Irã e Turquia: aliados ou concorrentes?
Desde a chegada ao poder, em 2003, Erdogan adotou uma diplomacia conciliadora tanto com seu parceiro histórico alemão como com seu rival ancestral iraniano. Entretanto, desde a Primavera Árabe e da guerra na Síria, assim como dos fracassos do processo de adesão à União Europeia, tensões opõem de maneira recorrente Ancara e TeerãMohammad-Reza Djalili e Thierry Kellner
Por toda a história, Irã e Turquia mostraram pragmatismo em suas relações bilaterais, apesar de sua rivalidade e interesses às vezes divergentes (ver box). Mas as revoltas da Primavera Árabe revelaram – e algumas vezes produziram – antagonismos profundos. Desde o início da crise na Síria, surgem divergências.1 Depois de convidar (sem sucesso) o governo de Bashar al-Assad a empreender reformas, a Turquia – embora próxima da Síria, em sua política de “zero problemas com os vizinhos” – ofereceu apoio à oposição. No Irã, as coisas foram bem diferentes, já que sua estratégia no Levante se ancora na Síria. O governo persa apoiou o regime de Al-Assad e mobilizou para isso seus aliados libaneses, incluindo o Hezbollah, assim como outras redes: milícias xiitas iraquianas e voluntários xiitas de vários países, estes particularmente presentes nos combates para tomar Alepo Oriental. Enquanto o Irã se configurava como o mais importante aliado do regime sírio – pelo menos até a intervenção russa, em setembro de 20152 –, a Turquia autorizava a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) a instalar em seu território um escudo antimísseis, após ter seu espaço aéreo violado pela aviação russa, assim se protegendo melhor de ataques provenientes da Síria. Todas essas decisões foram desaprovadas pelo Irã: do ponto de vista persa, tais instalações eram em parte dirigidas contra ele.
Para o regime iraniano, a Turquia abandonou sua política de independência em relação aos Estados Unidos, iniciada em 2003 com a recusa em facilitar a intervenção militar norte-americana no Iraque. Em julho de 2015, ela autorizou o Exército dos Estados Unidos a decolar suas aeronaves partindo da base de Incirlik para os bombardeios contra as tropas do Estado Islâmico. A decisão, embora tenha contribuído para conter o avanço desse grupo, despertou a ira de Teerã, que viu ali, antes de mais nada, um novo meio de aproximação entre Turquia e Estados Unidos. O Irã também se preocupa com a convergência, no que se refere ao tema Síria, entre Turquia, Arábia Saudita e Catar, desenhada no início de 2015. Os três países entraram em acordo para coordenar melhor as ações e aumentar seu apoio à oposição.3 Os resultados não demoraram a aparecer: a partir do final de março de 2015, as forças rebeldes avançaram em diversas regiões do país. Então o Irã levou a Rússia a intervir.4
Apesar do acordo sobre a questão nuclear iraniana realizado em julho de 2015, Turquia e Irã travam uma guerra de palavras sobre a Síria, um acusando o outro de apoiar “movimentos terroristas”. O presidente Recep Tayyip Erdogan não gosta nem um pouco das acusações da mídia iraniana sobre a compra, por parte da Turquia, de petróleo proveniente de poços sírios controlados pelo Estado Islâmico. De modo mais espetacular ainda, em um contexto de intensificação das relações com algumas monarquias do petróleo, a Turquia inaugurou, em maio de 2016 – pela primeira vez desde o fim do Império Otomano – uma base militar no território de seu aliado mais próximo na região, o Catar. Essa iniciativa bilateral ecoa a aliança sunita lançada oficialmente pela Arábia Saudita em março de 2016, da qual Turquia e Catar fazem parte. Essa série de eventos preocupa o regime iraniano, isso sem falar da penetração turca no Golfo Pérsico, que o Irã considera sua zona de influência natural.
Embora tenham posições opostas a respeito de todas as questões regionais, Turquia e Irã continuam ligados por suas trocas econômicas e energéticas. Aquela compra deste petróleo e gás, enquanto o Irã continua importando bens de consumo turcos. Porém – sinal de que as dissensões políticas pesam –, o balanço comercial tem se reduzido: passou de US$ 21,89 bilhões em 2012 para US$ 13,7 bilhões em 2014 e apenas US$ 9,7 bilhões em 2015. Mesmo que a queda dos preços do petróleo explique essa evolução, estamos muito longe da meta de US$ 35 bilhões definida pelos dois lados. Após a interceptação de um avião russo por caças turcos em 27 de novembro de 2015, o Irã ofereceu seus bons serviços na crise entre Turquia e Rússia, provavelmente para melhorar suas relações com a primeira. Prova de que prevalece certo pragmatismo, os dois países assinaram, na primavera de 2016, um acordo sobre o turismo e discutem uma cooperação estratégica em termos de petróleo e gás.
A tentativa de golpe de Estado na Turquia, na noite de 15 para 16 de julho de 2016, deu ao Irã uma oportunidade inesperada de se conciliar com a vizinha. Enquanto o golpe ainda estava em curso, o ministro das Relações Exteriores iraniano enviou uma mensagem de apoio ao governo turco no Twitter. Em seguida, o Conselho Supremo de Segurança Nacional, reunido sob a presidência de Hassan Rohani, manifestou seu apoio oficial ao “governo legítimo da Turquia”. Essa pronta reação contrastou com a dos membros da Otan, mais lenta, embora se trate de países aliados ao governo Erdogan. Logo após o fracasso do golpe, o presidente Rohani propôs discutir as questões regionais. O Irã claramente aproveitou o evento para convidar o governo turco a rever sua posição sobre a Síria. Em menos de um mês, uma reaproximação se concretizou. O consenso girava em torno de três objetivos principais, já discutidos, embora sem sucesso, durante as reuniões secretas iniciadas três meses após a eleição de Rohani: manutenção da integridade territorial do país, luta contra todos os movimentos extremistas e terroristas e, finalmente, estabelecimento de um governo de unidade nacional para a realização de eleições supervisionadas pela ONU.5
Para além do acordo formal sobre esses pontos, as divergências persistiram, sobretudo quanto ao papel de Al-Assad, o que fragiliza a aproximação. Estados Unidos e Turquia têm trabalhado para reaquecer suas relações, glaciais após o fracassado golpe de Estado de julho: em 24 de agosto de 2016, a Turquia lançou, no norte da Síria, a operação Escudo do Eufrates, em acordo com os Estados Unidos, e, no início de setembro, Barack Obama e Erdogan reuniram-se. Mas não avisaram o Irã. Este, surpreso, chamou a operação de “violação da soberania síria”, acusando a Turquia de complicar a situação regional. Isso não impediu que esta expandisse suas operações para estabelecer uma “zona de segurança” no território sírio para a oposição – um santuário cuja ideia ganha muita importância com a queda anunciada de redutos rebeldes em Alepo Oriental e que não agrada ao regime iraniano.
Se o Irã e a Turquia trabalham oficialmente pelo apaziguamento de suas relações, como sugere o encontro entre Rohani e Erdogan em setembro, paralelamente à reunião da Assembleia Geral da ONU, suas posições sobre a política regional continuam a divergir. Diante da política externa iraniana, sempre alinhada à causa xiita, Erdogan aparece pouco a pouco como protetor dos sunitas. No Iraque, no contexto das operações militares de reconquista da cidade de Mossul, o presidente turco condenou a presença de milícias xiitas apoiadas por Teerã, considerando que elas ameaçavam os sunitas. Ele reuniu tropas na fronteira iraquiana, dando a entender que elas agiriam se os sunitas fossem afetados pelas operações contra o Estado Islâmico em Mossul e Tal Afar (onde vive uma importante minoria turcomana). Para alguns observadores, essa lembrança de que o Irã mantém laços no Iraque – e, indiretamente, da política iraniana neste país – poderia constituir uma base para uma aproximação entre o poder turco e a nova administração Donald Trump. Essa hipótese, se confirmada, pode não agradar nem um pouco ao Irã, dado o discurso do presidente eleito dos Estados Unidos e de seus conselheiros sobre a questão iraniana (ler mais na p.10).
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BOX: Condenados a conversar
Semelhanças históricas, afinidades culturais: o Irã e a Turquia têm uma proximidade singular. Ao contrário de muitos de seus vizinhos no Oriente Médio, esses dois Estados não árabes são de construção antiga. Oriundos de dois grandes impérios, o safávida e o otomano, cuja rivalidade remonta ao século XVI, eles muitas vezes estiveram em luta e também conseguiram, algumas vezes, encontrar campos de aliança.
Seu desenvolvimento político ao longo do século XX tem muitas semelhanças. Tanto a revolução constitucional de 1906, na Pérsia, como a dos Jovens Turcos em 1908 transformaram a cena política nacional. Após a Primeira Guerra Mundial, as duas capitais lançaram juntas programas de transformação dirigidos pelo Estado. Desde sua fundação por Mustafa Kemal Atatürk, em 1923, a República da Turquia iniciou uma política de modernização autoritária na qual Reza Xá se inspirou para o estabelecimento da dinastia Pahlavi, no final de 1925. Após a Segunda Guerra Mundial, e até a Revolução Islâmica de 1979, Turquia e Irã temeram a “ameaça soviética”: próximos do Ocidente, particularmente dos Estados Unidos, ambos cooperaram militarmente no Pacto de Bagdá (1955-1958), substituído após a queda da monarquia iraquiana, em 1958, pela Organização do Tratado Central (Cento, 1958-1979).
A partir de 1979, dois sistemas políticos de naturezas muito diferentes, um laico e o outro teocrático, tiveram de coexistir. O novo regime iraniano passou a condenar o secularismo, rejeitando o kemalismo e a ocidentalização da sociedade turca. Condenava também as ligações da Turquia com os Estados Unidos, com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e, mais tarde, com Israel. Em termos de política internacional, optou pelo movimento de não alinhados, inaugurando uma “diplomacia islâmica” que rejeitava quase todas as formas de regime existentes no Oriente Médio e no mundo muçulmano em geral. Mas, durante a Guerra Irã-Iraque (1980-1988), o país não teve escolha senão conduzir uma política mais conciliatória em relação a seu vizinho: as relações comerciais bilaterais entre Irã e Turquia gradualmente foram retomadas. Após o fim da guerra, apesar do abismo ideológico que os separava e do aparecimento periódico de divergências, os dois países continuaram a desenvolver suas trocas comerciais, evitando agravar as tensões.
Em 2002, a chegada ao poder na Turquia do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, na época islâmico moderado) favoreceu uma retomada mais ampla da cooperação. A década de 2000 caracterizou-se por uma aproximação sem precedentes desde a queda do xá. Os laços políticos se fortaleceram, as visitas oficiais multiplicaram-se, a colaboração no domínico energético confirmou-se, e as trocas econômicas experimentaram um avanço sem precedentes. O volume de comércio passou de US$ 1 bilhão em 2000 para US$ 16,05 bilhões em 2011.1 Em 2012, o Irã foi o maior fornecedor de petróleo e o segundo de gás da Turquia, logo atrás da Rússia.2 Como as sanções norte-americanas afetaram as relações comerciais e financeiras entre Irã e Dubai, a Turquia desempenha o papel de porto seguro para as empresas iranianas. E seu número explode no país. Segundo o Ministério da Economia turco, em 2014 elas eram 3.604.
No plano diplomático, a Turquia, em cooperação com o Brasil, envolveu-se na mediação da questão nuclear iraniana. Mesmo sem sucesso, a iniciativa aliviou o Irã da pressão ocidental. Ao votar contra a Resolução n. 1.929 do Conselho de Segurança da ONU, que impôs novas sanções contra o Irã, em junho de 2010, a Turquia confirmou seu apoio.
1 “Direction of Trade Statistics Yearbook, 2015” [Anuário da Divisão de Estatísticas do Comércio, 2015], Fundo Monetário Internacional (FMI), Washington, DC, out. 2015.
2 “Oil and Gas Security. Emergency response of IEA Countries” [Segurança de Petróleo e Gás. Resposta de emergência dos países da AIE], Agência Internacional de Energia, Paris, 2013.
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*Mohammad-Reza Djalili e Thierry Kellner são, respectivamente, professor emérito do Instituto de Altos Estudos Internacionais e Desenvolvimento de Genebra e professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Livre de Bruxelas (ULB).
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 114 – janeiro de 2017}