Aquela manhã, antes das seis horas, já estava tão clara e quente que anunciava um dia canicular. Alguns instantes depois, uma sirene tocava: a campainha de um minuto anunciava a presença de aviões inimigos, mas indicava também, por sua brevidade, aos habitantes de Hiroshima, que se tratava de um perigo fraco. Porque a cada dia, na mesma hora, quando o avião meteorológico norte-americano se aproximava da vila, a sirene tocava.
Hiroshima tinha a forma de um ventilador: a cidade era construída sobre seis ilhas separadas por sete rios de estuário que se ramificavam a partir do rio Ota. Seus bairros residenciais e comerciais cobriam mais de seis quilômetros quadrados no centro do perímetro urbano. Era ali que residiam três quartos dos habitantes. Vários programas de evacuação haviam reduzido consideravelmente sua população. Ela passou de 380 mil almas antes da Guerra para cerca de 245 mil pessoas. As usinas e os bairros residenciais, assim como os subúrbios populares, situavam-se além dos limites da cidade. Ao sul se encontravam o aeroporto, as orlas e o porto sobre o mar Interior, salpicado de ilhas1. Uma cortina de montanhas fecha o horizonte sobre os três lados restantes do delta.
Visão de pesadelo
Alguém começou a gritar: “Os americanos estão bombardeando com gasolina. Eles querem nos queimar!”
A manhã voltava a ficar calma, tranqüila. Não se ouvia nenhum ruído de avião. Então, repentinamente, o céu foi rasgado por um flash luminoso, amarelo e brilhante como 10 mil sóis. Ninguém se lembra de ter ouvido o menor ruído em Hiroshima quando a bomba explodiu. Mas um pescador que se encontrava sobre seu barco, perto de Tsuzu, no mar Interior, viu o clarão e ouviu uma explosão aterradora. Ele estava a 32 quilômetros de Hiroshima e, segundo ele, o barulho foi muito mais ensurdecedor que quando os B-29 bombardearam a cidade de Iwakuni, situada a apenas oito quilômetros.
Uma nuvem de poeira começou a subir sobre a cidade, enegrecendo o céu como uma espécie de crepúsculo. Soldados saíram de uma trincheira, o sangue correndo de suas cabeças, peitos e costas. Eles estavam silenciosos e aturdidos. Era uma visão de pesadelo. Seus rostos estavam completamente queimados, suas órbitas vazias e o fluido de seus olhos fundidos corria sobre suas faces. Eles deviam, sem dúvida, estar olhando o céu no momento da explosão. Suas bocas não eram mais que feridas inchadas e cobertas de pus…
Casas estavam em fogo. E gotas d?água do tamanho de bolas de gude começaram a chover. Eram gotas de umidade condensada que caíam do gigantesco cogumelo de fumaça, de poeira e de fragmentos de fissão que subiam já vários quilômetros sobre Hiroshima. As gotas eram grossas demais para serem normais. Alguém começou a gritar: “Os americanos estão bombardeando com gasolina. Eles querem nos queimar!”. Mas eram gotas d?água, evidentemente, e enquanto elas caíam o vento começou a soprar cada vez mais forte, talvez por causa do formidável deslocamento de ar provocado pela cidade em brasas. Árvores imensas foram derrubadas; outras, menores, foram arrancadas e projetadas pelos ares, onde giravam, num tipo de funil de furacão enlouqucido, restos esparsos da cidade: telhas, portas, janelas, roupas, tapetes…
Rostos desfigurados
Dos 245 mil habitantes, cerca de 100 mil foram mortos ou receberam ferimentos mortais no instante da explosão
Dos 245 mil habitantes, cerca de 100 mil foram mortos ou receberam ferimentos mortais no instante da explosão. Cem mil outros foram feridos. No mínimo 10 mil destes feridos, que podiam ainda se deslocar, encaminharam-se ao hospital principal da cidade. Mas ele não estava em estado de receber uma tal invasão. Dos 150 médicos de Hiroshima, 65 haviam morrido imediatamente e os outros estavam feridos. E dos 1780 enfermeiros, 1654 haviam encontrado a morte ou estavam feridos demais para poder trabalhar. Os pacientes chegavam rastejando e se instalavam por quase todo canto. Eles ficavam agachados ou deitados no chão nas salas de espera, nos corredores, nos laboratórios, nos quartos, nas escadas e nas portas da frente e dos fundos, assim como no pátio e do lado de fora, até se perderem de vista, nas ruas em ruínas… Os menos atingidos socorriam os mutilados.
Famílias inteiras com rostos desfigurados ajudavam uns aos outros. Alguns feridos choravam. A maior parte vomitava. Alguns tinham as sobrancelhas chamuscadas e a pele caía de seus rostos e mãos. Outros, por causa da dor, tinham os braços levantados como se suspendessem um peso com suas mãos. Se pegássemos um ferido pela mão, sua pele se desprendia em grandes pedaços, como uma luva…
Muitos estavam nus ou vestidos com farrapos. Amarelas no início, as queimaduras ficavam vermelhas, inchadas e a pele se soltava. Depois eles começavam a supurar e exalar um odor nauseabundo. Sobre alguns corpos nus, as queimaduras haviam desenhado a silhueta de suas roupas desaparecidas. Sobre a pele de certas mulheres – porque o branco refletia o calor da bomba e o preto o absorvia e o conduzia para a pele – via-se o desenho de flores de seus quimonos. Quase todos os feridos avançavam como sonâmbulos, a cabeça levantada, em silêncio, o olhar vazio.
Calvário nuclear
E dos 1780 enfermeiros, 1654 haviam encontrado a morte ou estavam feridos demais para poder trabalhar
Todas as vítimas que sofreram queimaduras e os efeitos do impacto haviam absorvido radiações mortais. As emanações radioativas destruíam as células, provocavam a degeneração de seu núcleo e rompia suas membranas. Os que não foram mortos na hora, nem mesmo feridos, ficavam doentes logo em seguida. Eles tinham náuseas, violentas dores de cabeça, diarréias e febre. Sintomas que duravam vários dias. A segunda fase começou 10 ou 15 dias depois da bomba. Os cabelos começaram a cair. Depois vinham a diarréia e uma febre que podia chegar a 41 graus.
De 25 a 30 dias depois da explosão, apareciam as primeiras desordens sangüíneas: as gengivas sangravam, o número de glóbulos brancos despencava dramaticamente, enquanto arrebentavam-se os vasos da pele e das mucosas. A diminuição dos glóbulos brancos reduzia a resistência às infecções; o menor ferimento levava semanas para ser curado; os pacientes desenvolviam infecções duráveis da garganta e da boca. No fim da segunda etapa – se o paciente sobrevivesse – aparecia a anemia, isto é, a queda de glóbulos vermelhos. No decorrer desta fase, vários doentes morriam com infecções na cavidade pulmonar.
Desintegração literal
Famílias inteiras com rostos desfigurados ajudavam uns aos outros. Alguns feridos choravam. A maior parte vomitava
Aqueles que tiveram um certo descanso depois da explosão tinham menos chances de ficar doentes que os que se mostraram muito ativos. Os cabelos grisalhos raramente caíam. Mas os sistemas de reprodução foram afetados duravelmente: os homens ficaram estéreis, todas as mulheres grávidas abortaram e todas as mulheres em idade de procriação constataram que seu ciclo menstrual fora detido…
Os primeiros cientistas japoneses que chegaram algumas semanas depois da explosão notaram que o flash da bomba havia causado uma descoloração do cimento. Em alguns locais, a bomba havia deixado marcas correspondentes às sombras dos objetos que seu clarão havia iluminado. Por exemplo, os especialistas haviam encontrado uma sombra permanente projetada sobre o teto do edifício da Câmara de Comércio pela torre do mesmo edifício. Encontravam-se também silhuetas humanas sobre muros, como negativos de fotos. No centro da explosão, sobre a ponte que fica perto do Museu de Ciências, um homem e sua charrete haviam sido projetados com a forma de uma sombra precisa, mostrando que o homem estava a ponto de chicotear seu cavalo no momento em que a explosão os havia literalmente desintegrado…
(Trad.: Fabio de Castro)
1 – NDLR. Hiroshi