Intocáveis criações da Noruega
As proezas da biotecnologia quase nos levariam a esquecer que, no início, a criação de salmão era uma atividade artesanal, um complemento dos rendimentos para os agricultores. Agora, a aquicultura ultramoderna e automatizada gera poucos empregos (apenas 7.650 em toda a Noruega), mas muitos lucros.
Não longe de Bergen, na Noruega, a companhia Lerøy, segundo produtor mundial do salmão de aquicultura, nos convida a visitar sua criação-piloto de Sagen 2. Um hangar abriga reservatórios onde são criados exércitos de Cyclopterus lumpus. A aquicultura fez desse pequeno peixe dotado de ventosa um aliado: o lumpus é um predador do parasita lakselus (ou piolho-do-salmão, Lepeophtheirus salmonis). “Nós produzimos cerca de 6 milhões de lumpus por ano”, explica Harald Sveier, diretor técnico da Lerøy. Segundo ele, “isso permite reduzir 90% do uso de tratamentos contra os piolhos”. A companhia nos mostra também um protótipo singular, denominado “o tubo”. Trezentos mil salmões jovens são criados durante vários meses nessa estrutura de plástico de 50 metros de comprimento que flutua no fiorde, dotada de uma corrente artificial e alimentada por água bombeada no fundo. “A 35 metros [de profundidade], a água é extremamente fria para os piolhos”, esclarece Sveier. E prossegue: “Os salmões nadam na corrente e ficam em sua melhor forma. Dejetos e resíduos são recolhidos e tratados” – em vez de se acumularem e poluírem o fiorde, o que suscita uma das críticas recorrentes contra a aquicultura.
A Lerøy prevê a colocação de um segundo tubo, no final de 2018, “quatro vezes maior, com capacidade para 1,2 milhão de salmões”. Com toda certeza elevado, o custo desse dispositivo continua “confidencial”. Nos escritórios de Oslo, a Cermaq, outra gigante norueguesa do salmão e filial da Mitsubishi, também nos apresenta projetos inovadores, tal como o iFarm: “Nele poderemos criar apenas os salmões necessários”, afirma Wenche Grønbrekk, responsável por “riscos e sustentabilidade”. E continua: “Cada peixe será identificado por um sistema de reconhecimento facial”.
Reconhecimento facial dos peixes… Essas proezas da biotecnologia quase nos levariam a esquecer que, no início, a criação de salmão era uma atividade artesanal, um complemento dos rendimentos para os agricultores. Agora, a aquicultura ultramoderna e automatizada gera poucos empregos (apenas 7.650 em toda a Noruega), mas muitos lucros. Em 2017, o país exportou 1,2 milhão de toneladas de salmão (54,8% da produção mundial), por aproximadamente 6 bilhões de euros.1 O salmão permite construir fortunas colossais: nascido em 1993, Gustav Magnar Witzøe, herdeiro do grupo Salmar, é um dos biliardários mais jovens do mundo.
Entretanto, por causa do piolho-do-salmão, as criações de novas aquiculturas estão congeladas desde 2013. E, como no Chile (ler artigo anterior), o meio ambiente sofre. Assim, em trinta anos, a população de salmões selvagens teria caído para menos da metade (470 mil, em 2016, comparados a 1 milhão nos anos 1980). A hibridização com salmões provenientes da aquicultura os torna mais vulneráveis.2 Em 2015, em razão do impacto da aquicultura, dezessete associações (ecologistas, montanhistas, de pescadores, de caçadores) apresentaram uma denúncia contra o governo norueguês, para a autoridade de vigilância da Associação Europeia de Livre-Comércio (Aelc), por não ter respeitado a diretiva do Parlamento e do Conselho europeus visando à proteção dos recursos hídricos, que passou a vigorar em 23 de outubro de 2000.
Lista negra de cientistas críticos
Diante das críticas e, sobretudo, da perda de confiança dos consumidores, os industriais reagiram. Tentam reduzir a poluição, frear as evasões, limitar os tratamentos tóxicos, lutar contra os vírus e parasitas. O uso de predadores naturais do piolho visa diminuir o uso de pesticidas (diflubenzuron e teflubenzuron). Mas a Associação dos Pescadores Marinhos (Fiskarlaget) os acusa de matar outros crustáceos, entre os quais pequenos camarões e krills.3 A indústria contesta, alegando que esse problema existe também em zonas onde não há aquicultura. E, como no Chile, ela é apoiada por um órgão do Estado, o Instituto Norueguês de Pesquisa Marinha (Havforskningsintituttet), em Bergen. “Não há ligação evidente”, afirma-nos uma cientista do Instituto, Rita Hannisdal. E prossegue: “Mortes de inúmeros krills ocorreram bem antes da existência da aquicultura. Certas pessoas querem ver uma correlação, mas não há elementos suficientes para pôr em evidência uma causalidade. Precisamos provas e, no momento, não há pesquisa sobre essa questão”. Entretanto, foi-nos fornecido um estudo de 1982 que mostra que o diflubenzuron mata as larvas de caranguejos…4
O Instituto de Pesquisa Marinha, que se juntou ao Instituto Norueguês de Nutrição e de Pesquisa sobre os Frutos do Mar (Nifes), em janeiro de 2018, depende do Ministério da Pesca. Titular da pasta entre 2009 e 2013, Lisbeth Berg-Hansen (Partido Trabalhista) possuía ações de empresas de aquicultura. Seu sucessor, de direita, Per Sandberg (Partido do Progresso), tem a ambição de quintuplicar a produção de salmão até 2050.5 Em 2016, ele qualificou de “forças obscuras” aqueles que ousam criticar a aquicultura. E isso não ficou só em palavras: o jornal semanal Morgenbladet e o site Harvest Magazine identificaram uma dúzia de cientistas arrolados em uma lista negra por terem colocado em questão o discurso dominante.6
Entre eles, o francês Jérôme Ruzzin, professor e pesquisador na área de toxicologia da Universidade de Bergen, onde estuda os poluentes orgânicos persistentes (POPs). Os peixes ricos em lipídios, como o salmão, são procurados por suas proteínas e como fontes de ômega 3, “de cadeia longa”, necessários para o sistema nervoso. Mas sua gordura concentra também poluentes como a dioxina e o PCB [bifenilo policlorado]. O Instituto de Pesquisa Marinha quer tranquilizar: ele “controla anualmente os índices de poluentes e os publica em seu site”, salienta ele, e “os valores estão abaixo das doses máximas estabelecidas pela União Europeia”.
A indústria do salmão acrescenta: “Fazemos testes e respeitamos as exigências estritas do governo. Estamos bem abaixo dos limites”, garante Grønbrekk. Ela faz disso um argumento em prol da aquicultura: “Pesquisas recentes mostram que o salmão da aquicultura contém menos poluentes ambientais que os peixes selvagens e ricos em lipídios. A vantagem da aquicultura é que controlamos a alimentação dos peixes”. Um estudo publicado em novembro de 2016 na revista francesa 60 Millions de Consommateurs, de fato, tende a mostrar que o salmão pescado e mesmo o peixe da criação orgânica (alimentado com peixe selvagem) contêm mais poluentes que o salmão da criação clássica, pois sua alimentação comporta mais farinha animal e menos vegetais.
No entanto, para Ruzzin, os limites fixados são duvidosos: “Em novembro de 2000, a União Europeia havia fixado um limite de 7 picogramas por semana [1 picograma = 10–15 quilograma]. Mas muitos consumidores excediam essa dosagem. Então, seis meses depois, o valor dobrou para 14 picogramas”. Esse remendo foi criticado na época pela Agência Federal Alemã do Meio Ambiente.7 Ruzzin trabalhava no Nifes, onde estudou o impacto na saúde do consumo do salmão contendo esses POPs: “Constatei efeitos deletérios no metabolismo de ratos alimentados com óleo de salmão, comparados com um grupo alimentado com óleo não contaminado. Os animais desenvolviam diabetes de tipo 2 e uma obesidade muito grave.8 O Nifes me proibiu de falar diretamente com a mídia e de participar de congressos científicos, e restringiu consideravelmente minhas atividades de pesquisa. Tudo era controlado de A a Z”.
Dúvidas sobre os benefícios do ômega 3
Também se sabe pouco sobre as consequências da acumulação dos tóxicos e os efeitos “coquetel” desses acúmulos. Quanto ao ômega 3 tão vangloriado, Ruzzin contesta suas supostas virtudes: “Os esquimós consomem muito ômega 3 e têm poucas doenças cardiovasculares. Então, comer ômega 3 seria ‘bom para a saúde’… De fato, sabemos que os esquimós têm um patrimônio genético específico.9 Pacientes vítimas de infarto se viam com prescrições de ômega 3 sem constatarem nenhuma melhora”. Ele nos mostra uma publicação do Ministério das Ciências norueguês, de maio de 2012, admitindo que “os efeitos positivos dos ômega 3 não estão suficientemente documentados”. Ruzzin saiu do Nifes em 2010 e nos confessa que “não come mais salmão de aquicultura”. Na França, a Agência Nacional de Segurança Sanitária da Alimentação (Anses) recomenda, todavia, o consumo de peixe duas vezes por semana, alternando um peixe que tenha grande teor de ômega 3 com um peixe magro, “a fim de garantir todos os benefícios do consumo do peixe e suprir as necessidades que a população tem de ômega 3 de cadeia longa, minimizando os riscos de superexposição a determinadas substâncias que possam contaminar”.10
Bioquímica e pediatra no hospital Haukeland de Bergen, Anne-Lise Bjørke-Monsen também está na lista negra. Em 10 de junho de 2013, nas colunas do jornal diário Verdens Gang, ela aconselhou que crianças e grávidas não consumissem salmão. Sua entrevista teve enorme repercussão na Noruega e em outros países. Seus superiores a desabonaram publicamente. “A indústria do salmão compra a pesquisa”, acusou. Como prova disso, ela nos mostra um estudo de 2006 coordenado pelo Nifes… e financiado pela Marine Harvest. “Conheci jovens pesquisadores que passavam de um contrato precário para outro. Desde então, trabalham para a indústria do salmão, que lhes proporciona uma vida com segurança material.”
Outro fato inquietante: uma pesquisadora do Nifes, Victoria Bohne, descobriu em 2008 que a etoxiquina encontrada na ração dos salmões pode ultrapassar a barreira hematoencefálica que protege o cérebro. Ela acusa o Nifes de tê-la “forçado a sair”.11 Os fabricantes de farinhas animais escolheram esse antioxidante (E324) para evitar que a ração fique rançosa e impedir sua combustão espontânea, um risco que a Organização Marítima Internacional impõe que se leve em conta.12 O E324 foi originalmente desenvolvido por uma indústria da borracha para evitar fissuras nos pneus.13 Seu efeito estabilizador sobre as vitaminas solúveis nas gorduras e sua capacidade de impedir sua oxidação levaram à sua utilização como conservante. Assim, ele foi produzido pela Monsanto nos anos 1960 para tratar frutas e legumes, antes de ser proibido pela União Europeia. Em junho de 2017, Bruxelas também suspendeu a utilização do E324 na alimentação animal a partir de 2019. O grupo Cermaq afirma ter “reduzido o uso da etoxiquina, graças a um diálogo com [seus] fornecedores de alimentos para salmão”, substituindo-a principalmente por “um antioxidante natural, o tocoferol (vitamina E), nas [suas] empresas na Noruega”.
O uso dos produtos da pesca para alimentar os peixes da aquicultura invalida o argumento principal alegado em favor dessa atividade: a proteção dos recursos haliêuticos. Como a aquicultura fez também de sua emissão de dióxido de carbono relativamente fraca um argumento de venda, ela tenta diversificar a alimentação de seus salmões: “A proporção de ingredientes marinhos não passa de 30% e não para de diminuir”, especifica Grønbrekk em nome da Cermaq. “Os ingredientes agrícolas devem vir de fontes sustentáveis. Existem pesquisas em curso para a utilização de algas e insetos. As Nações Unidas estimam que 30% das reservas de peixes selvagens sejam superexploradas, o que não é viável. É importante para nosso futuro utilizarmos o mar como agricultores, e não como caçadores”, conclui ela, ao se referir ao oceanógrafo Jacques-Yves Cousteau (1910-1997), que via na aquicultura uma solução sobressalente para a pesca.
Outras pistas são exploradas no Canadá, “o único país que aceitou um animal geneticamente modificado destinado ao consumo humano”, de acordo com a associação Vigilance OGM. Criado no Panamá pela empresa norte-americana AquaBounty, esse salmão se tornaria adulto “duas vezes mais depressa”, segundo seus criadores. Na falta de catalogação, e como essa filial da Intrexon guarda a lista de seus distribuidores em caráter confidencial, 4,4 toneladas foram vendidas para o Quebec com toda discrição em 2017… Vem aí, extasia-se o site AquaBounty, “o salmão mais sustentável do mundo!”.
*Cédric Gouverneur é jornalista.