Integração: um desafio federativo
A efetividade no combate à pobreza depende da ação combinada dos poderes públicos nos territórios. Ainda hoje esta integração está dando seus primeiros passos. Mas podemos aprender com iniciativas como as de defesa dos direitos da criança e do adolescente, e mesmo com os programas de transferência de rendaRubens Naves
O projeto político nacional previsto na Constituição Federal tem como objetivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a realização do desenvolvimento nacional, com erradicação da pobreza, redução das desigualdades regionais e sociais e a promoção do bem de todos.
O artigo 2º do texto trata, portanto, do projeto de uma sociedade inclusiva, na qual as instituições e os poderes constituídos estejam voltados para sua realização nos diversos níveis de sua constituição e organização burocrática. Todo e qualquer órgão público, nesta medida, é órgão de execução de um projeto nacional de realização do desenvolvimento.
Contudo, como afirma Gilberto Bercovici “a administração pública brasileira está bem longe das exigências do desenvolvimento. No plano administrativo, a estrutura do Estado brasileiro não é nem um pouco unificada e coesa. As divisões internas da administração pública constituem um sério entrave ao sucesso de uma política de desenvolvimento. Cada órgão administrativo é representante de interesses políticos distintos, com forças relativas diferenciadas a cada momento”1.
Isso explica, em parte, a ausência de diálogo, planejamento e integração na execução de políticas públicas junto aos entes políticos da Federação e, por vezes, até mesmo no âmbito de uma mesma administração. A ausência de integração dos esforços e sinergia é causa de perda de recursos que são tão caros à realização do desenvolvimento nacional. Daí a necessidade nacional de mecanismos que possam articular, dialogar, planejar (muito além do orçamento), executar, mensurar e avaliar a realização de políticas públicas atinentes ao desenvolvimento nacional.
Tome-se como exemplo os esforços na área da criança e do adolescente. A experiência da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança, agora na aliança internacional Save the Children, revela que inúmeros projetos e programas, em áreas diferentes, tinham zonas de diálogo que convergiam no atendimento dos interesses das crianças e dos adolescentes, nos diversos níveis da Federação e em diversas frentes, como assistência social, educação, saúde e aprendizado profissional, perpassando mais de uma secretaria política ou organismo burocrático estatal dos diversos entes da Federação.
O Plano Presidente Amigo da Criança e do Adolescente (PPACA) estabelece os compromissos e metas assumidos pelo governo para o cuidado e a proteção especial da criança e do adolescente. (http://www.direitoshumanos.gov.br/spdca/p)
O plano é implementado e acompanhado com participação intensa de um conjunto de organizações sociais que se articulam na Rede de Monitoramento Amiga da Criança (www.redeamigadacrianca.org.br). Com foco na infância e na juventude, a rede tem como objetivo monitorar o cumprimento dos compromissos assumidos pela Presidência da República e pela República Federativa do Brasil, descritos no documento “Um mundo para as crianças” e no termo de compromisso “Presidente Amigo da Criança”.
Este acompanhamento deve, entretanto, ser difundido para toda a sociedade a fim de se atingir um controle efetivo por parte de seus integrantes. Trata-se de exemplo contundente de planejamento e otimização de resultados, cobrados e constantemente aperfeiçoados nos diversos entes federativos e níveis de governo.
Estas zonas de diálogo, melhor dito, esta possibilidade de maior integração das políticas públicas, também está presente em outras áreas. Basta mencionar as políticas de educação complementar dos municípios e estados, de erradicação do trabalho infantil e combate à exploração sexual do governo federal, e múltiplos esforços na alocação de postos de trabalho aprendiz ou oficinas de cultura em diversos estados da Federação.
Destaque-se, ainda, o papel da cidadania nestes processos de integração de políticas. A forte participação da sociedade civil no desenho e monitoramento das políticas públicas, em reuniões de conselhos e em conferências nacionais, tem apresentado esta demanda de uma maior articulação das iniciativas do Estado.
O leitor deve estar se questionando: por que inexiste uma coordenação desses esforços ou, ainda, um cadastro unificado, que pudesse desempenhar uma função gerencial de otimizar e ampliar os esforços de atendimento dessas múltiplas iniciativas, privilegiando o monitoramento de seus resultados?
O ordenamento jurídico brasileiro prevê e dispõe dos instrumentos necessários para a implementação do que se pode chamar de federalismo cooperativo. Mas, como ensina Paulo Bonavides, existe um caráter utópico nesta pretensão de realizar o desenvolvimento nacional em federalismo de estados federados, todos em níveis desiguais de desenvolvimento. Daí porque ele propõe um federalismo de regiões, com um quarto nível de poder coordenando todos os esforços.2
A Constituição da República avança na cooperação entre os entes políticos dispensando, a toda evidência, a ideia de criação de um quarto nível de poder, mas autorizando municípios, estados e a União Federal a celebrar instrumentos compartidos de poder.
A Constituição de 1988 prevê a possibilidade de formação de consórcios públicos para a gestão associada de serviços (artigo 241), transferência voluntária de recursos atrelada a obrigações dos entes que os recebem comprometidos com resultados de eficiência (previstos no artigo 37, caput da Constituição da República) e, ainda, a possibilidade de criação de regiões específicas de desenvolvimento para auxiliar na superação das desigualdades regionais e locais (artigo 43 da Constituição).
De outro lado, destaque-se, no plano regional, a competência outorgada aos estados (artigo 25, 3º) para instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, planejamento e execução de funções públicas de interesse comum. As diversas regiões metropolitanas criadas hoje no Brasil carecem, ainda, de efetiva implementação e comprometimento em torno de um projeto comum, considerando as realidades autônomas e interesses convergentes dos municípios limítrofes.
É evidente que esta proposição de considerar as realidades autônomas e interesses convergentes pode abrir espaço para a participação popular em torno da gestão compartilhada de serviços metropolitanos de interesse comum.
O enfrentamento deste desafio estrutural e gerencial é urgente no Brasil. As chuvas recentes que atingiram a região Sudeste, em especial os estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, são expressão desta necessidade. Na verdade, constituíram-se na maior catástrofe natural do Brasil, com cerca de mil mortos, mais de 25 mil desabrigados e toda a infraestrutura de pelo menos três cidades da região serrana do Rio de Janeiro destruída, e revelam a ausência de um esforço coordenado, neste caso, de defesa civil no Brasil. Inexistem planos de emergência, central de coordenação de atendimento emergencial, estruturas para desabrigados, planos de evacuação de cidades ou, ainda, mobilização de pessoal, recolhimento de suprimentos e pronta distribuição de alimentos, roupas, artigos de higiene e medicamentos aos desabrigados. E, diga-se, esta é uma responsabilidade do Estado, que deve ser capitaneada pelo Governo Federal, com a presença imprescindível dos estados membros e municípios.
A presidenta da República, em razão da tragédia na região serrana do Rio de Janeiro, criou uma comissão multissetorial no âmbito da Secretaria Especial dos Direitos Humanos para a formulação e implementação de políticas públicas que enfrentem os impactos desta tragédia sobre as crianças e os adolescentes. Iniciativa que se justifica pela maior vulnerabilidade de crianças e adolescentes.
Mas as medidas de emergência e de curto prazo, se bem que necessárias, não são suficientes, precisam se seguir diretrizes estruturais a ser implementadas em médio e longo prazo.
Nessa direção, o compromisso assumido pela presidenta Dilma Rousseff ao assinar, junto à Fundação Abrinq / Save the Children, a continuidade do programa “Presidente Amigo da Criança” poderia destacar metas para prevenção e atuação dos entes federativos e da sociedade civil diante das catástrofes. Em especial, deve tornar eficazes dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente, que dispõe de mecanismos de proteção, como Conselhos de Direitos, Conselhos Tutelares, Ministério Público e Poder Judiciário, além da colaboração com os estados e entidades da sociedade civil. A implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente constitui um verdadeiro instrumento de integração das políticas públicas.
Cumpre afirmar que o Estado brasileiro tem o dever de planejar toda a sua atividade, a teor do disposto no artigo 174 da Constituição, implicando na formulação das diretrizes e bases do desenvolvimento nacional equilibrado, incorporando e compatibilizando planos nacionais e regionais de desenvolvimento.
O que a Constituição prescreve transcende o mero debate orçamentário que hoje marca o pacto federativo, e pressupõe uma dimensão qualitativa. Logo, a tarefa deve ser liderada pelo Governo Federal em torno de eixos-chave para a realização do desenvolvimento. Aqui, abre-se a oportunidade da integração das políticas, com a presença dos entes federativos (Executivo e Legislativo) e representantes da sociedade civil. Nestes espaços poder-se-ia forjar políticas planejadas considerando-se metas, orçamentos, ações e avaliação de resultados.
Veja-se que este desafio está colocado pela própria presidenta Dilma Rousseff, quando ela reafirma a diretriz de combater a miséria, para erradicar definitivamente a pobreza extrema do Brasil e aperfeiçoar instrumentos de inclusão, como o programa Bolsa Família. O que isto quer dizer neste contexto? Que precisam ser desenvolvidos e integrados mecanismos de transformação da situação das famílias assistidas pelos programas de transferência de renda, de forma a possibilitar que elas saiam dos programas e possam ser autossustentáveis, permitindo, inclusive, que os benefícios possam ser transferidos a famílias eventualmente ainda não contempladas.
O desafio é grande. Pesquisa do Ipea, encomendada pelo Ministério do Desenvolvimento Social, revela que “os beneficiários do Bolsa Família passam menos tempo empregados, e demoram mais para achar nova vaga com carteira assinada ao perderem o emprego. O resultado revela as dificuldades para que os beneficiários do programa abram mão dos pagamentos mensais e encontrem a chamada ‘porta de saída’”.3 Para que isto aconteça deve haver uma maior interação e cooperação entre as estruturas do Governo Federal, estados e municípios através, por exemplo, das secretarias de emprego e desenvolvimento social, com a criação de cadastros nacionais unificados de oportunidades, e monitoramento da situação laboral de cada família assistida. Isto implicaria melhor aproveitamento de recursos – dada a importância do Bolsa Família e sua complementação por inúmeros estados e municípios, uma vez que, segundo o Ipea, mais de 20% da população do Brasil está alistada em programas de transferência de renda. Este esforço de articulação atenderia à prioridade anunciada no denominado PAC da Pobreza em torno da “inclusão produtiva”.
Política é assunto sério. Mas, planejamento, é ainda mais. A ação planejada do Estado constitui um avanço no nosso modelo democrático e está prevista na Constituição de 1988 como peça fundamental na migração de um Estado arbitrário para um Estado democrático. O regime democrático pressupõe a liberdade e seu exercício responsável. Isto deve conclamar toda a sociedade a assumir sua parcela de responsabilidade no exercício da democracia.
A formulação de políticas públicas integradas e, em especial, as destacadas neste artigo, indicam que este é o caminho. Até porque políticas consistentes, com metas objetivas e ações delimitadas no tempo, permitem a participação do Poder Público e da cidadania, encorajando sua durabilidade para além de mandatos políticos.
Em seu artigo 3º, a Constituição propõe não apenas o funcionamento dos poderes constituídos da República, mas a necessária dialética entre eles na construção de um plano de desenvolvimento, integrando áreas como desenvolvimento social, crianças e adolescentes, infraestrutura, educação, saúde, transporte e moradia, para ficarmos nas mais relevantes.
Mais que isto, a gestão democrática e participativa da ação estatal planejada e integrada permitirá ao cidadão participar de cada aspecto da decisão política e de sua conversão em ação concreta, a política pública aplicada. Isto eleva a qualidade da participação política e do debate em torno dos rumos do país. E permitirá, ainda, avançar no monitoramento dessas políticas, na fiscalização dos recursos aplicados, otimizando resultados.
Rubens Naves é professor licenciado do Departamento de Teoria Geral do Direito da PUC-SP, sócio titular de Rubens Naves, Santos Jr, Hesketh Escritórios Associados de Advocacia.