Irresponsabilidade e responsabilidade fiscal
É necessário e urgente expandir o gasto público no Brasil, dadas suas históricas carências somadas à destruição gerada pela crise da última década e ao crescimento populacional observado nos últimos anos. Não fazer isso seria uma enorme irresponsabilidade
Nos últimos anos a expressão “responsabilidade fiscal” vem ganhando cada vez mais relevância no debate público, especialmente na mídia, economistas e a classe política. Mas, afinal, o que vem a ser a responsabilidade fiscal?
A palavra “responsabilidade” em geral remete à condição de se medir as consequências dos próprios atos, possuindo, portanto, um caráter moral. Irresponsabilidade seria algo necessariamente ruim, especialmente ao dizer respeito a algo pertencente ao coletivo, como as finanças públicas.
Segundo a posição dominante na grande mídia – ou aquela defendida pelo “mercado” (sic) –, a responsabilidade fiscal seria mais importante do que (por teoricamente ser uma precondição para) a responsabilidade social. Por outro lado, para os setores mais progressistas a prioridade deveria ser a responsabilidade social, dadas as gravíssimas mazelas sociais do país. Em uma posição intermediária, o presidente eleito Lula afirma repetidas vezes que as duas devem andar juntas, recorrendo sempre ao argumento de que sempre foi “fiscalmente responsável”. Mas, independentemente da posição, em que consistiria, em termos técnicos, a responsabilidade fiscal?
Todo governo determina sua trajetória de dispêndios, incorporando gastos diretos em consumo e investimento, e transferências. Transferências consistem em valores monetários creditados a agentes privados, sendo as mais relevantes as da previdência. Por outro lado, o governo também define, junto com o parlamento, a carga tributária e receitas de contribuições (à previdência), bem como eventuais isenções fiscais.
Essas variáveis estão sob o controle do governo, diferentemente dos resultados fiscais. Entre estes, o mais famoso é o déficit público, a diferença entre despesas e receitas. Como o governo controla a carga tributária, mas não o produto sobre a qual ela incide (e, portanto, não a sua receita total), o déficit público vai variar conforme varie o produto agregado. Se o governo gasta mais do que arrecada, ele aumenta sua dívida pública, outro eventual indicador fiscal. Aqui é válido distinguir o déficit público agregado, que é a diferença entre o total de despesas e as receitas, do déficit primário, também medido pela diferença entre despesas e receitas, mas que exclui daquelas os juros e amortizações pagos sobre a dívida pública.

Assim, algumas das diversas formas de analisar as finanças públicas são por meio da evolução dos gastos, dos déficits/superávits públicos (agregados ou primários), e da dívida pública, bem como da relação entre essas variáveis e o PIB. A depender do indicador analisado, um mesmo governo poderia ser tanto fiscalmente responsável quanto irresponsável, bem como os dois ao mesmo tempo.
Por exemplo, no segundo mandato o presidente Fernando Henrique apresentou um crescimento real médio de gastos de 4,1%, logo poderia ser considerado irresponsável. Mas ao mesmo tempo exibiu superávits primários médios de 2,1% do PIB, algo que poderia ser interpretado como um “atestado de responsabilidade”. O mesmo se poderia dizer dos governos Lula, quando se observaram superávits primários médios entre 2% (segundo mandato) e 2,4% (primeiro), e, ao mesmo tempo, aceleração dos gastos, que cresceram a uma média em torno de 5% nos dois mandatos. O primeiro mandato de Dilma também pode ser interpretado de forma ambígua, mas de maneira inversa a seus antecessores. O gasto público cresceu menos do que nos governos de FHC e Lula, mas registraram-se superávits primários decrescentes que, no último ano, se transformaram em déficit.
Analisar as finanças públicas por meio da dívida é uma tarefa ainda mais complexa, dado que nem seu indicador é consensual. Caso se utilize o conceito de dívida líquida, se observaria que, apesar do relativo baixo crescimento dos gastos durante o governo FHC II, a dívida se elevou de 42% para 60% do PIB, enquanto durante os governos Lula a dívida caiu deste patamar (60%) para 38% do PIB, apesar da maior aceleração dos gastos.
Em 2016 aprovou-se o draconiano teto de gastos, emenda à Constituição que proíbe o crescimento real dos gastos públicos por vinte anos. E desde então o título de irresponsabilidade fiscal vem sendo associado, pela grande mídia e demais representantes do mercado, ao crescimento real do gasto público. Todos os outros indicadores, mais relevantes e usuais, foram subitamente abandonados. Por esse critério, vale deixar claro, todas as economias capitalistas teriam sido extremamente irresponsáveis na maior parte do tempo.
Mesmo constituindo uma aberração histórica, o teto prestou-se ao seu objetivo, não admitido, de inviabilizar o crescimento econômico e reduzir o papel do Estado, principalmente em áreas como Educação, Cultura, Esporte, Infraestrutura, Agricultura Familiar, Ciência e Tecnologia. Trata-se de uma missão perversa, especialmente em um país de baixa renda per capita, elevados níveis de concentração de renda e gigantescas demandas sociais.
É necessário e urgente expandir o gasto público no Brasil, dadas suas históricas carências somadas à destruição gerada pela crise da última década e ao crescimento populacional observado nos últimos anos. Não fazer isso seria uma enorme irresponsabilidade, assim como é irresponsável reduzir a questão fiscal a expressões desprovidas de conteúdo e que empobrecem o debate.
Mesmo que a mídia e o mercado ainda insistam com a ideia da manutenção do teto de gastos, qualquer economista que conheça melhor as finanças públicas sabe que isso na prática é virtualmente inviável. Neste momento de reconstrução, é preciso que se faça uma análise sóbria da nossa realidade econômica, sem distorções, para embasar políticas que nos ajudem a sair da atual crise e que apontem para um futuro mais próspero e justo. Nesse sentido, uma opção viável é a elaboração de uma programação fiscal plurianual que dê mais flexibilidade ao governo sem abrir mão da previsibilidade e do controle social.
Carlos Pinkusfeld Bastos é professor associado do Instituto de Economia da UFRJ e diretor-presidente do Centro Internacional Celso Furtado. Luciano Alencar Barros é doutor em economia pelo Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ.