Histórias e memórias indígenas no Masp
Museu inaugura três novas exposições que reproduzem histórias indígenas individuais e coletivas na contemporaneidade
Em fevereiro deste ano, jornais do mundo inteiro denunciaram o que o próprio ministro da justiça, Flávio Dino, chamou de genocídio contra os povos Yanomami. Com população total estimada em mais de 33 mil pessoas repartidas em cerca de 640 comunidades espalhadas entre Brasil e Venezuela – o que faz deles um dos maiores grupos ameríndios da Amazônia – os povos Yanomami enfrentam uma grave crise sanitária, que já resultou na morte de 570 crianças por desnutrição e outras causas evitáveis nos últimos anos, de acordo com o governo federal. A tragédia foi apenas a primeira em um ano que deveria marcar um retorno do cuidado por parte do Estado em relação aos povos originários: antiga demanda da bancada ruralista e do Centrão, foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 30 de maio o projeto de lei que estabelece o marco temporal.
Ao contrário da visão de mundo da civilização ocidental – chamada pelo xamã Davi Kopenawa de “povo da mercadoria” – a cosmologia Yanomami vê natureza e cultura de uma perspectiva simbiótica: meio ambiente e sociedade são indistinguíveis uma vez que é na floresta que vivem os espíritos ancestrais, e destruí-la significa colocar em risco não apenas sua vida física mas também espiritual. No livro “A Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami”, Kopenawa defende que, ao desconsiderar o lucro, as mercadorias às quais os brancos são apegados perdem o valor. Ao destruir as terras indígenas e as florestas brasileiras em nome do lucro, no entanto, mineradoras e garimpeiros colocam em risco não somente os Yanomami, mas a sociedade como um todo.
É em resposta a esse risco – ilustrado pela “queda do céu” à qual o título de Kopenawa faz referência – que artistas de diversos povos indígenas nas Américas transpõem suas memórias e histórias naquilo que o xamã chama de “peles de papel”: em livros e em pinturas, a produção oral e corporal indígena é transposta em mídia física e passa a ocupar os grandes museus que até aqui estiveram repletos majoritariamente de uma arte europeia que pouco dialoga com nosso povo. A arte indígena demarca seu espaço e propõe sua luta política nesses lugares tão frequentemente brancos e elitizados. Esse é o caso do Masp, que celebra seu ano das histórias indígenas com três exposições que demarcam a presença indígena de ontem e hoje no museu.
Preservação e transmissão da memória
Concentradas no subsolo do Museu de Arte de São Paulo, as exposições “Sheroanawe Hakihiiwe: tudo isso somos nós”, “Sala de vídeo: Sky Hopinka” e “Comodato MASP Landmann — cerâmicas e metais pré-colombianos” têm como ponto de convergência a vontade de preservar e transmitir diferentes memórias indígenas. Enquanto a última resgata – através de artefatos dos séculos 2 a.C. e 16 – a história de populações originárias do continente, pouco conhecida pela maioria dos brasileiros e ausente em livros didáticos produzidos no país, as duas primeiras têm como objeto a obra de dois artistas contemporâneos cuja produção vem ganhando o mundo nos últimos anos.
Marcada por elementos naturais que envolvem o cotidiano do artista no Alto Orinoco, Amazônia venezuelana, a obra do Yanomami Sheroanawe Hakihiiwe entrelaça práticas e saberes da comunidade do artista em um trabalho de preservação de sua memória cultural, transmitida pelos xamãs e, sobretudo, pela mãe do artista, como conta o curador David Ribeiro:
“Algo que me chamou atenção é a forma como o artista estabelece essa relação de proximidade com a mãe dele, por conta de como entre muitas sociedades indígenas há essa tradição das mulheres mais velhas serem as grandes responsáveis pela manutenção de valores e referências culturais. Esse é o caminho que ele opta para recolher essas esparsas referências e usá-las como ponto de partida para sua produção artística. É algo que diz respeito não só a ele, mas a muitas sociedades indígenas ao longo da história, ilustrando o quanto essa figura das mulheres sempre foi e continua sendo muito importante na manutenção de tradições e narrativas, o que possibilita que a obra dele seja esse inventário do patrimônio cultural Yanomami.”
A relação é reiterada pela obra do americano Sky Kopinka: no curta-metragem “Kicking the Clouds”, que estreou ano passado em Sundance e está em exibição na sala de vídeo do Masp, o artista reflete sobre imagens da terra indígena sobrepostas à gravação de uma aula que sua bisavó dava à avó do diretor sobre a língua Chinuk Wawa.
Ele conta: “O filme começou com essa fita de 1970 que minha mãe me enviou. Ao ouvir essa gravação, fiquei realmente fascinado com a intimidade ali presente e também porque nunca tinha ouvido a voz da minha avó antes. Depois de ser vacinado, em fevereiro ou março de 2021, fui para minha cidade natal (Ferndale, Washington) e filmei naquela região, nos arredores do condado onde cresci; o oceano, as montanhas e as estradas. Usei o filme para explorar essas diferentes relações entre histórias intergeracionais. A maneira como a linguagem é uma linha que conecta a mim, minha mãe, minha avó e minha bisavó, e até mesmo para falar sobre as coisas difíceis e desafios que tanto minha avó quanto minha mãe enfrentaram, sem deixar que isso defina quem elas são.”
O cineasta define seu trabalho como uma reflexão etnopoética, referindo-se a um conceito proposto pelo escritor e tradutor estadunidense Eliot Weinberger, que descreve o que acontece quando comunidades observadas e filmadas por etnógrafos tradicionais, principalmente ocidentais brancos, decidem pegar as câmeras e filmar o que consideram necessário e relevante sobre si mesmas.
Reforçando a ideia que as três exposições dividem, Sky Hopinka defende que sua obra sirva como forma de preservação e transmissão da memória que sua família lhe garantiu: “Na escola não se aprende sobre a história dos nativos americanos, nossos artistas e nossa arte, o que gera uma lacuna entre 1890 e a década de 1980. Mas sempre houve arte sendo feita, filmes sendo produzidos, pinturas sendo criadas, esculturas sendo esculpidas, histórias sendo escritas. Só porque o público branco não estava olhando para elas, não significa que elas não existam. Por isso penso muito nas pessoas diferentes que vieram antes de mim e como estou apenas tentando continuar a construir sobre o que elas fizeram.”
Presença e resistência
Similarmente, André Mesquita, curador da exposição de Sheroanawe Hakihiiwe, defende a importância da presença dessas obras no museu: “Não é apenas uma questão de urgência, pois ela sempre existe, mas a presença é muito importante pra mim como curador. Essa presença marca um tema político em relação às instituições, ela é determinante para a gente pensar os efeitos e a responsabilidade institucional que a gente tem apoiando essa luta. A violência cresce, por isso dar visibilidade é importante.”
No livro “A Queda do Céu”, Davi Kopenawa define a imortalidade do que é fixado por indígenas nas peles de papel: “Ficarão sempre no nosso pensamento, mesmo que os brancos joguem fora as peles de papel deste livro em que elas estão agora desenhadas; mesmo que os missionários não parem de dizer que são mentiras. São essas palavras que pedi para você fixar nesse papel, para dá-las aos brancos que quiserem conhecer seu desenho. Quem sabe assim eles finalmente darão ouvidos ao que dizem os habitantes da floresta, e começarão a pensar com mais retidão a seu respeito?”
A ideia dialoga com a produção de Sheroanawe, cujo trabalho vai da produção do papel artesanal à transposição de pinturas corporais de sua comunidade em monotipias que atravessam o mundo em grandes exposições. O papel como material ganha vida para agir politicamente e atrair o olhar branco para essa produção cultural que sempre existiu nas Américas, e cuja existência se reverte em resistência.
Sky Hopinka retoma: “Minha arte é uma forma de resistência, porque este país foi fundado com o desejo de nos exterminar, então, apenas o ato de ser e afirmar quem você é serve como forma de resistência. É sobre fazer as coisas que ninguém vai te pedir para fazer e que ninguém quer que você faça.”
As exposições permanecem no subsolo do Masp até setembro de 2023, com entrada gratuita às terças-feiras e agendamento on-line obrigatório através do site do museu.