Indignação em Hong Kong, bomba relógio geopolítica
Eles começaram pedindo a retirada do projeto de lei sobre extradição; agora reivindicam sufrágio universal. Descendo às ruas às centenas de milhares, os habitantes de Hong Kong não esmorecem, apesar da repressão do poder local e das ameaças dos dirigentes chineses. O conflito pega mal para Pequim, num momento em que Washington tenta conter sua ascensão
Como são belas as manifestações quando acontecem sob outros céus! Aqueles que seguram cartazes, especialmente se são chineses ou russos, são vistos então como democráticos, pacifistas e responsáveis. Bem o oposto das hordas francesas de “coletes amarelos” violentos, obtusos e até fascistas.
Assim, o ataque ao Conselho Legislativo (Legco), o Parlamento de Hong Kong – portas explodidas, escritórios destruídos por algumas centenas de manifestantes –, em 1º de julho de 2019, tornou-se “a operação mais ousada” (Le Point, 3 jul. 2019), enquanto grafites no Arco do Triunfo em Paris e vitrines quebradas no subsolo, em 1º dezembro de 2018, testemunhavam a fúria dos desordeiros. A agressão a um jornalista chinês do Global Times, uma das vozes oficiais de Pequim, molestado, amarrado e levado em um carrinho pelos corredores do aeroporto de Hong Kong, foi apenas um “incidente” (Le Monde, 14 ago. 2019). Nada a ver com jornalistas verbalmente atacados por “coletes amarelos” adeptos do “linchamento”.
Como todos os movimentos de massa do mundo, o de Hong Kong, que reúne centenas de milhares de manifestantes, é atravessado por várias correntes, às vezes pacíficas, às vezes violentas, e suas reivindicações não se reduzem a uma única palavra de ordem.
Tudo começou em abril passado, quando a chefe do Executivo, Carrie Lam, apresentou um projeto de lei autorizando a extradição. Isso deveria permitir que um estudante que havia assassinado a namorada em Taipei e não podia ser julgado na ilha fosse entregue à justiça taiwanesa – uma notícia que mexeu muito com os moradores de Hong Kong. Mas, claro, todo mundo entende que esse projeto pode ter como alvo qualquer pessoa acusada de delinquência… por Pequim.
É bem verdade que o governo chinês não se deixou tolher pela lei quando, em 2015, sequestrou cinco livreiros e editores de Hong Kong suspeitos de querer publicar obras iconoclastas sobre o presidente Xi Jinping ou um riquíssimo empresário, Xiao Jianhua, em 2017…, os quais reapareceram, alguns meses depois, convencidos de que deveriam ser discretos no futuro. Acontece que advogados e defensores dos direitos humanos viram esse projeto como um novo questionamento da independência da justiça de Hong Kong. Eles foram, aliás, os primeiros a se manifestar, em abril e maio, sob o olhar de aprovação dos magnatas, esses grandes líderes dos mercados imobiliário e financeiro acostumados a reciclar capitais mais ou menos lícitos provenientes do continente e pouco entusiastas da ideia de Pequim de enfiar seu nariz grande em seus negócios.
Os estudantes, cujo “movimento dos guarda-chuvas” [Umbrella Movement], cinco anos atrás, sofreu uma série de prisões,1 retomaram a tocha. Eles foram seguidos por centenas de milhares de habitantes de Hong Kong, para quem esse projeto representa um golpe legislativo da China continental para reduzir-lhes a autonomia. Vários especialistas entrevistados em Hong Kong e Pequim acreditam que o presidente chinês, já às voltas com a guerra comercial que trava com os Estados Unidos, não tinha pedido nada.
O que isso importa? Não é o sentimento majoritário na população. No domingo, dia 9 de junho, 1 milhão de pessoas invadiram as ruas da cidade. Uma semana depois, eram 2 milhões (de 7,2 milhões de habitantes). Lam se fechou no silêncio e deu a vez à polícia. Só em 15 de junho ela anunciaria uma tímida “suspensão” de seu projeto. Muito pouco, muito tarde.
Uma parte dos manifestantes defende o recurso a ações contundentes, como o assalto ao Conselho Legislativo, a destruição de delegacias de polícia, o bloqueio do aeroporto. A chefe do Executivo escolheu a violência e reprime com gás lacrimogêneo, jatos de água e balas de borracha – mesmo que, ao contrário do que está acontecendo na França, até agora só se lamente o fato de uma pessoa ter sido ferida no olho.2
Lam também aprisiona à força (mais de seiscentas prisões) e fez algumas concessões, num total de 19,1 bilhões de dólares de Hong Kong (R$ 10 bilhões): redução de impostos sobre salários, subsídios em eletricidade para os mais pobres, ajuda aos estudantes menos afortunados. “Seria ingênuo da parte de Lam e Chan [Paul Chan, o secretário de finanças] tentar restabelecer a calma simplesmente gastando mais. A crise política só pode ser resolvida por medidas políticas”, alardeou o editorial do diário de Hong Kong South China Morning Post.3

O governo mais estúpido do mundo
Em 1984, quando o líder chinês Deng Xiaoping e a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher começaram a negociar a entrega de Hong Kong, o Império do Meio descobria os mistérios da economia de mercado, enquanto a colônia britânica com capitalismo desenfreado desfrutava de algumas liberdades – mas não do direito de votar nem do de decidir o próprio destino. Londres e Pequim discutiam entre si. Após longas conversas, acabaram adotando o princípio “um país, dois sistemas”.
A fórmula tranquilizou as elites de Hong Kong, que, após a mudança, em 1997, poderiam manter o controle sobre sua economia altamente desenvolvida, conservar seu aparelho judiciário independente e preservar suas liberdades de movimento e de pensamento. Hong Kong é povoada por chineses que fugiram do continente após a vitória de Mao Tsé-tung em 1949, durante a Revolução Cultural, em 1966, ou por ocasião dos acontecimentos na Praça Tiananmen [Praça da Paz] em 1989; eles são muito sensíveis a essas questões. Por sua vez, o poder chinês considerava-se protegido contra qualquer veleidade independentista (“um país”) e contra qualquer contágio democrático (“dois sistemas”).
Tudo se deteriorou em 2014, quando o governo chinês recusou a eleição do chefe do Executivo por sufrágio universal – embora previsto em seus próprios textos. Aceitou a votação com a condição de selecionar os candidatos… Apesar de uma enorme mobilização, Pequim teve ganho de causa. Lam foi eleita, e a oposição foi marginalizada ou excluída. Vitória de Pirro: uma “boa camarada” não significa necessariamente uma boa líder… “Temos em Hong Kong o governo mais estúpido do mundo”, confia-nos um executivo do continente. Sem dúvida; mas não é só uma questão de pessoas. Pequim redefiniu sua visão de “um país, dois sistemas”: “O alto grau de autonomia”, lê-se no Livro Branco, adotado em junho de 2014 pelo governo, “não significa autonomia total nem descentralização do poder. É a capacidade de conduzir os assuntos locais conforme permitido pela administração central”.4
Os líderes não receiam tanto a disseminação das aspirações democráticas para todo o território chinês, e sim uma rejeição do continente pelo povo de Hong Kong, o que daria origem à independência. Por seu turno, a população da ilha teme ver desaparecer sua identidade. Esses medos são autoalimentados e podem levar ao pior: à escolha da força por Pequim; à rejeição do continente pelo povo de Hong Kong. Os incidentes provocados por um racismo franco ou latente se multiplicam.
No entanto, as aspirações à independência permanecem marginais. “O compromisso com os valores cívicos [liberdade, direito de voto…]”, observam Chan Chi Kit e Antony Fung Ying Him em um estudo sobre a identidade, “não conduz automaticamente à resistência ao nacionalismo chinês” no sentido étnico do termo.5 De acordo com pesquisas realizadas pela Universidade de Hong Kong, pouco mais de um terço dos moradores ainda reconhece em si mesmo uma identidade mista (chinesa e de Hong Kong), embora a maioria agora se sinta como habitante de Hong Kong. Até o final do ano passado, metade dos habitantes dizia ter confiança no princípio “um país, dois sistemas”; agora são apenas quatro em dez.
Essa crise de identidade está associada a uma crise social. Se a cidade está entre as mais ricas do mundo, com um número recorde de bilionários (67, segundo a revista norte-americana Forbes), a desigualdade atinge seu nível mais alto e 20% da população vive abaixo da linha de pobreza. Regularmente, a imprensa fica indignada diante das moradias-gaiolas com menos de 5 metros quadrados, destinadas a idosos sem aposentadoria ou a trabalhadores sem vínculo empregatício. Agora, os jovens das camadas médias também são afetados. Se a crise imobiliária não data da época em que a região foi devolvida à China, os moradores de Hong Kong acreditam que a chegada de chineses ricos, que lavam seu dinheiro adquirindo imóveis e fazem os preços dispararem, a agravou.
Da mesma forma, eles estimam que os jovens executivos do continente, graduados das grandes universidades norte-americanas ou britânicas, falando um inglês perfeito, lhes roubam os cargos mais interessantes e mais bem remunerados, enquanto suas próprias perspectivas de emprego no território chinês não estão no nível que seus pais tinham sonhado há vinte anos.6
A essas frustrações adiciona-se a ansiedade em relação ao futuro. Ontem ponta de lança da economia de mercado, Hong Kong é agora ultrapassada por sua vizinha continental, Shenzhen, tanto pelas riquezas produzidas como pelo dinamismo tecnológico das empresas ali estabelecidas (Huawei, Tencent Holdings etc.). A região especial está se tornando menos “especial”…
Esse medo da desclassificação e as dificuldades da vida cotidiana explicam a mobilização maciça, muito além do lado dito “pró-democracia”. Uma parte das elites chinesas está ciente desse fato. Prova disso é o surpreendente artigo incluído tanto no muito oficial China Daily (em inglês) como no China Military (o jornal do Exército): “Muitos jovens estão descontentes com o que percebem como uma coalizão injusta entre dinheiro e poder, e […] consideram Carrie Lam um símbolo do establishment”.7 A chefe do Executivo estaria abandonada por Pequim?
No momento, o poder e seus comentaristas estão concentrando seus golpes nos Estados Unidos, acusados de fomentar a revolta. “Há evidências claramente documentadas de que grupos de protesto estão buscando e obtendo apoio dos Estados Unidos”, observa o cientista político Jonathan Manthorpe. “A Frente Civil de Direitos Humanos, que organizou marchas pacíficas em massa, recebe financiamento do National Endowment for Democracy”8 – o que foi confirmado pelo site oficial dessa organização ligada à CIA; mas ele não inventou o descontentamento. Já um professor aposentado de Hong Kong acusa “as igrejas protestantes, à frente de muitas escolas particulares”. Ele teve dificuldade em digerir a bandeira britânica flutuando por alguns momentos em frente ao Legco, ele que conheceu a colonização… E acrescenta, um pouco irônico: “Não vimos nenhum desses democratas apoiar as domésticas filipinas que se reuniam todos os domingos para fazer valer seus direitos, nem os estivadores que entraram em greve por quarenta dias em 2013”.
Uma carta estratégica preciosa
Se não há dúvidas sobre o apoio financeiro decorrente das habituais tramoias norte-americanas, Washington não está menos dividido quanto ao nível de apoio ao movimento. Mais preocupado com acordos comerciais que com direitos humanos, Donald Trump se manteve reticente, afirmando ter “zero dúvida” quanto à “capacidade do presidente Xi de resolver a crise com a humanidade” (tuíte de 15 de agosto de 2019). Ele chegou a ser cobrado pelos republicanos aguerridos, que querem ir às vias de fato com a China e, assim, frear suas ambições, e pelos democratas, que compartilham essa meta e também veem nisso uma oportunidade de apontar o dedo para o presidente Trump, apaixonado por todos os antiliberais do mundo.
É possível, como preveem – ou esperam – alguns deles, pensar em uma nova Tiananmen? A China de hoje em nada se parece com a de 1989: o regime não se sente ameaçado pela agitação de Hong Kong; mal informada, a população continental tende mais a considerar esses agitadores como crianças mimadas e a fugir como da peste de qualquer forma de caos. Além disso, como explica o analista Wu Qiang, ex-professor da Universidade de Tsinghua, em Pequim, o poder chinês “aprendeu as lições da repressão de 1989 realizando muitas trocas com os ocidentais sobre como lidar com motins políticos e protestos pacíficos”.9 O Império do Meio tornou-se, de certa forma, ocidentalizado…
Certamente, uma derrapagem é sempre possível. Mas Pequim não tem interesse em radicalizar o jogo. Em termos econômicos, Hong Kong parece menos essencial que antigamente: ainda que dois terços dos investimentos estrangeiros transitem por lá, sua participação na economia chinesa caiu, passando de 27% do PIB chinês em 1997 para 3% hoje. Xangai lhe faz concorrência no campo financeiro; Shenzhen, no da inovação.
Politicamente, no entanto, a cidade continua estratégica. Uma repressão autoritária e violenta traria água para o moinho dos pró-independência de Taiwan, a alguns meses das eleições presidenciais e legislativas – em janeiro próximo –, e legitimaria a reaproximação em curso entre Trump e a presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen. Mas aos olhos do Exército, assim como aos dos cidadãos chineses, Taipei é muito mais importante que a ex-colônia britânica.
Além disso, um derramamento de sangue em Hong Kong arruinaria os esforços de abertura diplomática de Xi Jinping, cuja iniciativa das novas “rotas da seda” (Belt and Road Initiative, BRI) e forte presença no Mar da China já preocupam seus vizinhos. Se alguns, em Washington, imaginam que as sanções internacionais que se seguiriam constituiriam armas eficazes na guerra econômica, eles esquecem que as economias chinesa e norte-americana são agora interdependentes. Como os mercados já estão agitados, não é certo que Trump queira correr tal risco antes da nova disputa pelo mandato.
Do lado chinês, o medo não é menor. Assim, o Global Times, que nunca se priva de vilipendiar os manifestantes, entre os quais denuncia haver a presença de fantoches nas mãos de Washington, alertou contra uma intervenção armada. “O que vai acontecer a seguir?”, questionoua o redator-chefe, Hu Xinjin. “Hong Kong não tem as forças nem os mecanismos [para assumir o comando]. Isso resultaria em enormes custos políticos […]. A opinião pública de Hong Kong não apoiaria.”10 Mas sabemos por experiência que, na política, a racionalidade nem sempre é garantida.
Martine Bulard é jornalista do Le Monde Diplomatique.
1 Ler Nahan Siby, “L’été se prolonge à Hongkong” [O verão se prolonga em Hong Kong], Le Monde Diplomatique, out. 2014.
2 Balanço em 20 ago. 2019.
3 “More than money needed to resolve city’s political crisis” [Para resolver a crise política de uma cidade, é necessário mais que dinheiro], South China Morning Post, Hong Kong, 16 ago. 2019.
4 “The practice of one country, two systems policy in Hong Kong Special Administrative Region” [A prática da política de um país, dois sistemas na Região Administrativa Especial de Hong Kong], Conselho de Estado da República Popular da China, publicado pelo China Daily, Pequim, 10 jun. 2014.
5 Chan Chi Kit e Antony Fung Ying Him, “Désarticulation entre les valeurs civiques et le nationalisme: cartographie du nationalisme d’État chinois” [Desarticulação entre valores cívicos e nacionalismo: cartografia do nacionalismo chinês], Perspectives Chinoises, n.2018/3, Hong Kong.
6 Cf. Ian Scott, “‘One country, two systems’: the end of a legitimating ideology?” [“Um país, dois sistemas”: o fim de uma ideologia legitimadora?], Asia Pacific Journal of Public Administration, v.39, n.2, Hong Kong, 2017.
7 David Gosset, “A clear call for HK’s normal” [Um claro apelo para uma Hong Kong normal], China Daily e China Military, Pequim, 13 ago. 2019.
8 Jonathan Manthorpe, “Xi given a Trump card to play against Hong Kong” [Xi deu a Trump um trunfo para jogar contra Hong Kong], Asia Times, 16 ago. 2019. Disponível em: <www.asiatimes.com>.
9 “Would China risk another Tiananmen in Hong Kong” [A China arriscaria outra Tiananmen em Hong Kong?]”, AFP Pequim, 12 ago. 2019.
10 Hu Xijin, “Should Beijing intervene forcefully in Hong Kong?” [Pequim deveria intervir pela força em Hong Kong?], Global Times, Pequim, 25 jul. 2019.