Intervenção no 8 de Março
O ato de carregar no próprio corpo o pañuelo verde expressa solidariedade feminista e cumplicidade aborteira. Empresta ao mundo um símbolo que confere aos dias um elemento que não nos deixa esquecer que nossa luta é coletiva
No dia 8 de março, um fato curioso e criativo convidou transeuntes a se indagarem a respeito de um elemento simbólico: um verde intenso vestia estátuas em diversas cidades brasileiras. Esse ato inventivo chamou atenção ao capturar representações históricas de cada territorialidade com pañuelos verdes. Estátua Liberdade, no Rio de Janeiro; Clarice Lispector, em Recife; Mãe Preta, em São Paulo; Laçador e Elis Regina, em Porto Alegre; Rita Maria, em Florianópolis e as letras que apresentam o balneário de Torres. Essas estátuas e monumentos acordaram carregando panos triangulares verdes em seus corpos forjados em metal neste Dia Internacional das Mulheres, data histórica de luta. Mas o que esses episódios territorializados podem nos comunicar?
O primeiro diagnóstico que podemos fazer a respeito desse experimento se apresenta através de uma indagação-investigação para qual tentaremos ensaiar aqui uma resposta: esses movimentos territorializados foram espontâneos e coincidentes ou apontam para uma possível articulação em nível nacional? Ainda que possamos considerar singela a ação em si mesma – o ato de pendurar um lenço nas estátuas –, se trata de uma intervenção potente, que brinca com a inventividade e com a curiosidade. Instiga a pensar e convida a uma reflexão a respeito dos símbolos em disputa ali materializados; é “uma mensagem a ser decifrada”. Levemos em conta que a criatividade corajosa é um exercício próprio das lutas de resistência, e da criação de novos mundos possíveis, pois “não se cria um novo mundo sem reverter a pane de imaginação que o neoliberalismo e o autoritarismo provocam”¹. Possivelmente, os feitos foram concretizados a partir de esforços realizados em cada lugar, demonstrando o diálogo estabelecido entre as regiões. Consideremos ainda que esse possível diálogo trans-regional denota uma lógica de conexão, ele articula, em constelação, pequenos focos comunitários de resistência.
Mas é necessário que pensemos o que esses lenços são capazes de nos comunicar. O pano pendurado pode ter sugerido significados múltiplos para quem o viu; para nós, feministas, evoca uma luta transnacional e trans-histórica: o lenço verde representa o maior símbolo de luta da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito, radicada na Argentina, e que se tornou uma maré verde que inundou a América Latina. O pañuelo triangular foi reatualizado com a cor verde da vida e da esperança, atribuindo outra luta aos pañuelos das Mães e Avós da Praça de Maio, movimento que resistiu contra a ditadura argentina. Seus lenços brancos diziam respeito às fraldas das crianças roubadas pelos ditadores, amarradas em suas cabeças. Desse modo, o pañuelo das Mães e Avós da Praça de Maio se tornou insígnia de uma luta antiautoritária solidária: não eram mais as mães apenas de seus próprios bebês, filhos e filhas, e sim mães de todas as crianças roubadas pela ditadura argentina, politizando a dor sofrida individualmente. Processo de solidarização semelhante ocorre ao redor da pauta pela legalização do aborto: não se trata de uma agenda identitária, mas sim de uma solidariedade interseccional, uma transversalidade política que aborta os mandatos de gênero patriarcais e familistas da maternidade compulsória.

Se inscreve nesse lenço verde uma retomada que historiciza o percurso de lutas, acumulando sua força, pois “entre os lenços verdes há gestos, histórias, nomes e uma pertença evidente, a do histórico lenço branco das Mães e Avós da Praça de Maio. Verde redefine o branco e exercita a memória feminista”². Representando estética e politicamente esse atravessamento trans-histórico de acúmulo de lutas, “o lenço branco e o lenço verde tornam-se assim emblemas das experiências vitais das pessoas”³. Cientes disso, pensemos então em como esse lenço verde chega às estátuas brasileiras neste 8 de Março.
Podemos chamar de “ressonâncias” os efeitos causados pelas lutas difundidas transnacionalmente. Se tratam da elaboração de “espécie de efeito de difusão, de ecos que repercutem e produzem, como efeitos sonoros, amplificações do próprio corpo”4. Isso quer dizer que as lutas locais ressoam transnacionalmente e vice-versa, comovendo, contaminando e conspirando com movimentos feministas de outros territórios, pois essas resistências se constroem para além das fronteiras. Elas desconhecem os limites reconhecidos pela soberania dos estados, justamente porque consideram a soberania da resistência dos corpos um aspecto privilegiado.
As lutas latino-americanas pela legalização do aborto armam uma outra erótica, porque se exige “não apenas educação sexual para decidir, mas para descobrir; que os contraceptivos não sejam usados apenas para que não se tenha que abortar, mas para desfrutar do sexo; e que o aborto não exista apenas para não morrer, mas para decidir”5. Com isso, são abertas fissuras pela tomada de posição e na decisão sobre nossas próprias vidas, sem que caiamos na posição apassivada de vítima ou compulsoriamente na função da maternagem. Assim, disputa-se a retratação do evento abortivo no imaginário social, despertando a ideia de que o aborto é potência porque recupera a autonomia do corpo.
As lutas feministas transnacionais a favor do direito de escolha, a despeito da variação nesses fluxos em cada país e do recrudescimento de políticas restritivas, vem conseguindo a despenalização social ao reformular os termos estéticos, éticos e eróticos evocados pela ideia do evento reprodutivo do aborto. Através de tráfico de conhecimentos ancestrais e na organização de movimentos articulados, as redes aborteiras de ativismo e de acompanhamento de pessoas em situação de abortamento têm incidido na realidade e ressignificado o que esse episódio pode representar no domínio íntimo de cada pessoa gestante. Com o efeito de ressonância, as resistências têm alcançado radicalidade e massividade, atravessando gerações e acumulando lutas nascidas de outros períodos históricos, além de reverberar, nos vários países latino-americanos, uma outra sociabilidade solidária feminista.
Não se pode perder de vista que ” a ilegalidade não significa que as mulheres não abortem. Elas abortam em condições inseguras, e essa insegurança é maior se são pobres. Por isso, há um componente de classe e racial na ilegalidade do aborto”6. Para além do número de pessoas que abortam, há toda uma rede de amparo que faz com que isso aconteça e seja possível. Todas nós temos ao menos uma amiga ou conhecemos alguma pessoa próxima que realizou uma interrupção de gestação. Muitas de nós forneceram amparo a alguma companheira que abortou ou já ouviu algum relato próximo e não denunciou a prática como ato criminoso, por não acreditar que isso seja caso de pena ou de culpa católica. Várias de nós lançaram mão de algum chá, beberagem ou garrafada para “fazer descer logo” a menstruação. Outras/os/es de nós interromperam uma gestação não viável e hoje são ativistas na pauta de direitos sexuais e reprodutivos.
Embora existam relevantes contornos de diferenciação em virtude da raça e da classe, que marcam os corpos, as oportunidades e acessibilidades criadas por circunstâncias de (des)privilégios, as pessoas em condições menos precarizadas socioeconomicamente se encontram também sujeitas a contextos que vulnerabilizam suas vidas ao realizarem interrupção de gravidez por meios clandestinos. Com a criminalização, todas as pessoas que abortam são relegadas à insegurança, à clandestinidade e, ainda, à percepção desse ato como significado por culpa, trauma e medo. E isso as argentinas têm logrado ressignificar, armando outro vocabulário para o que o aborto pode representar na vida de uma mulher ou pessoa gestante: um ato potente de vida, de esperança, de inauguração de um outro caminho determinado por si.
Devemos entender que em cada gestação existirá um elemento inaugural, um viés inédito de vitalidade, “seja o surgimento de um novo ser humano, seja uma nova perspectiva da pessoa que fez o aborto”, pois, independentemente da decisão tomada, a gravidez deve ser vista como a “origem a algo novo e todo este processo transforma a subjetividade da pessoa, é um marco na sua biografia“. Diante da notícia de uma gravidez, pode-se abrir um campo decisório que desestabiliza os mandatos de gênero, o que subverte os valores dominantes em crise, abrindo espaços de possibilidade para novas posições subjetivas.
Assim, construir diferentes léxicos e projeções imaginárias no âmbito público passa também pela projeção e consideração de constrangimentos, vulnerabilidades, desejos e sonhos que atravessam a experiência corporificada e territorializada no corpo que então está a gestar. Passa, também, pela visibilização de quem são as mulheres que abortam e o que podemos fazer hoje quanto ao contexto brasileiro graças aos resultados : as mulheres que interrompem gestações são mulheres comuns, que professam religião e que são mães, em sua maioria. Isso nos empurra a refletir sobre e “reconhecer a centralidade das motivações e justificativas expressa pelas mulheres [e outras pessoas gestantes], tomando-as como ponto de partida para discutir a dimensão moral e ética do aborto”7. Com grande frequência, aquilo “que se prega dos púlpitos como ‘cultura da morte’, revela-se, ao contrário, como condição de uma vida possível para elas e para os seus mais próximos (os seus filhos pequenos)”.
Outrossim, para além do número de pessoas que realizam abortamentos, há toda uma rede de amparo em uma partilha ancestral, pois o feminismo em si é algo transversal, constituído por saberes concretos. Ancestrais. (Re)cuperados, (re)feitos acessíveis. Corporalizados. Traficamos esses saberes de resistência entre nós”8. Somos mães, filhas, tias, avós que partilham, ancestralmente, experiências sobre o aborto. Não se trata aqui de evocar flertes com uma sacralização ou essencialização do feminino – nos referimos a corporeidades, experiências partilhadas, redes feministas de amparo que abortam radicalmente o individualismo, o “cada-um-por-si” e a competitividade, para gestarem laços que reinventam o comum e que constituem práticas de solidariedade, parindo outros mundos possíveis. Comunitarizações, experiências e corporeidades, desde e pela vida, que tecem novas relações consigo e com os outros. Afinal, “os filhos não paridos também nos ensinam sobre a sociedade heteropatriarcal, e sobre os filhos que levamos junto e as mães e mulheres que somos, em processo, em mutabilidade”9.
Os movimentos feministas aborteiros latino-americanos ganham massividade e pervasividade justamente porque compreendem que as opressões se operacionalizam interseccionalmente, não fazendo qualquer sentido lutar apenas por si própria/a/e. Alcançam transnacionalismo e ubiquidade na medida que se alimentam das corporeidades que resistem às violência que aterrissam sobre cada corpo-território. Criam horizonte de radicalidade e potência através da visibilidade dada às múltiplas formas de experimentar as corporeidades, a violência, a resistência e a potência de se tornar quem se é, o que ocorre sempre no coletivo, nunca em ilha.
O ato de carregar no próprio corpo o pañuelo verde expressa solidariedade feminista e cumplicidade aborteira. Empresta ao mundo um símbolo que confere aos dias um elemento que não nos deixa esquecer que nossa luta é coletiva. É um adereço na vestimenta política de nossos corpos que habitam o mundo e que são sustentados por uma tenaz e infiltrada rede de afetos alegres, resistentes, irredutíveis, incansáveis e indomáveis. E quem sabe o fato de que aquelas estátuas terem acordado no 8 de Março também carregando os lenços que conectam as lutas feministas latino-americanas queira dizer que as lógicas das conexões e das lutas têm soprado sua potência para o lado brasileiro desta América Latina, ressoando suas vitórias por estes territórios?
Domenique Goulart é advogada feminista antirracista; quase mestra em Ciências Criminais pela PUCRS; bacharela em Direito pela UFRGS; desbravadora de contingências da vida.
¹PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Amanhã vai ser maior: o que aconteceu com o Brasil e as possíveis rotas de fuga para a crise atual. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019, p. 187.
²VASALLO, Sol. El origen de los pañuelos verdes. Redacción Rosario, 02 dez. de 2020. Disponível em: https://redaccionrosario.com/2020/12/02/el-origen-de-los-panuelos-verdes/. Acesso em: 02 dez. 2020.
³VASALLO, Sol. El origen de los pañuelos verdes. Redacción Rosario, 02 dez. de 2020. Disponível em: https://redaccionrosario.com/2020/12/02/el-origen-de-los-panuelos-verdes/. Acesso em: 02 dez. 2020.
4GAGO, Verónica. Potência feminista, ou o desejo de transformar tudo. Tradução de Igor Peres. São Paulo: Elefante, 2020, p. 231.
5GAGO, Verónica. Potência feminista, ou o desejo de transformar tudo. Tradução de Igor Peres. São Paulo: Elefante, 2020, p. 127.
6BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Introdução: Aborto, democracia e laicidade. In: _________. Aborto e democracia. São Paulo: Alameda, 2016, p. 09-16.
7BIROLI, Flávia. Aborto, justiça e autonomia. In: BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Aborto e democracia. São Paulo: Alameda, 2016, p. 32.
8RIBAS, Cristina. Feminismos bastardos. Feminismos tardios. São Paulo: N-1 Edições, 2019. Disponível em: https://n-1edicoes.org/feminismos-bastardos-feminismos-tardios. Acesso em: 26 ago. 2020.
9RIBAS, Cristina. Feminismos bastardos. Feminismos tardios. São Paulo: N-1 Edições, 2019. Disponível em: https://n-1edicoes.org/feminismos-bastardos-feminismos-tardios. Acesso em: 26 ago. 2020.