Maré verde feminista e um devir latino-americano
As experiências aborteiras no território da América Latina constituem a ponta de lança do enfrentamento às estratégias familistas patriarcais neoconservadoras, pois subvertem essas montagens das políticas de corpos através de possibilidades de trajetórias múltiplas e emancipatórias
Depois de 17 anos de campanha, a maré verde argentina se tornou um tsunami, inundando a América Latina com esperança e potência feminista. A Campanha Nacional Pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito demandou o reconhecimento de direitos reprodutivos e sexuais pelo Estado e, na madrugada do dia 30 de dezembro, o senado argentino aprovou a Lei de Interrupção Voluntária de Gravidez, exigida pela política das ruas, que transbordavam potência na cor verde.
A campanha argentina é exitosa por diversas razões, criando estratégias e um vocabulário comum que ressoa nos demais países da América Latina. Ela é formada por um acúmulo histórico de lutas e reatualiza com a cor verde da vida e da esperança os pañuelos das Mães e Avós da Praça de Maio, movimento que resistiu contra a ditadura argentina. As fraldas brancas das crianças roubadas pelos ditadores eram usadas em suas cabeças, isso se tornou um símbolo de uma luta antiautoritária solidária: não eram mais as mães apenas de seus próprios bebês e filhas e filhos, eram mães de todas as crianças roubadas pela ditadura argentina. Processo de solidarização semelhante ocorre ao redor da pauta pela legalização do aborto: não se trata de uma agenda identitária, mas sim de uma solidariedade interseccional como forma ética e política de abortar os mandatos neoliberais do competitivo “cada um por si”.
Pensemos em uma ética aborteira, mas não como um mandato a ser seguido ou algo que incentive o aborto. Muito antes disso, pensemos uma ética aborteira como uma celebração da liberdade e da possibilidade de escolher eticamente por uma interrupção voluntária da gravidez, um modo de instituir uma cultura libertária por meio da justiça social em que as mulheres e pessoas com capacidade de gestar, independentemente de sua raça, classe, sexualidade ou gênero, possam gestar e parir rumos de vida eleitos livremente, sem que a maternidade recaia compulsoriamente sobre seus corpos. De fato, criar um movimento político orientado por essas diretrizes envolve uma profunda dimensão de solidariedade feminista, pois está forjado pela coligação entre afinidades políticas que exigem uma pauta histórica do movimento feminista como um direito a ser promulgado pelo Estado. Assim, a campanha logrou ser unificada, massiva, radical e potente, transversalizando a sociedade com uma pauta que exige o reconhecimento da autonomia das mulheres e outras pessoas com capacidade de gestar sobre seus próprios corpos e vidas, compreendendo que o corpo de cada um, cada uma e cada ume é marcado por aquilo que também atravessa o corpo de muitas, muitos e muites.
Os vetores de identidade aí, mais do que em qualquer lugar, são usados estrategicamente para criar conexão, multiplicidade e capacidade de solidarização, posição ética em que as pessoas passam a ser “conscientes da necessidade política de atuar em conjunto. Elas dependem umas das outras para ação; cada uma recebe e ao mesmo tempo dá suporte, e assim começa a se articular a necessária interdependência”, conforme Judith Butler[1]. De tal modo, opõem-se, por conexão e responsabilidade ética, de modo conjunto e múltiplo a determinadas violências ou usurpações de liberdade. Responsabilidade que emerge sobretudo “quando reconhecemos que precisamos uns dos outros”, o que implica que passemos a reconhecer também “os princípios básicos que constituem as condições sociais e democráticas de uma vida habitável”. Nesse sentido, a Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito da Argentina pode ser considerada como “um exemplo de movimento social inédito e bem-sucedido, em constante crescimento e que consegue sustentar uma certa unidade em um espaço que é atravessado por enormes fendas ou fragmentação”, segundo Martha Rosenberg.
Para que isso ocorra, é fundamental a existência do efeito de “ressonância” entre as expressões territorializadas, as quais elaboram “espécie de efeito de difusão, de ecos que repercutem e produzem, como efeitos sonoros, amplificações do próprio corpo”, afirma Verônica Gago.[2] Em outras palavras, podemos dizer que ressonância é “a capacidade de abrir um sentido compartilhado a partir da afetação”, como potência de “comoção, e não simplesmente com a recepção de um efeito”. Isso quer dizer que as lutas locais ressoam transnacionalmente e vice-versa, comovendo, contaminando e conspirando com movimentos feministas de outros territórios, pois essas resistências são transfronteiriças, desconhecem ou desmantelam as fronteiras reconhecidas pela soberania dos estados, justamente porque consideram a soberania da resistência dos corpos como aspecto privilegiado.
O ativismo feminista das redes aborteiras, no entanto, convive com o medo, atravessa-o e domestica-o, pois, a luta pela legalização do aborto é hostilizada, perseguida e enquadrada como transbordamento dos limites do lícito, havendo sempre a possibilidade da criminalização, sobretudo em governos com traços autoritários e persecutórios de movimentos sociais, considerando os feminismos como inimigo privilegiado porque atacam frontalmente as montagens familistas neoconservadoras.
As redes de socorristas latino-americanas atuam na micropolítica, informando sobre aborto seguro, militando pela legalização, criando acessibilidade e acompanhando procedimentos de interrupção de gestação, despertando outros afetos para ressignificar o aborto. São redes que atuam “na construção de acompanhamentos cuidadosos, amorosos e afetados”, transformando o relevo afetivo e incidindo nos processos individuais e sociais de significação. Assim, “deslocando estruturas e medos, as socorristas sentem os impactos do ativismo com o avanço da consciência social sobre a despenalização do aborto.”[3]
A mobilização histórica, orgânica e de base das hermanas exigiu uma dívida histórica como feito de justiça social para que sobreviver a um evento abortivo não seja mais privilégio de classe. Em performances políticas e artísticas nas ruas argentinas, as “pibas” deram “adiós” ao cabide como meio clandestino de precarização das vidas, o qual era usado como método de abortamento extremamente inseguro. Com efeito, a criminalização do aborto implica que todas as pessoas que abortem sejam relegadas à insegurança, à clandestinidade, à percepção desse ato como significado por culpa católica, trauma e medo de ser presa.
Criminalização de movimentos sociais
É preciso frisar que as redes de acompanhamento, por meio de um “ativismo feminista em termos de microrrevolução”, são articuladas informalmente em toda a América Latina, armando intenso fluxo de informações e conquistando “despenalização social e desclandestinização na medida em que” se tramam “com os sistemas de saúde público e privado”. No entanto, no Brasil e em outros países com regras com maior rigor proibitivo, a manifestação pública se torna temerária justamente porque a criminalização de movimentos sociais é um risco iminente, a despeito de atuarem muitas vezes por meio da garantia de direitos já positivados de abortamento legal, incidindo de modo a cumprir uma função desatendida pelo Estado. A clandestinização e a ausência de prestação de informação segura por parte dos serviços públicos instiga à ilicitude, pois a criminalização relega o debate ao silenciamento sob o véu do pecado, da culpa cristã, da moralização e do medo da criminalização, até mesmo quando presentes os requisitos para o acesso ao que se entende por “aborto legal”.
No caso do Brasil, desde a promulgação Código Penal Brasileiro de 1940 o aborto não é criminalizado em casos de gestação decorrente de violência sexual e quando a gestação apresenta risco de vida à pessoa gestante. Ademais, o Supremo Tribunal Federal estendeu a possibilidade de realização do procedimento em casos de fetos anencéfalos, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54/DF, julgada no ano de 2012. Nesses três casos, o aborto pode ser feito em hospitais públicos de referência, sendo inexigível autorização judicial ou registro de boletim de ocorrência para tanto. A despeito disso, em agosto de 2020, veio à público um emblemático caso ocorrido no estado do Espírito Santo: uma menina de 10 anos, grávida em decorrência de estupros cometidos por seu próprio tio desde que tinha 06 anos, conseguiu acessar o abortamento legal somente após uma semana de reiterados ataques. Os contornos do caso revelaram uma enorme inacessibilidade ao direito à interrupção de gravidez por risco de vida à gestante e por violência sexual, bem como a pervasiva atuação de grupos neoconservadores e fundamentalistas para tanto.
Rita Segato afirma que “forçar uma mulher a ter um corpo estranho e indesejado dentro de si mesma é uma experiência idêntica à do estupro. Mas o pior de todas as violações: uma violação do Estado” ao comentar um episódio em que uma menina de 11 anos, de Tucumán, foi obrigada a gestar e parir, após sofrer violência sexual perpetrada pelo namorado da avó. Segato evoca a fala enunciada pela menina “‘tire-me isso que o velho meteu lá dentro”, e acrescenta: “‘tire isso de mim’, diz a mulher estuprada”. No caso da menina brasileira, o movimento feminista conseguiu se articular para proteger a criança e fazer com que sua soberana vontade fosse respeitada. As redes articuladas avaliaram como exitosa a incidência feminista nesse contexto, tendo conquistado a opinião pública. No entanto, convém problematizar a configuração da menina como a figura do que poderíamos chamar de uma “vítima perfeita”, atravessada por diversas vulnerabilidades. A despeito da comoção popular favorável, problematizamos a adoção dessa figura como paradigmática para a conquista de terreno na discussão pública, porquanto, mesmo representando enorme contingente de vítimas, não retrata as motivações, os desejos e a imagem geral de pessoas que abortam clandestinamente gestações não viáveis.
Construir diferentes léxicos e projeções imaginárias no âmbito público passa também pela projeção e consideração de constrangimentos, vulnerabilidade, desejos e sonhos que atravessam a experiência corporificada e territorializada nos corpos que gestam. Passa, também, pela visibilização de quem são as mulheres que abortam, o que podemos fazer hoje quanto ao contexto brasileiro graças aos resultados da Pesquisa Nacional do Aborto de 2016: uma em cada cinco mulheres, aos 40 anos, já terá realizado pelo menos um aborto na vida, e essas mulheres que interrompem gestações são comuns, professam sua fé e são mães, em sua maioria. Isso nos empurra a refletir sobre e “reconhecer a centralidade das motivações e justificativas expressas pelas mulheres [e outras pessoas gestantes], tomando-as como ponto de partida para discutir a dimensão moral e ética do aborto”[4]. Com grande frequência aquilo “que se prega dos púlpitos como ‘cultura da morte’, revela-se, ao contrário, como condição de uma vida possível para elas e para os seus mais próximos (os seus filhos pequenos)”.[5]
Nesse aspecto, podemos evocar a dimensão de autodefesa subversiva e agente contida na percepção de ativistas integrantes do coletivo Con las amigas y en la casa, as quais compreendem que a defesa da legalização e a transgressão das normas proibitivas é “uma obrigação moral”, em ato de desobediência civil por considerarem injustas essas normas de restrição ao aborto. Quando há possibilidades mínimas democráticas para tanto, as feministas latino-americanas aborteiras passam a assumir publicamente o desacato por elas realizado: “estamos quebrando a lei, porque senão não seríamos feministas”. Sem crer que por isso sejam “criminosas”, defendem as ativistas aborteiras que sua “estratégia de comunicação tem a ver com a luta pelo aborto livre”, convidando “todas as organizações feministas para ultrapassar os limites, porque”, segundo elas, o “feminismo não deve ser tratado sob uma lógica de Estado”.[6]
Fornecendo medicamentos para a realização de aborto farmacológico com uso de pílulas de misoprostol (conhecido por Cytotec) e de mifepristona, medicamentos recomendados por orientação técnica e de políticas para sistemas de saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS) para um abortamento seguro, evitam que a pessoa gestante realize uma interrupção em condições inseguras, salvando sua vida e evitando que precisem procurar serviços de saúde, locais em que muitas vezes são criminalizadas. Exemplo disso pode ser constatado pelo fato de que, no Brasil, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro demonstrou que ⅓ das rés acusadas pelo crime de aborto e defendidas pela instituição foram criminalizadas pela rede médica hospitalar ao buscarem ajuda em razão de agravamento de saúde[7], o que viola frontalmente o dever de sigilo profissional.
É preciso pontuar que essas redes feministas alcançam um nível de transnacionalidade e ubiquidade porque sua força emana da especificidade de cada território, no movimento de conseguir traduzir e comunicar as demandas locais quando da expressão localizada de movimentos internacionais. Eis aí, para Verónica Gago, “sua potência inovadora: conseguir traduzir-se como presença concreta em cada conflito”. Diferentemente “de um processo de universalização que necessita abstrair as condições concretas”, o que potencializa os transnacionalismos feministas é justamente a “capacidade de que esse plano internacional apareça como expansão de horizonte de conexões possíveis e como força imediata de luta.” Por isso dizemos que cria ubiquidade, pois demonstra a capacidade dos movimentos feministas de estarem “em muitos lugares ao mesmo tempo”, o que possibilita tecer um “corpo comum, antes que uma estrutura. E esse corpo que se vivencia como corpo comum é o que permite gerar ubiquidade por conexão, sem necessidade de síntese unitária.”[8] Afinal, o delírio unitário dos abstratismos só é possível através do apagamento das diferenças.
O ato de exigir e criar condições de possibilidade de acesso amplo, seguro, gratuito e humanizado ao aborto carrega em si a potência de deslocar o mecanismos patriarcais de controle dos percursos de vida das mulheres, de essencialização e instrumentalização de seus corpos e exercícios sexuais e reprodutivos: “a prática inveterada do aborto, uma cena trans-histórica do poder feminino, fundamenta a espessa camada de silêncio e ocultação imposta pela preservação do poder patriarcal misógino sobre vidas e corpos”[9]. A possibilidade de decidir se, como, quando e com que parir acaba por colocar em xeque, ao fim e ao cabo, os mandatos neoconservadores familistas.
As experiências aborteiras no território da América Latina constituem a ponta de lança do enfrentamento às estratégias familistas patriarcais neoconservadoras, pois subvertem essas montagens das políticas de corpos através de possibilidades de trajetórias múltiplas e emancipatórias. Assim, podemos pensar em um devir-aborteiro latino-americano, que agora está chegando no Chile, pois essas resistências transnacionais protagonizam a efervescência social da mudança de vida das pessoas, abortando e gestando novas formas de vida, novas mentalidades e novas atitudes. A desliberalização e a ressolidarização interseccional dos feminismos são capazes de fazer oposição à lógica e à cosmovisão neoconservadora, privatista e familista, operacionalizada pela relação moralizante estabelecida entre o neoconservadorismo e o neoliberalismo. As práticas de solidariedade constituem, para tanto, elemento central aos jogos de força travados entre os (contra-)movimentos, permitindo que nos situemos nessa constelação de coordenadas sociais que afetam modos de vida.
Domenique Goulart é mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS e bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS. É advogada e sócia da Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos (2020). Pesquisa estratégias dos feminismos e neoconservadorismos através das políticas do aborto na América Latina.
[1] BUTLER, Judith. Sin miedo. Trad. Inga Pellisa. Madri: Taurus, 2020, p. 08.
[2] GAGO, Verónica. Potência feminista, ou o desejo de transformar tudo. Trad. Igor Peres. São Paulo: Elefante, 2020, p. 231.
[3] GUIMARÃES, Paula. Aborto feminista salva vidas e empodera mulheres. Portal Catarinas, 13 dez. 2017. Disponível em: <https://catarinas.info/aborto-feminista-salva-vidas-e-empodera-mulheres-na-america-latina/>. Acesso em 11 jan. 2021.
[4] BIROLI, Flávia. Aborto, justiça e autonomia. In: _____________; MIGUEL, Luis Felipe. Aborto e democracia. São Paulo: Alameda, 2016, p. 32.
[5] ROSENBERG, Martha. Del aborto y otras interrupciones ¿Quiénes son esas mujeres? Cosecha Roja, 27 de outubro de 2020. Disponível em: <http://cosecharoja.org/del-aborto-y-otras-interrupciones-quienes-son-esas-mujeres/>. Acesso em 02 de dezembro de 2020.
[6] GUIMARÃES, Paula. Aborto feminista salva vidas e empodera mulheres. Portal Catarinas, 13 dez. 2017. Disponível em: <https://catarinas.info/aborto-feminista-salva-vidas-e-empodera-mulheres-na-america-latina/>. Acesso em 11 jan. 2021.
[7] Diretoria de Pesquisa e Acesso à Justiça. DPRJ traça perfil de mulheres criminalizadas pela prática do aborto. Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, 30 de novembro de 2017. Disponível em:<http://www.defensoria.rj.def.br/noticia/detalhes/5372-DPRJ-aponta-perfil-da-mulher-criminalizada-pela-pratica-do-aborto>. Acesso em 19 de abril de 2018
[8] GAGO, Verónica. Potência feminista, ou o desejo de transformar tudo. Trad. Igor Peres. São Paulo: Elefante, 2020, p. 224.
[9] ROSENBERG, Martha. Del aborto y otras interrupciones ¿Quiénes son esas mujeres? Cosecha Roja, 27 de outubro de 2020. Disponível em: <http://cosecharoja.org/del-aborto-y-otras-interrupciones-quienes-son-esas-mujeres/>. Acesso em 02 de dezembro de 2020.