Índia – Bangladesh, uma fronteira desastrosa
Após 25 anos, a Índia espera completar em 2012, o fechamento de sua fronteira com Bangladesh: 3.286 km, a barreira geopolítica mais longa do mundo. Porém, o muro se revela menos intransponível do que se imagina. Muitas coisas o atravessam: pessoas, um idioma comum, gado, temperos e quatro milênios de história bengaliElizabeth Rush
Bengala Ocidental, Índia. Ao longe, duas pessoas caminham próximas da fronteira, uma vestida de branco, a outra, de laranja. A primeira escorrega pela terra da encosta, estendendo as mãos para ajudar a segunda. Juntas, elas patinam num canal estreito, com água até a cintura, no meio de aguapés violeta. Quinhentos metros à esquerda delas, ergue-se um trecho da famosa fronteira. Mas não há nada ali. Apenas uma luz crepuscular na qual tudo se dissolve. As duas minúsculas silhuetas sobem por um caminho de terra o declive ao longe. E pronto, passaram, desaparecendo nas curvas do terreno de outro país. Custo total da viagem: de 500 a 1.000 rúpias (entre R$ 19 e R$ 38), só ida1 – tudo depende do grau de intimidade com os guardas subornados. “Bangladesh se encontra logo atrás”, indica-nos Shoun,2 mostrando uma fileira de tamareiras. Esse país fez parte da Índia até 1947, data na qual os britânicos dividiram a região segundo critérios religiosos: os muçulmanos de um lado e os não muçulmanos do outro, criando uma fronteira internacional traçada na pressa e jogada no meio de uma zona que nunca antes havia conhecido tal conceito.
O Bengala indiano, que antes possuía uma unidade regional, cultural e econômica, foi dividido em duas partes desiguais: o Bengala Ocidental (que ainda pertence à Índia) e o Paquistão Oriental. Este último, que era ligado ao Paquistão e se libertou depois da guerra de independência de 1971, foi rebatizado de Bangladesh. Enquanto a Índia emerge como uma das grandes potências planetárias, Bangladesh continua batalhando para se dotar de infraestruturas de base e se livrar da corrupção.
Tão caro quanto ineficiente
Nos últimos 25 anos, Nova Délhi injetou bilhões de dólares na construção do muro fronteiriço mais longo do mundo. A cada ano, o Ministério do Interior consagra US$ 1,3 bilhão suplementares à sua manutenção, assim como ao pessoal encarregado desse programa de defesa nacional tão caro quanto ineficiente. Ele é apresentado como a Grande Muralha da China dos tempos modernos: uma barreira hermética destinada a conter os bengalis. Mas a realidade não tem muito a ver com a imagem oficial. Em muitos locais, o famoso muro se resume a algumas fileiras de arame farpado estendidos entre acampamentos esparsos. Ele se interrompe regularmente, é retomado mais adiante, garantindo espaços para tudo que puder atravessar: camponeses cultivando essa terra de ninguém entre os dois países, refugiados, mulheres e crianças vítimas de tráfico e centenas de milhões de dólares de mercadoria contrabandeada que representam três quartos do comércio oficial entre a Índia e Bangladesh. A fronteira é permeável, flexível, porosa. A prova perfeita de que a necessidade é a lei e de que a realidade do terreno zomba da política nacionalista e das falsas identidades que ela inventa.
Um cordão de casebres com telhado de palha beira a estrada que margeia a fronteira. A cada 300 metros, uma nova guarita e um guarda de uniforme com uma espingarda no ombro. A Força de Segurança Fronteiriça (Border Security Force, BSF) conta com 240 mil membros. Seus acampamentos se prolongam por 3 mil quilômetros, para controlar uma linha traçada no papel meio século atrás.
Se acreditarmos no brigadeiro Singh, engajado na BSF há 25 anos, “nada passa a fronteira, ninguém, nenhuma mercadoria, nada”. Já os habitantes contam uma história completamente diferente: um mercador de gado de Lagola, pequena cidade fronteiriça de Bengala Ocidental, estima que cerca de 80% dos habitantes estejam envolvidos no comércio entre fronteiras.
A noite cai rapidamente nos trópicos, e com a escuridão surge outro mundo. A cada noite, dezenas e até centenas de pessoas transportam milhões de dólares em mercadoria contrabandeada até Bangladesh. E a quase totalidade dos guardas fronteiriços tem um lucro inacreditável, facilitando o que deveriam impedir.
Um século atrás, Bengala era o lar do renascimento cultural indiano e de sua identidade moderna. Mas a prosperidade ao mesmo tempo intelectual e agrícola que distinguia essa região repousava na complementaridade de suas duas metades: as indústrias da capital colonial, Calcutá, transformavam as matérias-primas originárias das terras aluviais que hoje chamamos de Bangladesh. Quando Bengala foi desmembrado, os fazendeiros do leste perderam não apenas a destinação de seus produtos brutos, como também os meios de convertê-los em insumos acabados prontos para a comercialização. As fábricas de bolsas com a juta e com o algodão se encontravam do outro lado de uma fronteira internacional.
Depois da divisão, o novo estado indiano de Bengala Ocidental (assim rebatizado em 1947) foi confrontado com as penúrias de alimentação que devastaram Calcutá. Depois, nos anos 1960, Nova Délhi lançou a “Revolução Verde”: irrigando os estados de Bihar, Haryana, Punjab e Uttar Pradesh, ela transformou o norte do país numa plantação de trigo, compensando assim a perda sofrida de um dia para o outro, quando metade de Bengala se tornou outro país. Enquanto 18% das importações declaradas de Bangladesh provêm da Índia, apenas 0,01% do que entra na Índia é de origem bengali. O antigo Paquistão Oriental também tem, no entanto, suas especialidades – sendo a primeira, a despeito do que a história poderia fazer pensar, nem a juta nem o algodão, mas um fertilizante tóxico chamado amoníaco anidro. As novas condições permitiram alimentar seu desenvolvimento industrial. Mas mesmo se Bengladesh exporta roupas e matérias-primas destinadas à indústria têxtil do mundo inteiro, a Índia não compra quase nada.
Bangladesh precisa desesperadamente do que se encontra do outro lado da fronteira. O couro, por exemplo, uma das indústrias nacionais mais rentáveis, vem quase que exclusivamente da Índia. O abate e a exportação são proibidos na maioria do território indiano, mas, apesar dessas leis, que tiveram sua origem nos preceitos religiosos, todos os dias dezenas de milhares de cabeças de gado chegam milagrosamente. “O contrabando é a segunda maior indústria do país”, diz Aminal Ehsan, diretor de comunicação de Rupantar, uma ONG de Khulna. “Sim, claro, há tráfico ilegal na Índia, mas não tanto quanto aqui, onde ele representa metade de tudo” – tudo que é comprado, vendido, consumido.
Violência e corrupção
Se o comércio de gado vivo é proibido do lado indiano, a vaca hindu vendida a um Bangladesh muçulmano não é mais considerada ilícita. Basta pagar, na chegada, uma taxa de 500 tacas (R$ 12), e o negócio está feito. Para os mais pobres, do pastor do interior ao artesão de couro de Dacca, o gado é vital. E encontra-se a carne de vaca “bengali” no mundo inteiro: na forma de bifes em Dubai e Abu Dhabi, de artigos de couro de luxo em Paris, de botinas italianas falsificadas nos Estados Unidos…
Os animais vêm dos confins da Índia, pois a pecuária bengali não é mais suficiente. Em Bangladesh, eles são vendidos por mais ou menos 40 mil tacas (R$ 993); 32 mil tacas a mais que uma vaca local e aproximadamente seis vezes seu valor em um distrito indiano, onde o abate é proibido.
Dos 27 quilômetros da comuna de Lagola que são adjacentes à fronteira, apenas 7 são cercados, e, mesmo ali, os animais passam sem problema. Romjun, um mercador de gado local, explica: “Você encosta um copo cheio de água no arame farpado para abafar o barulho quando cortamos e pronto, já está do outro lado. Não é muito difícil! Com cerca ou sem cerca, pouco importa, basta pagar as pessoas certas!”.
Em Lagola, há gado por todos os lados. Em Rajshahi, logo do outro lado do rio ou às vezes da cerca, seu comércio é uma verdadeira instituição. Os mercados (haat) de muitas cidades fronteiriças são concebidos para poder acolher quantidades inacreditáveis de bovinos. No City Haat (mercado municipal) de Rajshahi, um dos dez do distrito, 3 mil cabeças são vendidas por semana, e até mesmo quatro vezes mais durante o mês que precede a festa muçulmana de Aid.
Atiqur Rahman obteve a concessão do City Haat, um encargo governamental que custa a ele milhões de tacas por ano. Correm rumores que ele mandou matar alguns rivais para obter o precioso arrendamento. Quando a metade do PIB provém de vantagens ou medidas ilegais, a violência e a corrupção gangrenam todas as instituições. Oficialmente, o haat ganha uma comissão de 3% sobre cada venda – o que, com 3 mil cabeças por semana, é muito dinheiro, ou como dizem os bengalis, “Bohoot taca!”. E todo mundo na cidade sabe que é apenas um dos meios para Rahman rentabilizar sua posição dominante no maior corredor de animais do país.
Em outubro de 2011, Nurul Islam, vendedor de chapatis3 em um dos cais (ghât) mais frequentados de Rajshahi, colocou na cabeça a ideia de fazer o inventário dos animais em trânsito: “Não suportava mais ver que os que enchem o bolso graças às vacas são todos estrangeiros. Eles ganham seu dinheiro em Rajshahi e guardam para si!”, diz. Segundo Islam, um “padrinho” local se arranja com um gheital(preposto do cais, outro cargo governamental lucrativo) para fazer transitar o gado pelo porto. Ele envia em seguida homens contratados no local para buscar os animais na Índia, não sem ter também subornado os guardas da fronteira para que fechem os olhos.
Enojados por esse sistema onde aqueles que arriscam mais ganham menos, Islam e seu amigo Eshamel instalaram então um ponto de passagem informal no ghat. Para cada vaca, eles pedem ao pastor o recibo, a fim de verificar que as taxas alfandegárias foram devidamente pagas. “Era logo antes do Aïd, e em somente um dia, apenas metade das 4 mil vacas que passaram estavam regularizadas. Era o único meio que tínhamos para provar a corrupção.” Um falso certificado de importação custa cinco vezes mais barato que um oficial. A máfia local, depois de ter molhado a mão de um gheital para fazer vista grossa, recupera os documentos falsos diretamente no haat, esse mercado do gado pelo qual Rahman teve de derramar dinheiro e, talvez, sangue.
Simples gesto nacionalista
Bastaram duas semanas para que aqueles que controlam o comércio do gado em Rajshahi colocassem fim aos esforços de Islam e seu amigo: “Uns homens fortes vieram e levaram Eshamel para uma ilha no meio do rio. Eles quebraram suas mãos e suas pernas. A polícia não fez nada, pois ela tinha sido paga. Eshamel era barqueiro, mas agora ele não pode mais remar. Nem andar…”. O olhar de Islam se volta para o rio e a ilha entre os dois países, lá onde seu amigo foi espancado, lá onde, quando a noite cai, as vacas atravessam aos milhares…
Em Bangladesh, quase todos os objetos entram ilegalmente: um sári de noiva cintilante, uma pitada de cominho ou uma porção de goru bhuna.4 Muito ampla, a rede que protege essa fonte de bens importados torna o país dependente desse contrabando. A ponto de comprometer qualquer chance de desenvolvimento sem o dinheiro do mercado negro, que se insinua por todos os lados, de cima a baixo da escala social. No caso de Islam, não apenas a polícia, mas também a justiça é cúmplice: quando Kinu Mia, o padrinho da máfia do gado responsável pela violência contra Eshamel, quis “discutir” com ele, bastou mandar emitir um mandato para trazê-lo. No escritório do comissário do 9º distrito, ele soltou: “Você é arraia-miúda e eu sou peixe grande. Fique no seu lugar, senão eu corto sua carcaça em milhares de pedacinhos e espalho pelo tanque”. Quando Eshamel foi agredido, a imprensa local se recusou a cobrir o caso.
Mesmo que o tráfico seja quase institucional, ou talvez por essa razão, a fronteira entre a Índia e Bangladesh é uma das mais sangrentas do mundo, segundo a fundação Masum, uma organização de Calcutá que tenta, em parceria com a Anistia Internacional, fazer cessar as execuções extrajudiciais ali. Segundo Kirity Roy, seu presidente, cerca de quinze pessoas são torturadas por dia e, desde o ano 2000, mais de mil foram mortas pelos guardas.
Muitos consideram a violência persistente um “efeito colateral” da manutenção da ordem. Mas, num contexto mais amplo de um tráfico que lucra bilhões de dólares e no qual os guardas de fronteira estão completamente comprometidos, essa violência toma um sentido completamente diferente.
O muro – e talvez seja esse o elemento mais significativo – é vigiado por homens que vêm, na maior parte, dos 27 outros estados da União Indiana. “Os guardas da BSF não falam bengali”, constata Roy. “É um grande problema.” A duração de seu contrato, de três meses a um ano, é curta demais para que eles tenham a oportunidade de simpatizar com a comunidade bengali.
A prostituição floresce na fronteira, e as moças, tanto indianas quanto bengalis, contam os homens da BSF entre seus maiores clientes. Em janeiro de 2012, um vídeo mostrando alguns entre eles despindo publicamente um boiadeiro e lhe infligindo diversos abusos foi manchete na imprensa nacional. Apesar da ordem recente proibindo que atirassem sem motivo, sua impunidade continua total. O tédio, o racismo, o machismo ou o esquecimento desafortunado da gorjeta regulamentar são constantemente invocados quando a violência explode. Raros são aqueles que se dão conta de uma realidade pelo menos evidente: a Índia envia esses homens a uma região onde não entendem a língua e cuja história e cultura são estranhas para eles.
A BSF e, em menor medida, sua homóloga bengali, a Guarda Fronteiriça Bengali (Border Guard Bangladesh, BGB), menos brutal e menos importante, poderiam colocar um fim aos movimentos transfronteiriços ilegais. Mas muitos no seio dessas instituições pagaram pelo privilégio de trabalhar na fronteira, pois sabem perfeitamente que “controlá-la” é o mesmo que ter o poder de dar “direitos de passagem”. “Em Délhi ou Dacca, os soldados e os oficiais negociam para ser alocados nesse local que tem reputação de ser ‘rentável’”, diz um funcionário da alfândega de Benapole, o maior porto fluvial de Bangladesh.
O que acontece na fronteira está mais ligado à demonstração de força ou à gesticulação do que a uma verdadeira tentativa de controlar o fluxo de bens e pessoas. “Que comédia!”, suspira Ehsan. “Os guardas não têm, na realidade, nenhuma intenção de prender quem quer que seja. A violência infligida aos desesperados que se encontram prisioneiros entre os dois fogos por causa de sua miséria é intolerável.”
A muralha é apenas a manifestação física da imaginação poderosa, transbordante, de um Estado megalomaníaco. Cinquenta anos de esforços para se tornar uma nação democrática e atraente – e tudo isso para terminar nesse muro?
Elizabeth Rush é escritora e membro da agência fotográfica Makoto.