Impactos e oportunidades
A crise internacional desafia as boas condições do presente e ameaça a materialização das perspectivas para o futuro de mais longo prazo. As oportunidades só serão aproveitadas caso a gestão macroeconômica seja distinta da que tem predominado nos últimos anos
A principal economia do planeta está em crise, e não é de hoje. Nos últimos meses já é possível sentir a sua propagação para o resto do mundo. Nesse pouco mais de um ano que dura a crise, muito se especulou a respeito de suas causas, efeitos, profundidade, duração. Nessas discussões, o “pior momento” já foi anunciado mais de uma vez como tendo ficado para trás, e a tese sobre o “descolamento” das economias emergentes em geral, e do Brasil em particular, ganhou adeptos e repetidores, cada vez mais raros. Apesar da enorme incerteza reinante, algumas reflexões sobre o momento atual podem aqui ser esboçadas, com conclusões bem menos otimistas.
Entende-se que a crise é de natureza distinta de episódios anteriores e projeta uma fase mais longa de dificuldades: por iniciar-se no país central, por ter afetado o seu sistema financeiro e por questionar o atual arranjo desequilibrado da economia global. No que se refere aos desdobramentos sobre os países periféricos, o elemento central (e pouco comentado) parece ser a diferenciação entre eles. Da forma de inserção comercial nos últimos tempos, dos distintos graus de importância na economia global e das opções de política econômica, parecem depender os cenários mais prováveis em cada caso. Olhando mais de perto para a economia brasileira, esses três parâmetros, aliados às transformações estruturais das últimas décadas, sinalizam um provável desmonte das boas condições até agora vigentes e demandarão outro perfil de política econômica.
A natureza da crise e sua duração
A crise financeira americana, cujo epicentro foi o mercado de hipotecas imobiliárias classificadas como subprime, constitui a primeira crise sistêmica do capitalismo financeirizado. Sua eclosão explicita a impossibilidade de sustentação ad infinitum de uma lógica patrimonial de valorização de ativos, ancorada no crédito bancário, que teve como objeto sucessivas bolhas – ações, bônus, imóveis, commodities – e encontrou no mercado imobiliário americano seu ponto máximo.
A literatura que trata da crise reconhece a gravidade da situação, ainda que com divergências quanto à sua duração e impactos. Nas últimas semanas, vai se tornando consensual o quadro de uma desaceleração prolongada, mas não muito aguda, nos Estados Unidos e também na Europa e no Japão. Referendando tais projeções está a percepção de que a atual crise, ao atingir o sistema bancário, objetivamente por meio da deterioração da qualidade de seus ativos e subjetivamente pelo aumento da sua aversão ao risco, fatalmente levará a uma contração do crédito, variável crucial para o crescimento americano. A própria desaceleração terá implicações adicionais sobre esse quadro, realimentando-o.
Mas esse é apenas um dos ângulos possíveis de análise, mais restrito. Olhando para a economia internacional, essa crise é diferente de tudo a que se assistiu nessas últimas décadas de “globalização” das relações econômicas, porque se inicia, ao contrário de episódios anteriores, no centro do sistema. E também porque coloca em risco o atual arranjo dessas relações, que apesar de desequilibrado foi capaz de produzir taxas de expansão não vistas desde a “era de ouro” do capitalismo pós-Segunda Guerra.
É de domínio disseminado a noção de que o elemento dinâmico do crescimento da economia global tem sido os déficits em transações correntes da economia americana. Ancorado no caráter-chave de sua moeda, os EUA puderam crescer nos últimos 20 anos sem restrição externa e, a partir de então, tornar-se a locomotiva da expansão do resto do mundo, com poucas exceções. Mais especificamente, operou com todo vigor desde a última inflexão cíclica (2001), que pode ser definida como uma poderosa “engrenagem comercial” entre o consumo americano e o crescimento acelerado de parte significativa da periferia. Nessa engrenagem, seriam três os elos principais: pela ordem de importância, aquele entre os EUA e a Ásia em desenvolvimento; outro constituído pelas expressivas relações intra-asiáticas; e o terceiro unindo esta última região àquelas produtoras de commodities de diferentes tipos.
Ou seja, pelo lado real, não é exagero dizer que o dinamismo asiático (chinês, em particular) é central para a economia global atualmente, mas essa afirmação se torna incompleta quando não acompanhada da menção ao déficit externo americano. Portanto, a depender da duração e da profundidade da desaceleração da economia líder, o desequilíbrio que materializa o primeiro elo pode se reduzir drasticamente, e com ele, os demais impulsos dinâmicos.
Cabe ainda ressaltar que, pelo lado financeiro, também tem funcionado um mecanismo de sustentação desse desequilíbrio: os estoques de reservas internacionais, principalmente nas economias asiáticas (novamente com a China à frente), foram ampliados em um ritmo absolutamente inédito, e a forma predominante de manutenção do valor dessa riqueza foram os títulos americanos. Ou seja, ao aumento do déficit correspondeu uma disposição igualmente ampliada para financiá-lo. A crise, principalmente em suas repercussões sobre o valor do dólar e seu papel de moeda reserva, pode questionar esse arranjo financeiro, também conhecido como Bretton Woods II.
Os desdobramentos da crise e os impactos diferenciados na periferia
Diante desse cenário, o que se pode esperar para os países periféricos? Ganharam popularidade no debate as diversas versões da teoria do “descolamento”. Com base em evidências da substituição progressiva dos Estados Unidos pelo próprio mundo em desenvolvimento como destino das exportações deste bloco; da importância crescente dos mercados internos como motores do dinamismo; e da melhora generalizada nas suas condições externas, passou-se a apregoar que desta vez a periferia não seria afetada pela crise. Vislumbrava-se a sustentação do crescimento global, agora puxado pelo mundo em desenvolvimento, numa inversão das determinações tradicionais.
De nosso ponto de vista, além do nítido caráter especulativo de algumas versões e usos do argumento, o grande problema é que parece lhe escapar uma dimensão fundamental: a diferenciação entre países ou regiões emergentes. Dito de outra maneira, a manutenção de taxas de crescimento significativas ante a desaceleração no centro não parece constituir uma prerrogativa genérica dessas economias, mas apenas de parte delas. E aqui, a distinção entre os três elos do dinamismo global parece fundamental, em nítida clivagem geográfica.
O elo dinâmico é sem dúvida aquele que une a economia americana às asiáticas e se mostra de natureza distinta daquele estabelecido com as demais periferias, mormente com a América do Sul. Isso porque o comércio dos EUA com a primeira região é constituído quase exclusivamente de manufaturas, principalmente as de maior intensidade tecnológica. Já no caso da segunda região o peso das commodities é decisivo. Aliás, é preferencialmente por meio desse tipo de comércio – exportação de matérias-primas e importação de manufaturas – que as economias sul-americanas se articulam não só com as regiões desenvolvidas, mas também com a periferia dinâmica e industrializada.
Isso sem contar a dimensão puramente quantitativa: mantidos os ritmos de crescimento asiático, em particular o da China, a região se tornaria, em breve espaço de tempo, um pólo-chave da economia mundial, com PIB, fluxos de comércio e mercados financeiros da mesma magnitude que os dos EUA e da União Européia. A crise americana apenas aceleraria essa transformação, ao forçar uma menor dependência dos déficits dos EUA. No terceiro elo, a importância sul-americana só tem se reduzido, por qualquer critério de medição, mantendo sua vinculação à trajetória dos elos dinâmicos.
Já se observa, dada a redução do déficit em conta corrente, a diminuição da demanda americana por importações asiáticas, reduzindo o peso das exportações líquidas na demanda efetiva nessa região. A reação a essa modificação ocorre tanto por uma ampliação do componente doméstico no total da demanda quanto pela mudança parcial do destino das suas exportações, o que também se reflete na não desprezível apreciação do yuan. Ou seja, há vários motivos para prever grande capacidade de resistência da Ásia à desaceleração central.
Por sua vez, o impacto para os sul-americanos parece depender em grande medida da trajetória dos mercados de commodities. Quanto a isso, a redução da demanda das economias desenvolvidas deverá ser apenas parcialmente atenuada pela preservação de taxas de crescimento asiáticas, sustentando seus preços em patamar elevado mas inferior ao verificado nos últimos 12 meses. Isso porque, com a eclosão da crise das hipotecas subprime, o mercado de commodities tornou-se o último refúgio do movimento especulativo anteriormente concentrado no mercado imobiliário. Mas essa minibolha também dá mostras de já ter estourado. Assim como não faltam indicativos de que o caudaloso ciclo de liquidez para as economias emergentes já se encontra em processo de reversão, prenunciando dificuldades (também diferenciadas) para o financiamento externo na periferia.
As perspectivas para a economia brasileira
A reflexão sobre as perspectivas da economia brasileira diante dessa realidade deve levar em conta fatores determinantes de diferentes naturezas, que ajudam a entender o nosso baixo dinamismo crônico e explicitam os limites e possibilidades para a manutenção do crescimento mais significativo que, muito recentemente, passou a se verificar no país.
O primeiro grupo de determinantes é de natureza estrutural, fruto das opções políticas das últimas décadas, sob o predomínio do ideário liberal e diante de um mundo em forte mutação.
Em relação à estrutura produtiva, enquanto os países desenvolvidos e os emergentes da Ásia diversificaram a sua indústria na direção do setor-chave do novo paradigma tecnológico – o eletrônico –, o Brasil pouco fez nesse campo (com poucas exceções), observando-se a ampliação da importância dos setores intensivos em recursos naturais. Na mesma direção, o que se pode chamar de internacionalização assimétrica da estrutura produtiva brasileira significou a atração de grandes volumes de Investimento Direto estrangeiro – inicialmente vinculado ao processo de privatização dos serviços, e mesmo depois ainda mantendo alta parcela de fusões e aquisições –, sem a contrapartida da expansão externa das nossas grandes empresas. Como resultado, pouca contribuição para o aumento da capacidade produtiva e menor ainda para a implantação de setores tecnologicamente avançados, além da perda de competitividade das companhias nacionais. Adicionalmente, os investimentos em infra-estrutura ficaram muito aquém do necessário para sustentar taxas de crescimento mais vigorosas, fruto dos constrangimentos ao investimento público e também da tentativa (fracassada em grande parte) de transmissão dessa responsabilidade ao setor privado por meio das privatizações.
A abertura financeira, outra frente de reformas liberalizantes embalada pelo mito da contribuição da poupança externa ao crescimento, possibilitou um estado quase permanente de vulnerabilidade externa, exacerbado nos momentos de reversão do ciclo de liquidez global. Essa vulnerabilidade engendrou um quadro crônico de instabilidade macroeconômica, configurado em taxas de câmbio e taxas de juros desalinhados e muito voláteis, com prejuízo para o investimento produtivo.
Esse panorama negativo pode parecer ultrapassado e contrastante com o forte otimismo reinante no país e em seu debate econômico. Do nosso ponto de vista, dada a ausência de transformações estruturais, grande parte da explicação para o bom momento se encontra no ambiente internacional benigno ora ameaçado, ao qual o Brasil se engatou como membro típico do terceiro elo dinâmico, já discutido na seção anterior. Este é o segundo grupo de determinantes a ser considerado.
Elemento mais importante na construção desse quadro, o ganho de peso dos setores produtores de commodities (agrícolas, minerais e industriais) na estrutura produtiva foi simultâneo ao excepcional ciclo de aumento dos preços desses produtos nos mercados globais. Isso significou não apenas um impulso para a manutenção de elevados saldos comerciais a despeito da apreciação do real, como serviu de poderoso atrativo para investimentos estrangeiros de carteira nas grandes companhias, desses setores, que dominam o exuberante (agora não mais) mercado local de ações.
Acrescentando o ambiente de farta liquidez global e baixa aversão ao risco, e o crescimento acelerado da demanda por nossas exportações, têm-se os ingredientes para a melhora acentuada na situação externa – tanto pelo lado da conta corrente quanto da conta financeira –, cuja vulnerabilidade há tempos aborta todas as tentativas de retomada do desenvolvimento. Se o raciocínio está correto, a desmontagem desse arranjo internacional favorável ameaça, sim, a superação dessa vulnerabilidade externa, a despeito dos US$ 200 bilhões em reservas internacionais.
Em primeiro lugar, porque parte dessas reservas é resultado de investimentos especulativos em ações e outros títulos que, dotados de liquidez imediata e ainda registrando alto rendimento acumulado, podem deixar o país quando o ciclo de liquidez se reverter. Em segundo, porque a correção dos preços das commodities põe mais pressão sobre a conta corrente do balanço de pagamentos brasileiro, que já caminha para um elevado déficit. E em terceiro porque a apreciação do real acumulada nos últimos anos foi de tamanha magnitude que ele próprio é um ativo sujeito a movimentos especulativos.
Em relação a esse último ponto, não há como deixar de citar um terceiro conjunto de determinantes. Trata-se da responsabilidade da política econômica do governo Lula, atada a um compromisso ultra-ortodoxo com um rígido regime de metas para a inflação e que, ao conservar a taxa de juros em patamares sempre muito elevados, implicou a forte apreciação do real contribuindo para nossa vulnerabilidade à reversão do ciclo, em curso.
A transição para outro padrão traz riscos e exige escolhas difíceis. Mais especificamente, o país terá de escolher entre a desaceleração do crescimento ou a desvalorização da nossa moeda, para equilibrar as contas externas. No primeiro caso, deveremos suportar uma taxa de juros ainda mais alta que a atual. No segundo, um aumento da taxa de inflação decorrente da desvalorização do real.
Ao mesmo tempo, outras iniciativas de política, localizadas e incapazes por enquanto de se contrapor à diretriz geral emanada do Banco Central – como a ampliação do investimento em infra-estrutura buscada pelo PAC, os programas de distribuição de renda, a expansão do crédito e a incipiente internacionalização de algumas empresas nacionais –, apontam na direção de mudanças estruturais e de fontes do crescimento.
Há ainda um quarto grupo de elementos a ser considerado. Descortinam-se, no horizonte de médio e longo prazo, boas perspectivas do ponto de vista externo e de suas potencialidades domésticas. Os preços internacionais de commodities, mesmo com a provável correção dos excessos especulativos, devem se manter em patamar historicamente elevado, fruto do crescimento asiático e chinês. No campo energético, os biocombustíveis e principalmente o petróleo da camada pré-sal são enormes fontes de riqueza futura para o país. Se bem aproveitadas, por meio de políticas que recusem o caminho da reespecialização em recursos naturais e dêem conta dos riscos da doença holandesa, podem representar o elemento catalisador para a retomada de fato do desenvolvimento sustentado.
Em suma, o quadro é de riscos e oportunidades. A crise internacional desafia as boas condições do presente e ameaça a materialização das perspectivas para o futuro de mais longo prazo. A análise feita aqui indica que as oportunidades só serão aproveitadas caso a gestão macroeconômica seja distinta da que tem predominado nos últimos anos, e as insuficientes iniciativas de mudança estrutural se reforcem.
*Ricardo Carneiro é professor titular do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp-SP. André Biancareli é professor assistente do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp-SP.