Integridade da informação exige uma comunicação antirracista
A comunicação, quando moldada a partir de uma perspectiva antirracista, deixa de ser apenas um instrumento de difusão de mensagens para se tornar uma ferramenta estratégica de transformação social, de fortalecimento das democracias e de ampliação do acesso à informação de qualidade
Enquanto o secretário-geral da ONU, António Guterres, e o presidente Lula discutem, em 2025, os caminhos para uma agenda global de integridade da informação, um ponto crucial permanece muitas vezes negligenciado: a ausência de uma abordagem antirracista nas estratégias de enfrentamento à desinformação.
A integridade da informação não pode ser tratada apenas como um problema técnico, de checagem de fatos ou regulação de plataformas. Trata-se, fundamentalmente, de um problema estrutural — profundamente enraizado nas desigualdades raciais, de gênero e de território que historicamente moldaram os sistemas midiáticos. No Brasil e em grande parte do mundo, a desinformação se espalha com mais força onde o direito à comunicação já é violado.
Há muitos anos, a população negra vem evidenciando a necessidade de incorporar estratégias antirracistas na comunicação como caminho essencial para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Nos últimos anos, iniciativas como a Articulação pela Mídia Negra — reconhecida como um marco histórico por sua incidência na formulação de políticas públicas — protagonizaram encontros inéditos com as principais pastas do governo federal. Essa mobilização destacou a urgência de implementar uma política nacional de comunicação que traduza o Brasil real: plural, diverso e atravessado por profundas desigualdades.
Ao tratar a comunicação como um tema transversal — que atravessa os grandes desafios sociais do país —, essa articulação reforça que a luta por um ecossistema comunicacional mais justo não diz respeito apenas à população negra, mas a toda a sociedade. No entanto, é justamente a população negra que tem ocupado a centralidade da produção intelectual, política e prática sobre o tema, oferecendo caminhos concretos para repensar o direito à comunicação no Brasil.
A comunicação, quando moldada a partir de uma perspectiva antirracista, deixa de ser apenas um instrumento de difusão de mensagens para se tornar uma ferramenta estratégica de transformação social, de fortalecimento das democracias e de ampliação do acesso à informação de qualidade. Reconhecer essa centralidade é não só valorizar saberes historicamente silenciados, mas também construir respostas eficazes diante das crises contemporâneas — da desinformação, das mudanças climáticas e da exclusão digital às desigualdades territoriais.
É nesse contexto que o lançamento do Manual de Boas Práticas Antirracistas na Comunicação Digital — elaborado pela Rede de Jornalistas Pretos pela Diversidade na Comunicação, em parceria com o Instituto Peregum — representa um marco. A publicação oferece diretrizes concretas para um ecossistema informacional ético, inclusivo e comprometido com os direitos humanos.

Na última semana, perdemos o pesquisador Igor Sacramento — uma referência generosa, crítica e profundamente comprometida com o campo da comunicação. Sua partida nos convida a refletir sobre a urgência de reconhecer e valorizar os intelectuais negros que, a partir de diferentes territórios, experiências e metodologias, vêm construindo coletivamente esse campo. Somos diversos, mas não dissociados. Somos múltiplos e inovadores. Qualquer agenda de transformação e avanço social, se quiser de fato ser efetiva, precisa partir desse reconhecimento.
Marcelle Chagas é pesquisadora Tech&Society da Mozilla Foundation e Coordenadora da Rede de Jornalistas Pretos pela Diversidade na Comunicação. É Mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense.