Iêmen dividido
Unificado em 1990, o país continua sofrendo com conflitos internos que ameaçam a sua estabilidade. Em Saada, intensifica-se uma luta de insurreição cujos líderes afirmam ser apoiados pelo Irã
Imune aos olhares externos, a região de Saada, no noroeste do Iêmen, transformou-se em palco de violento conflito desde junho de 2004. Um grupo de rebeldes denominados “utistas” opõe-se ao governo central, em Sanaa. Antes liderados pelo ex-político Husayn Al-Houthi, hoje o comando do grupo está nas mãos de Abdoulmalik al-Houthi, que substituiu o irmão após sua morte, em setembro daquele ano. Apesar do anúncio de cessar-fogo em julho de 2008,1 os combates foram retomados recentemente. O conflito, que faz milhares de vítimas e refugiados em um território de diversas tribos étnicas, ainda é ignorado pelo resto do mundo.
A rebelião utista reclama ter identidade religiosa zaidita, uma ramificação do Islã xiita presente nos planaltos do Iêmen, mas que se distingue claramente, no plano teológico, do xiismo imame ou duodecimal, dominante no Irã.2 Os zaiditas, cerca de um terço da população iemenita, são descritos como moderados do ponto de vista da jurisprudência e do dogma e dividem uma ampla parte de suas interpretações religiosas com os sunitas do rito chafeita,3 também presentes no país.
A rebelião é acusada, pelo governo, de desejar a restauração do antigo imame zaidita que reinou no país até 1962, ano da revolução republicana. Os imames eram considerados sayyid, descendentes do profeta Maomé, categoria da qual fazem parte os irmãos Al-Houthi.
As autoridades afirmam que os utistas são apoiados pelo Irã e participam, da mesma forma que o Hezbollah libanês, do desenvolvimento de um “arco xiita” por todo o Oriente Médio. O governo do Iêmen, aliás, insiste em dar destaque a essa informação para tentar sensibilizar e obter apoio das autoridades sauditas, preocupadas com a crescente capacidade de projeção de seu rival iraniano. Essas alegações são negadas pelos líderes utistas, que proclamam lealdade à República e afirmam querer simplesmente preservar uma identidade religiosa zaidita, que acreditam estar ameaçada por ramificações como o wahhabismo ou o salafismo, versões bastante rigorosas do Islã sunita.
Berço histórico do zaidismo, a região de Saada foi considerada por alguns como um dos últimos bastiões da monarquia ao longo da guerra civil dos anos 1960. Por essa razão, a área permanece distante das políticas de desenvolvimento sugeridas pelos sucessivos governos republicanos. Diante desse cenário, surgiu a corrente utista a partir de um movimento de renovação zaidita iniciado nos anos 1980 em Saada e Sanaa, capital do país, em torno dos diferentes institutos de formação, editoras e locais de culto.
Apesar da maior parte da elite política, incluindo o presidente Ali Abdallah Saleh, ser de origem zaidita, esse movimento de renovação ainda permanece minoritário.
Enquanto os utistas insistem em visões particulares da lei islâmica e da prática religiosa, boa parte dos seguidores dessa corrente está envolvida com os processos de uniformização de identidade, encorajados pelo sistema educativo e pelo Estado republicano. Assim, a oposição entre sunitas e xiitas, ao menos na política, vem perdendo importância.
Contudo, esta convergência de identidades não impede que os zaiditas sejam cada vez mais estigmatizados pela corrente salafi, aliada circunstancial do poder. Dentro do caldeirão de conflitos em Saada, as tensões são bem frequentes e a guerra ameaça se transformar em enfrentamento interconfessional. No final de agosto de 2009, a imprensa registrou combates entre utistas e alunos da escola salafi Dar Al-hadith, contabilizando diversas vítimas.4 Informação esta que os utistas negam em seu site na internet. Em março de 2007, dois estudantes estrangeiros morreram em confrontos similares.
A violência é descrita pelo governo como sendo de caráter ideológico, uma questão entre a República e um grupo religioso extremista. Já os utistas classificam-na como resultado da resistência à repressão. Mas, acusações à parte, o conflito está ligado a múltiplos fatores que explicam o beco sem saída em que se encontra o país atualmente.
As hostilidades contínuas, apesar das inúmeras mediações em busca da paz – especialmente a negociada em Quatar em 2007 – são, em parte, devido ao surgimento de interesses econômicos que se sobrepõem às brigas internas pelo poder. O controle do comércio ilegal na região da Arábia Saudita e do Mar Vermelho – que facilita o tráfico de diesel e armas na direção do Chifre da África – representa um enorme trunfo nessa disputa. Embora parte das armas destinadas aos militares seja exportada, outra é paradoxalmente revendida aos rebeldes via intermediários, especialmente ativos nessa região do país.
A perspectiva da sucessão do presidente Saleh, no poder desde 1978, atiça ainda mais a competição pelo poder, em especial entre seu filho, Ahmed Ali Saleh (que já ocupa o posto de chefe das forças especiais e da guarda republicana) e diferentes figuras das forças armadas. A região de Saada seria então o palco de uma guerra por procuração, onde os clãs rivais tentariam, por um lado, demonstrar sua capacidade de angariar recursos econômicos e, por outro, seu domínio sobre a área.
A situação-limite do Iêmen também está ligada ao crescente papel dos atores tribais.
Do engajamento das milícias, seja do lado estatal ou dos uditas, ao projeto governamental de formar um “exército popular” apoiado nas tribos fixadas em Saada, o conflito entrou em uma espiral de violência na qual a vingança e a vendetta são partes essenciais da solidariedade tribal. No início de 2009, apesar dos esforços e recursos empregados em favor da reconstrução, certos grupos tribais, inicialmente aliados ao exército, tentaram pressionar o governo, bloqueando estradas e fazendo reféns. Essa notável “tribalização” do conflito é um convite para reconsiderar os discursos que evocam um projeto político por parte dos “utistas” ou um enfrentamento entre sunitas e xiitas orquestrado por certas figuras próximas ao poder.
Dessa forma, além da disputa de Saada, sobrepõe-se aqui a antiga rivalidade entre as duas principais confederações tribais nos planaltos ao norte do país: enquanto os Hashid combatem ao lado das forças do governo, há muitas tribos Bakil que apoiam os rebeldes.5 Embora precise ser aprofundada, esta análise explicaria a expansão gradual da zona de combate, especialmente na região de Harf Soufyan, mais ao sul, não longe dos domínios de Al-Ousaymat, uma das principais tribos Hashid. Tal engrenagem revela a fonte potencial a deflagrar uma guerra que, pelos meios e mecanismos de solidariedade tribais, ameaça envolver outras regiões do norte do Iêmen, especialmente os territórios de Al-Jawf, Amran e Hajja.
Guerras tribais
Os atores regionais também desempenham papéis pouco construtivos. De 2007 a 2008, uma mediação do Qatar e a assinatura de um acordo entre os beligerantes não obteve o efeito esperado. O reinício dos combates levou Doha a retirar e a anular as promessas de participar financeiramente da reconstrução e desenvolvimento da região de Saada. Já a posição da vizinha Arábia Saudita parece para alguns, no mínimo, ambígua. Há quem a acuse de ter detonado a mediação do Qatar a fim de limitar o impacto deste pequeno emirado dentro de sua zona de influência tradicional iemenita. Apesar de a monarquia vizinha considerar a guerra de Saada como um assunto interno, alguns personagens sauditas financiam o esforço de guerra iemenita, bem como as milícias tribais, encorajando assim a continuidade dos combates.
Por outro lado, os Estados Unidos e a União Europeia, dando ênfase excessiva à luta antiterrorista e não se esforçando na busca por uma solução pacífica, têm indiretamente oferecido ao governo de Sanaa um cheque em branco. Mesmo que o Iêmen tenha sido criticado por seus aliados, especialmente por Washington, por sua falta de compromisso na “guerra mundial contra o terrorismo”, para ele é mais fácil assimilar que a rebelião se deve a um grupo terrorista – afirmando por vezes ligações deste com Al-Qaeda – que admitir a identidade zaidita dos utistas.
De fato, a economia de guerra, bem como a instabilidade crônica e a repressão, parecem deixar o campo livre para o crescimento de grupos violentos, com certas figuras próximas à Al-Qaeda. Embora ainda não totalmente explicado, o sequestro de estrangeiros de uma organização não governamental, que trabalhavam em um hospital de Saada, e a execução de três deles, em junho de 2009, ilustram bem esse mecanismo perverso. Apesar de o governo ter inicialmente afirmado que os utistas eram os responsáveis pelo crime,6 a implicação de grupos sunitas parece mais plausível.
No início de 2009, Nasir Al-Wouhayshi, iemenita por vezes descrito como ex-secretário de Osama Bin Laden, anunciou a criação da Al-Qaeda na Península Arábica, com a fusão de ramificações sauditas e iemenitas. Por outro lado, a unificação do Iêmen do Norte com o Sul em 1990 resultou em forte contestação antidiscriminatória das populações nos territórios sulistas; atualmente, o clima na região é cada vez mais separatista, à medida que a repressão aumenta.7
Por muito tempo o regime dirigido por Saleh tem conseguido mentir e falsear os prognósticos, mantendo certa estabilidade, mas a multiplicidade de crises e problemas de sucessão colocam em risco esse equilíbrio precário,8
podendo levar a um colapso do Estado com consequências incalculáveis para toda a região.
*Pierre Bernin é pesquisador.