Investigação sobre a Palma de Ouro
Em Cannes, quase 5 mil jornalistas e técnicos de mídia de 88 países cobrem cada manifestação, que apresenta, na competição oficial, cerca de duas dezenas de filmes. O impacto e os desafios financeiros do festival são consideráveis, o que nos incita a interrogar o sentido e as evoluções dos laureadosSerge Regourd
(O diretor Michael heneke e os atores Emmanielle Riva e Jean-Louis Trintignant após a entrega da Palma de Ouro ao filme Amour)
Podemos dizer que Cannes “é o mais belo dos festivais”,1 para citar o cineasta Manoel de Oliveira, e “um clube de diretores distantes da realidade social”,2 para retomar a análise de alguns cinéfilos. Essas apreciações um pouco divergentes dão conta de uma realidade: Cannes constitui todos os anos a capital de uma certa esquizofrenia. Ele cristaliza as contradições que tornam emblemático, de alguma forma, o funcionamento do cinema francês: de um lado, a célebre exceção cultural, autorizando os mecanismos de apoio público à cultura; do outro, os recursos aos mesmos profissionais da área técnica da indústria hollywoodiana, projetos financeiros e atores que permitem arrecadar muito.3
Durante doze dias, os participantes do festival formam um microcosmo fora do mundo, mas se consagram ao consumo de filmes que para muitos questionam o estado deste mundo, o qual, não é visionário precisar, não deixa ninguém de muito bom humor. E, ao final das projeções, festas, lantejoulas e celebridades: Ken Loach para lá e Bernard Tapie para cá, mais ou menos. Se essa ambivalência é constitutiva de um festival que permanece como a mais brilhante vitrine do cinema mundial, pode ser esclarecedor examinar como essa tensão se traduz nos vencedores da Palma de Ouro: a purpurina é preferida aos questionamentos, e, no caso contrário, que questionamentos são coroados?
Antes de mais nada é preciso ressaltar que o campo das seleções está circunscrito em função de uma dosagem que reflete esta ambivalência: os filmes da África subsaariana e do Magreb são marginais, até mesmo ausentes; os “acontecimentos”, com projeções de blockbusters e desfile das estrelas, agora já fazem parte das tradições, enquanto certo número de grandes autores, como Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, nunca foram sequer selecionados. A misoginia do festival também é notável:4 em 2012 havia apenas uma diretora entre os 22 selecionados para a competição oficial, e apenas uma em toda a história recebeu a Palma de Ouro – Jane Campion, em 1993, por O piano. É nesse contexto consideravelmente restrito que devemos apreciar a lista de laureados.
Idas e vindas dos prêmios
Para continuarmos sendo modestos, vamos nos contentar aqui em questionar a “era Frémaux” – iniciada em 2004, quando Thierry Frémaux se tornou responsável artístico, antes de ser nomeado, em 2007, responsável-geral, o que significa principalmente que ele encabeça os comitês encarregados da seleção oficial. As palmas de 2005 e 2006 foram colocadas sob o signo de um certo engajamento: acostumados com as recompensas de Cannes, Jean-Pierre e Luc Dardenne, assim como Ken Loach, triunfaram com obras típicas de seus universos. Em A criança, dos irmãos Dardenne, dois jovens pais que sobrevivem graças às ajudas sociais participam da “troca mercantil” aplicando-a a um bebê e não terão outra perspectiva a não ser a prisão. Ventos da liberdade ilustra, ao contrário, como é comum na obra de Loach, o espírito de um mundo que se tornou melhor graças ao combate, nesse caso o do Irish Republican Army (IRA) contra o ocupante britânico de 1920 a 1923. Essas duas obras são representativas da diferença entre a visão otimista de um futuro que pode ser modelado pela luta e o desespero social, sem perspectiva.
Em 2007, a Palma de Ouro foi atribuída ao filme do romeno Cristian Mungiu, 4 meses, 3 semanas e 2 dias, que evoca a opressão cotidiana sob o regime de Nicolae Ceaucescu, dois anos antes de sua queda, em 1989. Em 2008, o político no sentido amplo triunfou. Por unanimidade, a Palma de Ouro foi dada a Entre os muros da escola, de Laurent Cantet, que coloca em cena o confronto de um professor com as dificuldades sociais de seus alunos, em uma sociedade mestiça. Mas é quase o conjunto das recompensas que saúda o engajamento: o Grande Prêmio foi para o filme de Matteo Garrone, Gomorra, transposição do best-seller de Roberto Saviano, crônica glacial das falhas gigantescas do Estado de direito no coração da bela Europa democrática; Benicio del Toro recebeu o prêmio de interpretação por sua encarnação de Che no filme de mesmo nome, de Steven Soderbergh; o Prêmio do Júri coroou Il divo, de Paolo Sorrentino, evocação do reino de Giulio Andreotti, figura-símbolo da Democracia Cristã Italiana, no poder por mais de vinte anos até o início dos anos 1990, e de seu processo por suas ligações com a Cosa Nostra; e o prêmio de roteiro consagrou O silêncio de Lorna, dos irmãos Dardenne, que continuam sua exploração da humilhação social sob o fundo da imigração e da exploração mafiosa.
Ainda seria preciso mencionar Valsa com Bashir, do israelense Ari Folman, documentário de animação que testemunha o massacre pelas falanges cristãs dos palestinos refugiados nos campos de Sabra e Chatila. Finalmente, a Câmera de Ouro, criada em 1978 para recompensar o melhor primeiro filme de um diretor, com todos os quesitos misturados, foi entregue a Hunger, do britânico Steve McQueen, consagrado à greve de fome realizada na prisão por Bobby Sands e seus camaradas do IRA em 1981, sugerindo que, sob certos ângulos, a fronteira entre democracia e totalitarismo pode se revelar incerta… Em 2009, foi contemplada com a Palma de Ouro a descrição entomológica de uma sociedade devastada por um puritanismo repressivo com notas de fascismo por vir (A fita branca, de Michael Haneke), e, se o Grande Prêmio foi atribuído a O profeta, de Jacques Audiard, descrição da evolução, na prisão, de um pequeno malfeitor em verdadeiro profissional, o tom foi bem menos marcante que no ano precedente sobre o engajamento político.
Nestes poucos anos, parece que os júris fizeram questão de dar a Palma de Ouro a obras que, na maior parte dos casos, se inspiraram no passado e trataram de alguns dos conflitos que marcaram… o século passado. Com exceção dos filmes dos Dardenne, foram poucas questões estritamente atuais e uma notável ausência de evocação dos problemas sociais. Houve algumas reações no campo político. A ministra Christine Boutin, por exemplo, tentou se opor – em vão – à difusão do DVD pedagógico de 4 meses, 3 semanas…, que também recebeu o Prêmio da Educação Nacional; a seleção de Fora da lei, de Rachid Bouchareb, sobre a independência da Argélia, suscitou protestos vigorosos da direita e de eleitos locais, enquanto o ministro italiano da Cultura, Sandro Bondi, proclamava boicote ao festival depois da seleção de Dráquila, a Itália que treme, que trata das manipulaçõesberlusconianas. Mas isso não impede que se questione se os temas abordados pelos filmes coroados não encontram valores que já formam um amplo consenso.
Propensão à transcendência
O ano de 2010 marca uma reviravolta. A Palma de Ouro, Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas, do tailandês Apichatpong Weerasethakul, filme quase experimental, irrigado pelas fantasias sobre a reencarnação, uma evasão mística longe das interpelações prosaicas de nosso pequeno mundo. Claro, a busca forçada por um eco político poderia encontrar ali algo para dissertar sobre a falta de orientação de um mundo contemporâneo condenado à perda, o cineasta designando uma via de resistência, de inspiração budista, e integrando o arrependimento do protagonista, que lamenta ter matado muitas formigas… e comunistas.
A Palma de Ouro de 2011 nem sequer autoriza esse tipo de comentário. A árvore da vida, do norte-americano Terence Malick, se define como a modesta ilustração de uma confrontação cósmica e metafísica entre a vida de uma família dos Estados Unidos e a criação do mundo. As interpelações sociopolíticas só podem tirar daí uma contingência insignificante. Enfim, em 2012, foi o eterno trio “vida, amor, morte” que esteve no coração da obra laureada. Amour, de Haneke – que entrou no clube muito fechado de cineastas que receberam duas vezes a Palma de Ouro –, se inscreve na mesma exploração dos valores “eternos”, por meio de uma crônica intimista e dolorosa sobre a velhice e a agonia de um casal. Claro, o engajamento não esteve completamente ausente do vencedor, mas os prêmios são menos prestigiosos, e o social intervém agora em duas comédias: The angel’s share, de Loach, Prêmio do Júri, e Reality, de Matteo Garrone, Grande Prêmio, tratando da sedução da glória televisual para os deixados para trás de uma sociedade em crise.
Esse forte contraste com as escolhas dos anos precedentes pode, obviamente, estar relacionado a uma afirmação do predomínio de critérios estéticos e artísticos. Mas não é proibido notar que se expressa assim certa propensão à transcendência, como refúgio à dificuldade de pensar um porvir humano liberto das hipotecas da ordem mercantil.
Uma vez percebida essa evolução, importa agora salientar que todas essas Palmas participam de uma emancipação dos critérios comerciais: na França, A árvore da vida teve 872.895 espectadores, enquanto Piratas do Caribe: a fonte da juventude atingiu 4.755.981 – para não falar de Intocáveis [comédia popular de enorme sucesso na França no final de 2011 – N.T.]. Tio Boonmee contabilizou 127.511 entradas; Como arrasar um coração, de Pascal Chaumeil, quase 3.800.000. A fita branca aproximou-se de 650.000 entradas: é fichinha se comparado a De l’autre côté du lit, de Pascale Pouzadoux, que registrou quase 1,8 milhão de entradas – sem contar Avatar, de James Cameron (mais de 14,6 milhões de espectadores).
Além do mais, esses premiados permitem escapar das redes de leitura e dos códigos de valor de muitos cronistas, que têm com frequência – eventualmente com relutância – uma ligação com os grandes tomadores de decisão da indústria cinematográfica. Desse ponto de vista, é bem agradável confrontar seus prognósticos da véspera da entrega dos prêmios com os vencedores em si. A edição de 2012 não rompeu com a regra. Todas as apostas estavam entre o filme de Jacques Audiard, De rouille et d’os, e o de Leos Carax, Holy Motors, tanto para a Palma de Ouro como para o prêmio de interpretação. Ambos ficaram de fora da premiação, dando espaço a artistas menos célebres e bagunçando assim a hierarquia dos autores e atores no coração da indústria cinematográfica. É preciso, então, saber conceder ao menos aos júris de Cannes o fato de participarem às vezes, nos limites estreitos do exercício, do despedaçar da autoridade dos pseudoespecialistas midiáticos, mantenedores da ordem – simbólica e material – estabelecida.
Serge Regourd é Professor da Universidade de Toulosse 1 Capitole.