Instituições sob suspeita
Dois fenômenos jogaram uma ducha de água fria na segurança das duas instituições: a constatação do fracasso de suas políticas e as manifestações maciças que passaram a acompanhar cada uma de suas reuniõesBernard Cassen
Do dia 19 ao dia 28 de setembro, será realizada em Praga a 55ª Assembléia Geral anual dos conselhos executivos do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial. Durante esse período, grandes manifestações irão ocorrer na República Checa, lembrando aos funcionários daquelas instituições, regiamente pagos [1], que já se passou o tempo em que eles elaboravam, entre quatro paredes, programas de “ajuda” a países sobre os quais ignoravam quase tudo. Um exercício ao alcance de um simples estagiário, já que mais ou menos como no caso de um contrato pré-redigido de aluguel de carro os programas tinham sido elaborados em bloco e arquivados nos discos rígidos dos computadores. Faltava apenas acrescentar o nome do país, alguns dados orçamentários e monetários, os objetivos de reembolso da dívida a serem atingidos e, para o conseguir, a lista das leis sociais a serem “flexibilizadas”, as tarifas alfandegárias a serem diminuídas, as empresas públicas a serem privatizadas, os programas sociais, serviços públicos e subvenções a serem suprimidos, os impostos a serem aumentados, etc.
Estava-se deixando de lado as missões in loco, já que havia muitas — de pesquisa, de negociação, de avaliação — que se resumiam na maior parte das vezes em trajetos em limusine entre a piscina de um hotel cinco estrelas e os escritórios refrigerados do ministro das Finanças local. Este desdobrava-se em gentilezas, dando prova da deferência necessária em relação a personagens cônscios de sua importância, raramente conhecendo o seu idioma — a não ser que fosse o inglês — mas dispondo de um direito de vida e de morte sobre tal ou qual projeto, e até sobre amplos setores da economia. Quanto às rotineiras cerimônias rituais das duas instituições, separadas ou em comum, davam lugar à troca de discursos previsíveis e de comunicados pré-estabelecidos, e às vezes surrealistas: é só lembrar que no segundo semestre de 1997, isto é, quando a crise financeira asiática já causava estragos — e ainda por cima em Hong Kong —, o FMI reafirmava sua fé na liberdade de circulação de capitais para favorecer a “melhor colocação de recursos”! A imprensa econômica e financeira, embalada por coquetéis em que se acotovelava com a fina flor mundial das finanças, identificando-se com essas cretinices liberais, transmitia-as fielmente.
Cresce o protesto
Mas porque falar em termos de passado? A lógica do FMI e do Banco Mundial teriam subitamente mudado? Não, e o Equador, por exemplo, sabe disso (leia, nesta edição, o artigo “O Naufrágio do Equador”, de Bernard Cassen). Entretanto, dois fenômenos jogaram uma ducha de água fria na segurança satisfeita que as duas instituições demonstravam. Em primeiro lugar, a constatação do fracasso de suas políticas, que são obrigadas a reconhecer, o que as leva a esboçar atos de contrição, senão de arrependimento. Em seguida, o fato de ter agora os projetores voltados para cada uma de suas missões e reuniões, em virtude de manifestantes mobilizados em grande número.
Ainda em 1998, o secretário-geral da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) teve que receber uma delegação de opositores ao Acordo Multilateral sobre Investimentos (AMI), que se agrupavam no Parque do Castelo de La Muette. Depois veio o fiasco da OMC (Organização Mundial do Comércio), em Seattle, em novembro de 1999; depois milhares de manifestantes em Washington, contra a reunião da Comissão Monetária e Financeira do FMI, em 16 de abril passado; depois, em 31 de maio, em Buenos Aires, 40 mil manifestantes vieram dizer à delegação do FMI recebida no palácio presidencial que ela não era bem-vinda; depois, em julho, a reunião do G8, em Okinawa, teve que ser protegida por 22 mil policiais …
Reações e mudanças radicais
A cada reunião de cúpula internacional revida, agora, uma contra-cúpula de sindicatos, associações e movimentos de cidadãos vindos de inúmeros países, obrigando seus organizadores a um intenso esforço de relações públicas para tentar, em vão, desqualificar as críticas. Estas mobilizações revelam um grande salto qualitativo na percepção dos mecanismos de funcionamento do sistema liberal globalizado. Não é em Paris ou em Berlim, e sim nas reuniões de cúpula européias — como a que houve em Lisboa, [2] em março de 2000 — que são tomadas as grandes decisões que afetam franceses e alemães. Não é em Brasília, e sim na sede do FMI, em Washington, que se decide a sorte de dezenas de milhões de brasileiros.
Se, nos últimos meses, a OMC foi a grande vedete dos encontros internacionais contra a globalização liberal, ela está prestes a ser “superada” pelas instituições de Bretton Woods. Eis um outro salto qualitativo e uma prova da solidariedade Norte-Sul: enquanto a liberdade de comércio tem conseqüências em todos países, desenvolvidos ou não, o FMI e o Banco Mundial operam essencialmente nos países menos industrializados e são relativamente “invisíveis” para a tríade Estados Unidos-Europa-Japão. Nesses países, o debate público sobre estas instituições financeiras tinha sido confinado a associações de solidariedade com o Terceiro Mundo e a alguns órgãos de imprensa. Mas os tempos mudaram. É agora cada vez mais evidente que existe uma identidade de pontos de vista ideológicos e uma divisão do trabalho combinada — mesmo com conflitos — entre a OCDE, a OMC, o Banco Mundial, o G-8 e a Comissão Européia. Um dispositivo de controle global requer reações também globais e mudanças radicais.
Começa a cizânia
Essas mudanças são ainda mais difíceis de serem aplicadas ao Banco Mundial e ao FMI que à OMC, na medida em que neles o peso do Sul — apesar de ser a principal referência — é praticamente inexistente em virtude do bloqueio norte-americano: o peso não é por um país, e sim pela quantidade de dólares de seu percentual na dívida. Mas, paradoxalmente — e contrariamente à OMC — é de dentro das instituições de Bretton Woods, e de certos círculos dirigentes norte-americanos, que surgem algumas das críticas mais acerbas.
Joseph Stiglitz, por exemplo, ex-chefe dos economistas e vice-presidente do Banco Mundial, obrigado a renunciar pelo Departamento do Tesouro devido às suas análises não convencionais, atacou severamente o FMI por sua gestão catastrófica da crise asiática. Um outro dirigente do Banco Mundial, Ravi Kanbur, também renunciou depois que o seu relatório anual sobre o desenvolvimento (onde afirma que o crescimento não acarreta redução da pobreza e das desigualdades) foi censurado sob pressão norte-americana. A saída destes dois economistas criou um sério mal-estar entre os altos dirigentes do Banco Mundial e do FMI, desacreditando as políticas por eles adotadas.
Reivindicações e princípios
Eles tampouco encontraram consolo no relatório de um grupo de trabalho constituído a pedido do Congresso norte-americano e presidido por Allan Metzer. Publicado em março de 2000, o Relatório Metzer preconiza não somente a reforma do funcionamento do FMI e do Banco Mundial, mas também a restrição drástica de seus compromissos e, conseqüentemente, de seus efetivos. É a ala isolacionista e liberal “pura” (da qual é também adepto Jeffrey Sachs) dos projetos de reforma atualmente em debate e que, paradoxalmente, liga-se a certas críticas daqueles para quem “50 anos, chega”. Não se considera possível reformar o FMI. Tanto como a frente constituída contra a OMC, a frente anti-FMI e anti-Banco Mundial não tem ainda um projeto alternativo pronto. Há, entretanto, grande número de reivindicações e princípios comuns.
Os mais cruciais são a exigência de anulação da dívida pública dos países em vias de desenvolvimento [3] e o controle dos movimentos de capitais através de diversos dispositivos dissuasivos, entre eles a taxa Tobin. Liberados dessa preocupação obsessiva, o Banco Mundial e o FMI poderiam dedicar-se a tarefas mais úteis. Para aqueles que não consideram realista a supressão pura e simples das dívidas, seria evidentemente necessário mudar profundamente suas lógicas e seu funcionamento: transparência das decisões, poder político outorgado coletivamente à Comissão Monetária e Financeira do FMI (24 membros), independentemente do montante das percentagens (o que daria um fim à pesada tutela norte-americana), obrigação de submeter os programas aos Parlamentos dos países “beneficiários” [4] e de executar previamente estudos de impacto ambiental, social e cultural, realizados por organismos independentes, avaliação exterior destes programas, depois de executados, criação de um mecanismo de recurso para as populações afetadas pelos programas de ajust
Bernard Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de honra da Atacc França.