Insubmissão
A peristência dos nacionalismos e a crescente impopularidade dos Estados Unidos estimulam a crescente rejeição às pretensões econômicas e políticas da potência militar que capitaneia a avalanche impetuosa da globalização liberalAlain Gresh
Por ocasião de uma conferência dos ministros das relações exteriores chinês, russo e indiano, em Vladivostok, no dia 2 de junho de 2005, Pequim e Moscou ratificam o acerto de seus conflitos de fronteira, e a Índia confirma investimentos no petróleo russo – 1 bilhão de dólares para o projeto chamado Sakhalin. Os três países pedem que se rejeite a fórmula “dois pesos, duas medidas” nas relações internacionais, o que atinge diretamente a administração Bush. Em agosto de 2005, diante da atitude negativa suscitada no Congresso americano a partir de sua proposta, a companhia chinesa CNOOC Ltda. renunciou à compra da sociedade petroleira americana Unocal; a livre circulação de capitais cedeu diante dos “imperativos de segurança”. No mesmo mês, o Irã refuta as propostas de três países europeus (França, Alemanha e Reino Unido), sustentadas pelos Estados Unidos, que implicariam no abandono definitivo de seu projeto de enriquecimento do urânio, ainda que o tratado de não-proliferação nuclear lhe reconheça o direito a esta tecnologia. Em Teerã, onde é ainda viva a memória das intervenções estrangeira – desda a da Rússia no século XIX até a da CIA em 1955 -, levanta-se o estandarte da soberania.
Três acontecimentos entre outros: multiplicação das viagens de dirigentes chineses à África e à América Latina; tensões comerciais entre os Estados Unidos, a Europa e a China, sobre a indústria têxtil, os aviões, a agricultura; o reconhecimento pela Coréia do Sul do direito que tem Pyongyang de dispor de uma indústria nuclear civil, em contradição às posições de Washington, etc. Juntos, estes fatos esparsos esboçam o contorno de uma geopolítica mudial bem mais complexa do que muitas vezes se imagina e que não se reduz à avalanche impetuosa da mundialização liberal. Em toda a parte, persistem os nacionalismos, as culturas das sociedades, as ambições ancoradas na história; cada vez mais numerosos são os que se recusam a se submeter à ordem mundial.
Potência impopular
Diante dos EUA que não hesita a proteger seus interesses, afirma-se de Pequim a São Paulo um patriotismo econômico e político, a determinação de defender sua independência
Não se vê emergir nenhum “supra-imperialismo” que pusesse fim às rivalidades e à concorrência. Diante dos Estados Unidos que não hesita, como no caso da Unocal, a proteger seus interesses, afirma-se de Pequim a São Paulo, de Seul a Nova Delhi, um patriotismo econômico e político, a determinação de defender sua independência. Já em setembro de 2003, em Cancun, vinte países do Sul, especialmente a Índia, o Brasil e a África do Sul, provocaram o fracasso da conferência da Organização Mundial de Comércio, uma vez que suas reivindicações não foram satisfeitas. Na França, a oposição enérgica a uma eventual tomada da Danone pela PepsiCo segue a mesma lógica.
O “fim da história”, explicava Francis Fukuyama, anunciava o triunfo não somente da globalização, mas do modelo liberal encarnado pelos Estados Unidos. Ora, após mais de uma década, os americanos são incapazes de conquistar “os corações e os espíritos”. Em 1789, as idéias da Revolução francesa difundiam-se amplamente pela Europa e além dela; a Revolução soviética constituiu, durante muito tempo, um desafio tanto ideológico quanto militar ao Ocidente. Mas, o apogeu da força militar dos Estados Unidos coincide com o nível mais baixo de sua popularidade no mundo. A imagem de Washington nunca foi tão negativa. “Mesmo a China faz melhor”, era o título do International Herald Tribune, em 24 de junho de 2005.
Visão truncada
Na realidade, nenhum grande país, no horizonte da próxima década, poderá rivalizar com os Estados Unidos, como o fez a União Soviética durante a segunda metade do século XX. Potência militar sem equivalente, a América permanece no entanto encurralada no Iraque, enfrentando a resistência de alguns milhares de combatentes que seguram no território 148 000 soldados americanos. E os escândalos de Guantanamo, de Abou Ghraib, a tortura, o desrespeito às liberdades fundamentais solapam a pretensão dos Estados Unidos, às vezes também da Europa (esse duo que chamam de Ocidente) em definirem sós os valores universais – direitos da pessoa, democracia, liberdades, etc -, a proclamarem o Bem e o Mal, a decretarem qual regime é aceitável, qual não o é, qual é passível de sanção, qual não o é.
O apogeu da força militar dos Estados Unidos coincide com o nível mais baixo de sua popularidade no mundo. A imagem de Washington nunca foi tão negativa
Por toda a parte é refutada a tentativa de imporem, principalmente pela mídia, uma visão truncada do mundo, do direito e da moral. O sucesso das cadeias de televisão no mundo árabe, em especial da Al-Jazirah, e o lançamento da Telesur na América do Sul atestam esta insubmissão que se estende a todos os domínios, políticos, econômicos e culturais. Mesmo se, às vezes, o repúdio possa tomar as formas de extremismo religioso ou nacional e alimentar a idéia do “choque de civilizações”.
Na aurora do século XVIII, a Europa tinha imposto sua hegemonia diante das outras potências. Esta primazia, a historiografia contemporânea mostra que resultou de uma conjuntura peculiar, principalmente a vantagem obtida pela posse da América do Norte e a economia de trocas1. Traduziu-se por uma preponderância militar que permitiu ao Velho Continente submeter o resto do planeta a seu jugo colonial. A Europa procurou legitimar esta dominação pela pretensa superioridade milenar de seus valores e pensamento, especialmente a filosofia grega2. Ela desprezou todas as outras culturas como “bárbaras” ou “inferiores”. Atualmente, os Estados Unidos e às vezes também a Europa parecem retomar esses preconceitos de outras épocas. Deveriam, no entanto, lembrar-se que os impérios coloniais, mais “avançados”, mais “desenvolvidos”, acabaram finalmente desaparecendo …
(Trad.: João Alexandre Peschanski)
1 – Ler, especialmente, Christopher Alan Bayly, The Birth of the Modern World-1780-1914, Blackwell, Oxford, 2004, et Kenneth Pomeranz, The Great Divergence, China, Europe and the Making of th
Alain Gresh é jornalista, do coletivo de redação de Le Monde Diplomatique (edição francesa).