruição. Ademais, combateu o termo “bárbaro” que comumente designava os povos originários, pois alguns bárbaros, segundo Bartolomeu de Las Casas, têm reinos e dignidades reais, jurisdições e leis boas e seus regimes políticos são legítimos. Estaria errado?
Uma concepção mais secularizada foi defendida pelo holandês Hugo Grócio, considerado um dos fundadores do direito internacional, cuja obra “O Direito da Guerra e da Paz”[4] é um verdadeiro tratado sobre a guerra justa. É bem verdade que as tentativas de impor restrições ao direito soberano de guerrear envolvem preocupações sobre o poder absoluto do direito de se fazer a guerra. Nesse sentido, Grócio condenava a guerra, especialmente pela facilidade que os mandatários estão dispostos a empunhar as armas. A diferença com filósofos de tradição cristã, é a defesa de um direito laico, em que a regra expressa limites ao poder absoluto do Estado. O recurso à guerra, para Grócio, só poderia ser utilizado se houvesse violação do direito, como nos casos de defesa própria para a recuperação de bens ou como forma de punição para o Estado que violou. Ficam excluídos desse conceito as guerras preventivas, as guerras de conquista, especialmente em nome de um direito “civilizatório”. A guerra é a ultima ratio, devendo o Estado sempre optar pelos meios pacíficos de solução de controvérsias. No entanto, Grócio é condescendente com algumas excepcionalidades, como a defesa de um direito natural de proteção dos homens para comunidades que praticam o canibalismo, a pirataria ou a tirania, em um movimento típico de um universalismo eurocentrista que encerrava valores apenas para o continente dito civilizado.
Já no século XVIII, Emer de Vattel desenvolveu contornos específicos sobre a soberania e o princípio da não intervenção. Em sua obra, “o Direito das Gentes”[5] demonstra preocupação com os pretextos invocados em nome das guerras justas, embora também tenha certa abertura para o uso da força, como em casos de defesa de um ataque injusto e para fazer valer algum direito que não possa obtê-lo senão pelas armas. O crescimento de uma potência vizinha, por exemplo, não é motivo suficiente para deflagração da guerra, porque o crescimento do poder não pode, por si só, dar o direito a outro Estado de recorrer à guerra. Alguma semelhança com a Ucrânia?

A filosofia contemporânea irá redobrar esforços para resinificar o termo guerra justa ao contexto geopolítico atual, afinal nunca faltam filósofos, estudiosos e juristas a serviço do poder.
O filósofo italiano Norberto Bobbio desenvolveu todo um caminho de um pacifismo ativo em “O problema da guerra e as vias da paz”,[6] especialmente em razão da consciência atômica e seu poder de dissuasão militar. A guerra para Bobbio é uma via bloqueada da humanidade que está destinada a desaparecer e deve ser eliminada, por ser uma instituição injusta, inconveniente ou cruel. Havia, para o autor, uma forte crítica das teorias da guerra justa pelo potencial destrutivo de uma guerra atômica e uma crença na institucionalidade jurídica para coibir o uso da força. Não por outra razão o artigo “¿Una guerra justa?”[7] surpreendeu ao defender a licitude da guerra do golfo. Alguns anos mais tarde, Bobbio iria retrata-se, afirmando não ser possível distinguir guerras justas de injustas, já que todas eram injustas. A intervenção da Otan em Kosovo trouxe descrença ao filósofo italiano sobre a própria tese do pacifismo ativo, já que a humanidade não encontrara outro remédio para a violência que a violência mesmo, causando perplexidade a invocação dos direitos humanos para a justificativa da guerra.
Dentre vários filósofos contemporâneos justificadores da guerra, vale a pena destacar também John Rawls. Em “Direito dos Povos”,[8] Rawls propõe a criação de uma sociedade dos povos cujos princípios civilizatórios consagrariam valores de democracia e direitos humanos, fundados numa racionalidade capitalista. A construção da paz dependeria do combate aos Estados “forasteiros” que não comungam dos mesmos valores, contra os quais se justificam todo tipo de sanção, o que inclui a força militar. Não por acaso, os Estados forasteiros são aqueles que não seguem o padrão de institucionalidade dos países ocidentais. Os Estados civilizados constituem-se um núcleo bastante reduzido e seriam os únicos com legitimidade para defender o direito dos povos, ou seja, os únicos autorizados a fazer a guerra.
No entanto, a justificativa do uso da força para a proteção dos direitos humanos não ficou restrita a uma discussão filosófica. Desde o princípio da década de 1990, as Nações Unidas desenvolveram uma sólida teoria para o uso da força em ações de promoção da paz. Em 1992, o então secretário geral das Nações Unidas Boutros-Boutros Ghali propõe a “Agenda para a Paz” que apresentava elementos para a construção da paz em um contexto de desafios resultado do pós-guerra fria, dentre eles forças militares para operações de estabelecimento e manutenção da paz. Diversas missões foram autorizadas na década de 1990 pelo Conselho de Segurança baseadas nos seus princípios, como é o caso da Somália, Ruanda e Timor Leste.
No entanto, a intervenção unilateral da Otan em Kosovo em 1999 não estava respaldada pelos princípios da Agenda para a Paz, visto que violou a competência do Conselho de Segurança, o que ensejaria uma interpretação justificadora mais ampla das intervenções, para além da competência da ONU. Por essa razão, Kofi Annan defendeu a possibilidade de intervenção da comunidade internacional, quando se constatassem violações flagrantes, sistemáticas e generalizadas de direitos humanos.
Foi nesse contexto que as Nações Unidas aprovaram o relatório conhecido como Responsability to Protect que determina que os Estados soberanos possuem a responsabilidade de proteger seus próprios cidadãos das catástrofes que se possam evitar, como assassinatos em massa e violações sistemáticas de direitos humanos, mas em caso de inação do Estado, a responsabilidade recai para a comunidade dos Estados.
Desde então, a responsabilidade para proteger tem sido relativizada dentro das Nações Unidas, apesar dos esforços para sua manutenção promovidos ocasionalmente pela Secretaria Geral. Em 2011, no auge da Primavera Árabe, o Conselho de Segurança autorizou o emprego da força com base na responsabilidade de proteger, para a suposta proteção de civis ameaçados pelo governo de Muammar Kadafi. Os resultados da intervenção foram bastante questionados, colocando em xeque a justificativa do uso da força para fins humanitários. O que ocorreu na Líbia escamoteou os interesses geopolíticos das potências que levaram a cabo a intervenção sob o mandado do Conselho de Segurança e mergulhou o país numa guerra civil duradoura, com forte ingerência internacional, cujas consequências foram fatais para os direitos humanos.
Em 2012, a diplomacia brasileira contrapõe o conceito “responsabilidade ao proteger” ressaltando a importância da prevenção de conflitos, a mediação pacífica, e o uso da força proporcional, bem como o respeito à competência do Conselho de Segurança da Nações Unidas, justamente com a finalidade de estabelecer limites nas chamadas intervenções humanitárias, demonstrando assim seus limites.
A guerra na Ucrânia resultou de uma flagrante e absoluta violação ao direito internacional e aos princípios da segurança coletiva, do qual a Rússia tem papel ativo e decisivo, por ser membro permanente do Conselho de Segurança. Dentro da perspectiva jurídica, nada há que a justifique. Dentro dos princípios de justiça, nem mesmo a proteção dos direitos humanos se mostraram suficientes para autorizar a violência e o poder de matar semelhantes. Nunca há uma genuína intenção correta capaz de atribuir justiça ao ato de promover a guerra. Faz a guerra quem tem a condição de promovê-la, por condições que passam distantes dos princípios da paz.
A guerra é a ruptura de qualquer racionalidade. O primeiro ataque em uma guerra traz consigo a morte da razão. Não há nada capaz de justificar a morte, a barbárie, a destruição, que sempre atinge com mais força as parcelas mais vulneráveis em contextos de conflitos armados, como crianças, idosos e mulheres.
Os horrores da guerra não estão apenas nos números de baixas de combatentes e civis, mas também na profunda cicatriz de toda uma geração marcada pelas perdas, separações, mudanças profundas na expectativa de vida, para aqueles que sobrevivem ao conflito.
O único posicionamento aceitável em uma guerra é condená-la, de forma veemente, pois os princípios humanistas não podem sucumbir as racionalidades políticas que omitem estratégias obscuras de poder. É imperativo condenar todas as guerras. Nenhuma delas é justa.
Gisele Ricobom é doutora em Direito pela Universidade Pablo de Olavide e professora do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ.
[1] BAQUÉS QUESADA, JOSEP. La teoria de la guerra justa: uma propuesta de sistematización del “ius ad bellum”. Navarra: Editorial Aranzadi, 2007.
[2] ARRIETA, Itziar Ruiz-Giménez. La historia de la intervención humanitária: el imperialismo altruísta. Madrid: Catarata, 2005.
[3] BARTOLOME DE LAS CASAS. Brevísima relación de la destrucción de las Indias. Madrid: Tecnos, 2008.
[4] GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz. Vol I e II. 2.ed. Ijuí: Editora Unijuí, 2005.
[5] VATELL, Emer de. O direito das gentes. Brasília: Editora UNB, 2004.
[6] BOBBIO, Norberto. O problema da guerra e as vidas da paz. São Paulo: UNESP, 2003.
[7] BOBBIO, Norberto. ¿Una guerra justa? Sul conflito del golfo. Veneza: Marsílio, 1991.
[8] RAWLS, John. O direito dos povos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.