Heroína com receita médica
O fracasso da proibição levou um número crescente de países – como o Canadá, a partir de outubro – a legalizar o uso e até o comércio da maconha. Desde os anos 1990, a Suíça prefere o controle do consumo à interdição, inclusive de heroína. Essa abordagem é defendida por dependentes, por médicos, pela população e… pelas forças da ordem
“Usei heroína para enfrentar meus problemas psicológicos”, explica David, um quinquagenário viciado há 25 anos. “Isso acabou comigo. Perdi meu emprego de relojoeiro, pedi dinheiro ‘emprestado’ à namorada, aos amigos… Acabei na rua. Para comprar as doses, tornei-me usuário-revendedor.” Há um ano e meio, ele comparece diariamente ao centro do Programa Experimental de Prescrição de Entorpecentes (Peps, na sigla em francês) de Genebra, ligado ao Hospital Universitário. “Graças a esse programa, reencontrei uma vida social e paguei meus amigos.” O ex-relojoeiro consulta o relógio: “Tenho de ir. Hora do tratamento”. Uma enfermeira lhe aplicará uma dose de diacetilmorfina, heroína produzida legalmente em um laboratório suíço.
Os cerca de 1.500 pacientes dos 22 centros do Peps da Suíça recorreram todos, em vão, a tratamentos substitutivos: “A metadona não funcionou para mim”, revela Marco, de 44 anos. “Os efeitos colaterais são violentos e não há efeito ansiolítico. Então, eu consumia outras drogas ao mesmo tempo… Inscrevi-me aqui há seis meses; ganhei peso e reduzi a um quinto meu consumo de heroína. Um dia, vou parar por completo.” “O tratamento me dá ritmo”, comenta Chantai, 54 anos, com trinta de dependência. “Chega de correr atrás dos traficantes.” Com as pupilas retraídas e a voz forte, Jeff, 54 anos, acaba de tomar sua dose: “Sem dúvida, minha qualidade de vida melhorou muito. O tratamento estabiliza meu dia. Antes… bem, antes eu era traficante. Maldoso, fazia de tudo para ganhar dinheiro. Recorri a falcatruas…”
“O vício se instala quando o consumo de um produto se torna a única estratégia para enfrentar situações difíceis”, explica Yves Saget, enfermeiro responsável por uma unidade especializada em toxicologia. “Aqui, não falamos em ‘dose’, mas em ‘tratamento’: o cérebro está dependente e precisa de heroína para encontrar equilíbrio. Recebemos neste centro 63 pacientes que tratamos com diacetilmorfina. É uma heroína medicinal pura, ao contrário da que se compra nas ruas, misturada com cafeína, paracetamol etc. A heroína das ruas não satisfaz e o toxicômano recorre frequentemente a outras drogas, álcool, medicamentos psicotrópicos como as benzodiazepinas… Nossa posologia, adaptada a cada caso, permite viver da maneira mais normal possível. Valorizamos também a cidadania dos pacientes, que precisam respeitar a equipe e a vizinhança. É neste centro que eles são tratados; devem, portanto, protegê-lo.” Cada um é assistido por um enfermeiro, um residente e um psiquiatra. “A prescrição feita por médicos os tira da espiral do ‘comportamento de rua’”, afirma Pedro Ferreira, residente em psiquiatria. “Não têm necessidade de procurar, eles mesmos, o produto e, portanto, de arranjar dinheiro por quaisquer meios, inclusive roubo e prostituição. Essa mudança lhes oferece disponibilidades psíquicas para se concentrarem novamente em sua vida, fixarem objetivos, retomarem contato com a família e os amigos. Têm, enfim, acesso a um psiquiatra…”
Adotada em praticamente todos os cantões (o Vaud fez isso no último verão) e testada timidamente no Canadá e em alguns países da Europa (Alemanha, Reino Unido, Holanda…), a prescrição médica de heroína nasceu de uma crise grave: a das “cracolândias”. Durante os anos 1980, na Suíça, o consumo de heroína aumentou. “A maior parte dos usuários era formada por jovens com ruptura familiar”, lembra-se o psiquiatra de Zurique Ambros Uchtenhagen. O país havia se tornado um polo de atração europeu: vinham toxicômanos da Itália, Alemanha, França… A polícia, sobrecarregada, tentava combater os problemas que se multiplicavam no espaço público – roubos, violências, depósitos de seringas usadas… – limitando-os a determinados lugares, que logo passaram a ser conhecidos como “parques de seringas”.
Em Berna, uma cracolândia era vizinha do Palácio Federal, a sede do poder. “Os parlamentares viam pessoas se picando sob suas janelas”, conta Daniele Zullino. “Aquilo parecia um dos círculos do inferno”, lembra-se Ruth Dreifuss, então consultora federal responsável pela Saúde. Ex-presidente socialista da Confederação (em 1999), Dreifuss chefia desde 2016 a Comissão Global de Política de Drogas, que reúne antigos líderes políticos do mundo inteiro, defensores da regulamentação do mercado de drogas pelos Estados. “Criou-se uma economia da miséria, com prostituição e inúmeros tráficos de pequeno porte. Era lamentável; os profissionais da saúde praticavam uma medicina de guerra.” As repetidas picadas, com material contaminado, provocavam abscessos que exigiam tratamento de urgência. “Toda semana morria alguém de overdose”, lembra, em Berna, o psiquiatra Robert Hämmig. “A aids se espalhava e a terapêutica tripla ainda não existia.” A fim de conter a propagação do HIV, “a associação Contact abriu em Berna a primeira sala de injeções do mundo, já em 1986”, explica Jakob Huber, que era então seu diretor.
Número de mortes despencou
Entretanto, a existência dessas salas não tinha efeito algum sobre a delinquência ligada à compra de entorpecentes. Quanto aos tratamentos substitutivos, “alguns não os suportavam”, esclarece Thilo Beck, psiquiatra da Arbeitsgemeinschaft für risikoarmen Umgang mit Drogen (Comunidade de Trabalho para Gestão de Drogas com Baixo Risco), uma clínica para dependentes de Zurique. Expulsos do Platzpitz, um parque de Zurique, os viciados em heroína correram, às centenas, para a estação desativada do Letten. Em Berna, eles trocaram o Parque Schänzli pelo Parque Kocher… “Estávamos num impasse”, resume Huber. Os suíços não aguentavam mais. “A mudança ocorre quando o sofrimento aumenta, tornando-se visível. Foi então que nós, profissionais da área, propusemos uma solução.” E uma solução radical: prescrever heroína àqueles que os tratamentos substitutivos não beneficiavam. Em 1995, 65% dos entrevistados consideravam a droga um problema grave na Suíça (a porcentagem é hoje de 15%).1
“Criamos uma plataforma que juntava o Estado federal, os cantões e as cidades afetadas”, conta Dreifuss, “para que os diversos participantes se entendessem melhor. As cracolândias não podiam continuar existindo, mas fechá-las pressupunha encontrar outras soluções. Ora, nada parecia funcionar. Os médicos que prescreviam metadona solicitaram então licença para receitar heroína.” O conceito de tratamento substitutivo não era novo: “A metadona vem sendo prescrita aqui desde os anos 1960”, relata Dreifuss. “As mentalidades já estavam, pois, bem preparadas.”
Os cantões se encarregam da saúde, mas, no caso de epidemias e drogas, a responsabilidade cabe ao Conselho Federal. Em 13 de maio de 1992, este deu sinal verde para uma experiência de cinco anos: “Adotamos uma ‘norma de urgência’, temporária, que não pode ser revogada por votação. É o pragmatismo suíço: testar uma política antes que a lei seja modificada. Somos um país pequeno, onde a política depende amplamente do consenso”. “Há também uma diferença de cultura médica e filosófica com relação à França”, analisa Jean-Félix Savary, secretário-geral do Grupamento Franco-Suíço de Estudos das Dependências (GFSED). “A Suíça é de cultura calvinista. Os países católicos têm, visivelmente, mais dificuldades para compreender assuntos como as drogas ou a morte.”
Assim nasceu a chamada política dos “quatro pilares”: prevenção, repressão, redução de riscos e terapia. Em 1994 surgiram os primeiros centros de injeções com receita médica, a maioria na Suíça alemã. Existem hoje 22 – um deles no ambiente carcerário –, gerenciados por hospitais públicos e clínicas particulares com o apoio do Estado. Malgrado a oposição da União Democrática do Centro (extrema direita) e de alguns políticos tanto do Partido Radical Liberal quanto do Partido Democrata Cristão (direita), os cidadãos suíços apoiaram essas medidas em três votações: em 1997 (rejeição de 70% a uma proposta repressiva), em 1999 (aprovação de 54% do decreto de ratificação do Peps) e, principalmente, em 2008 (68% de “sim” ao chamado sistema dos “quatro pilares”).
Os efeitos positivos dessa política são notórios. Desmanteladas, as cracolândias não reapareceram. A criminalidade associada aos entorpecentes teve uma “redução excepcional”, segundo um estudo do Instituto de Polícia Científica e Criminologia da Universidade de Lausanne.2 Mesmo formando uma “população extremamente ancorada na delinquência”, o número de toxicômanos que tiveram problemas com a polícia foi reduzido em dois terços. “Já não há praticamente criminalidade associada à heroína, que agora é gratuita”, resume Regula Müller, encarregada da área social da cidade de Berna. “A polícia passou a nos apoiar depois de perceber que a delinquência e as perturbações no espaço público diminuíram”, acrescenta Huber, da associação Contact.
A Polícia de Entorpecentes de Berna concordou em nos receber. Seu chefe, Reto Schumacher, nos mostra um recorte do Bern Zeitung de 20 de maio de 2014: “Agora, três seringas encontradas sob um pórtico já dão motivo para um artigo. No tempo das cracolândias, recolhíamos semanalmente centenas, milhares! Olhe”. A fim de secundar suas palavras, o policial exibe no computador fotografias do Parque Kocher em 1991. “Só a repressão não resolve. Tenho bons contatos com os assistentes sociais; não partilhamos o mesmo ponto de vista, mas perseguimos o mesmo objetivo, que é aliviar a coletividade dos impactos da toxicomania e melhorar a situação dos viciados.”
Medo maior dos proibicionistas, o consumo de heroína não aumentou. Essa droga não atrai os jovens: a idade média dos pacientes do Peps é 45 anos.3 “A prescrição médica comprometeu a imagem da heroína”, informa Uchtenhagen. “Ela se tornou uma droga de ‘perturbados’, e seus usuários são vistos como doentes crônicos. Não há nada de ‘heroico’ em consumi-la.” “O Peps tirou dos traficantes alguns de seus melhores clientes”, explica em Lausanne Frank Zobel, diretor adjunto da associação Addiction Suisse (Dependência Suíça). “A clientela envelhece e não aumenta. O preço de venda é baixo: o mercado já não interessa aos traficantes.” Também a expectativa de vida dos consumidores aumentou: “As taxas de soropositivos é hoje menor que 10%”, esclarece Zullino. “E era de 50% nos anos 1990! Nossos pacientes têm acesso a uma heroína pura. Não morrem mais por causa dela, morrem por causa do fumo…” Entre os menores de 35 anos, o número de óbitos por causa da droga caiu de 305 em 1995 para 25 em 2015.4
“É a ilegalidade que destrói”
Com base nesses dados, os autores da nova política sugerem o fim da proibição e o recurso à regulamentação. A legalidade ou ilegalidade de um psicotrópico responde a considerações culturais e políticas: na década de 1920, “a proibição do álcool nos Estados Unidos visava ao aumento da produtividade dos trabalhadores”, lembra Uchtenhagen. “Mas o Estado pôs fim a ela porque o fisco perdia receitas para Al Capone.” Já a “guerra às drogas”, tão cara a Ronald Reagan, “forneceu uma explicação cômoda para o esgarçamento do tecido social nos bairros negros: eles não eram mais as vítimas das políticas liberais, dos cortes no orçamento social, mas simplesmente da droga…”, observa Savary. Ocorreu o mesmo nos bairros operários britânicos, sufocados pelo thatcherismo.
“A proibição não resolve os problemas: é a causa deles”, sustenta Beck. “Aqui, tratamos as consequências dessa proibição.” Doenças, overdoses, prostituição, delinquência, exclusão: “É a ilegalidade do produto que destrói o viciado, muito mais que o produto em si. Nossas sociedades proíbem uma droga e depois estigmatizam as vítimas dessa proibição. Evidentemente, os toxicômanos não deviam ter começado a usar heroína; mas precisam ser ajudados, não criminalizados. Hoje, os revendedores ‘batizam’ a cocaína com levamisol, um medicamento veterinário para cavalos! Uma regulamentação desse mercado seria, pois, menos prejudicial”. “Não existe mercado mais liberal, mais agressivo, mais nocivo para a saúde humana do que o mercado negro dos entorpecentes”, garante Huber. “A melhor prevenção de todas as drogas é a regulamentação legal do mercado, como ocorre para o fumo e o álcool.” Com a regulamentação, conclui Zullino, “os problemas não desaparecem, mas ficam sob controle”.
*Cédric Gouverneur é jornalista e roteirista da história em quadrinhos Légal. La Fin de la prohibition [Legal. O fim da proibição] (com Amazing Améziane), Casterman, Paris, 2014.