Israel torna-se uma “etnocracia”
O Knesset aprovou, em 19 de julho último, uma lei de valor constitucional definindo Israel como “Estado-nação do povo judeu”. Para o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, esse texto que fundamenta os direitos dos cidadãos israelenses em função de sua origem e crenças é a consolidação ideológica do Estado judeu
“É um momento histórico para o sionismo. Cento e vinte e dois anos depois de Herzl ter publicado [sua visão do] Estado dos judeus,1 estabelecemos na lei o princípio fundamental de nossa existência.” Ao fazer essa declaração em 19 de julho, às 3h35 da manhã, após a aprovação de uma nova lei fundamental pelo Parlamento israelense, Benjamin Netanyahu se considerava ele próprio o fundador do Estado judeu?
De acordo com o primeiro-ministro, “Israel é o Estado-nação do povo judeu, que respeita os direitos individuais de todos os seus cidadãos. No Oriente Médio, apenas Israel respeita esses direitos”. Ora, ao priorizar a condição de judeu na definição de Estado, várias disposições do texto, ao contrário, atentam contra os direitos de 2 milhões de cidadãos não judeus, em grande parte árabes: “Apenas os judeus podem exercer integralmente seu direito natural, cultural, religioso e histórico à autodenominação”, diz a nova lei fundamental. E precisa que “o hebraico é a língua oficial do Estado de Israel”. Igualmente destitui o árabe da qualidade de língua oficial e o coloca à espera de um “estatuto especial que será determinado posteriormente”. Com a ausência de uma Constituição, essa lei fundamental é acoplada ao aparato jurídico atual.
Nenhuma palavra, nem a menor referência à independência do Estado de Israel, proclamada no dia 14 de maio de 1948. E não surpreende: Netanyahu jamais a mencionou em sua obra sobre a história do sionismo.2 Há um silêncio sobre esse texto fundador da jurisprudência do país, lido na ocasião por David Ben-Gurion, o primeiro chefe de Estado de Israel: “O Estado de Israel será aberto à imigração de judeus de todos os países por onde estiverem dispersos; desenvolverá o país em prol de todos os seus habitantes; será fundado sob os princípios da liberdade, justiça e paz ensinados pelos profetas de Israel; assegurará uma completa igualdade dos direitos sociais e políticos a todos os seus cidadãos, sem distinção de credo, raça ou sexo; garantirá a plena liberdade de consciência, culto, educação e cultura”.
Netanyahu também se distancia de Vladimir Zeev Jabotinsky (1880-1940), o pai fundador do sionismo revisionista, nacionalista e antissocialista. Se por um lado o atual chefe do Likud (direita) o cita com frequência,3 por outro sempre omite o fato de que, no fim da vida, em 1940, o dirigente histórico em direitos sionistas se posicionou a favor de um Estado composto por uma maioria de judeus, sob domínio do Império Britânico, em que o presidente judeu teria um vice árabe e todos os cidadãos seriam iguais, independentemente de origem e religião. As comunidades judaicas e árabes, assim como suas respectivas línguas, deveriam dispor das mesmas condições reconhecidas pela lei.4 Secretário do governo Menachem Begin (Likud) de 1977 a 1982 e hoje professor de Ciência Política da Universidade Hebraica de Jerusalém, Arieh Naor revela que “a visão nacionalista liberal de Jabotinsky é totalmente diferente do neoliberalismo extremista da nova lei sobre o ‘Estado-nação judeu’, que nega qualquer direito coletivo às minorias. Essa medida conduz a um governo etnocrático”.
A melhor conjuntura possível
Netanyahu bebe na fonte ideológica moldada por seu pai, Benzion Netanyahu, morto em 2012. Esse universitário – que por um período breve foi secretário de Jabotinsky – desenvolveu, ao longo de sua carreira intelectual, uma teoria catastrófica da história judaica. Ele pretendia demonstrar que o antissemitismo existia desde a Antiguidade, no Egito, muitos séculos antes do cristianismo, e persiste: “Ainda somos ameaçados de exterminação. As pessoas acreditam que o Holocausto passou, mas não”, declarou em uma entrevista concedida em companhia de seu filho para o canal Arutz 2, no dia 7 de fevereiro de 2009. Para ele, o inimigo eram os árabes: “Esta terra é dos judeus, não é para os árabes. Aqui não há lugar para eles, nunca haverá. Eles jamais aceitarão nossas condições”, afirmava ele três anos depois.5 Benzion deixou ao filho a missão de fazer que os israelenses avaliassem bem a realidade do perigo: “Uma das coisas mais graves em Israel é a crença esquerdista de que os árabes renunciaram à determinação de nos destruir”.6 Esses temas foram bastante desenvolvidos nos livros de Benjamin, publicados pouco antes de sua primeira passagem pelo poder (1996-1999).
Sob pressão do presidente norte-americano Bill Clinton, o jovem primeiro-ministro precisou apertar a mão do dirigente palestino Yasser Arafat e estabelecer com ele dois acordos de recuada das forças israelenses de uma parte da cidade de Hebron. Essa concessão – que ele não podia recusar sob pena de acirrar uma crise maior – o fez perder votos junto à direita e junto aos colonos nas eleições legislativas de 1999. Os dirigentes ocidentais acreditaram que esse episódio era um sinal de certo pragmatismo.
Depois, quando Netanyahu se tornou outra vez chefe de governo, em março de 2009, precisou enfrentar Barack Obama. O presidente norte-americano recém-eleito solicitou que Israel reconhecesse a legitimidade palestina e cessasse a construção das colônias. No dia 4 de junho, em um discurso solene, Netanyahu, discretamente, pronunciou pela primeira vez as palavras “Estado palestino”. Em seguida colocou condições reveladoras de sua ideologia: os palestinos devem “reconhecer Israel como Estado do povo judeu”. Em Ramallah, a reação de Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina, foi imediata: “Não! Jamais. Essa ideia jamais avançou nas negociações com o Egito e a Jordânia, nem durante o processo de Oslo”. Abbas lembrou que não há nenhuma definição de Israel nesses termos em sua declaração de independência.
A primeira proposta de lei fundamental sobre esse tema foi depositada no Knesset em 2011 por Avi Dichter, deputado do partido de centro-direita Kadima, que depois se juntou ao Likud. O texto tinha por ambição “reforçar a natureza de Israel como Estado-nação do povo judeu com o objetivo de codificar os valores de Israel como Estado judeu e democrático no espírito de sua declaração de independência”. A direita pretendia definir Israel primeiro como Estado judeu e somente depois como Estado democrático. A esquerda exigia o contrário: “democrático e judeu”, nessa ordem. As discussões duraram até o momento em que Netanyahu considerou que dispunha da melhor conjuntura possível.
No âmbito interno, a coalizão governamental que ele construiu após as eleições de 2015 – a mais à direita na história do país – prossegue com a colonização evitando qualquer crise com a “comunidade internacional”, que, de todas formas, tem protestado de forma branda. No Parlamento, ele mostra sua coerência ideológica perseguindo objetivos comuns que se traduzem em vários textos-chave que visam principalmente reduzir a influência de ONGs na sociedade civil, proibir o boicote das colônias e proibir a criação de estabelecimentos escolares em associações que não respeitem os princípios estabelecidos pelo ministro da Educação, Naftali Bennett, diretor do Lar Judaico, partido sionista religioso e neomessiânico. Essa última lei foi feita sob medida para associações como a Breaking de Silence, de ex-soldados que são contra a ocupação de territórios palestinos, ou de defesa de direitos humanos nos territórios ocupados, como a B’Tselem. Esses elementos de “reformatação” da sociedade judaica seguem integralmente a visão de Benzion Netanyahu.7 Igualmente integrante do Lar Judaico, a ministra da Justiça, Ayelet Shaked, vai para a linha de frente contra a Corte Suprema, considerada muito liberal. Nos próximos meses, os juízes devem examinar vários recursos contra a nova lei, e a ministra já avisou: “Se a anularem, haverá guerra!”.
No âmbito internacional, o primeiro-ministro israelense não poderia imaginar uma situação mais favorável. Donald Trump, grande amigo da direita israelense, está sentado na Casa Branca. Na Europa, Netanyahu pode contar com os dirigentes gregos e cipriotas, com os quais já fechou acordos. E ainda há o apoio infalível dos quatro países do grupo Visegrad (Hungria, Polônia, República Tcheca e Eslováquia), conduzidos pelo húngaro Viktor Orbán, o que permite bloquear eventuais condenações de Bruxelas. A socióloga Eva Illouz salienta a afinidade ideológica profunda de Netanyahu com certos regimes “iliberais”: “Todos se opõem à diluição étnica, religiosa ou racial de seu país”, explica. “Israel serve de modelo às nações que se opõem à imigração e afirmam a supremacia de um grupo étnico, mas ainda reivindicam a democracia – apelação necessária para continuar a usufruir de vários privilégios que o título de democrata confere”, ainda que à custa de renunciar à luta contra o antissemitismo. Nitzan Horowitz, jornalista e ex-deputado do Meretz (esquerda laica e socialista), resume assim o princípio que funda os laços entre dirigentes húngaros e poloneses com Netanyahu: “Perdoem meu antissemitismo, e eu perdoarei suas ocupações [de territórios palestinos]”.8
Antes de sua adoção definitiva em 19 de julho último, por 62 votos contra 55 e duas abstenções, o texto de Dichter sofreu várias modificações. A palavra “democracia” não figura mais, e o artigo que prevê “a criação de localidades sobre bases religiosas ou étnicas” foi reescrito. Agora, a lei diz o seguinte: “O Estado considera o desenvolvimento de implantação judaica um valor nacional e trabalhará para encorajá-lo, apoiá-lo e reforçá-lo”, o que não muda nada seu caráter “racista”, avalia Mordechai Kremnitzer, jurista e ex-diretor adjunto do Instituto Israelense pela Democracia.
Árabes, judeus e drusos se manifestam
Imediatamente após a votação, em sessão plenária, os deputados árabes da Lista Unificada, que dispõe de treze cadeiras, rasgaram o texto da lei e acusaram a maioria de ter estabelecido um regime de apartheid afirmando e reforçando discriminações das quais eles mesmos se fazem objeto. No dia 11 de agosto, chamados por seu comitê representativo, milhares de árabes israelenses tomaram as ruas de Tel Aviv para reivindicar a anulação de um texto que transforma os integrantes dessa comunidade de 1,8 milhão de pessoas (cerca de 20% da população total) em cidadãos inferiores. Eles foram apoiados por numerosos simpatizantes judeus e personalidades de esquerda, entre os quais dois ex-generais. A presença de várias bandeiras palestinas ao lado do emblema israelense fez que Netanyahu declarasse o ato como “a prova que a lei do Estado-nação de Israel é indispensável”.
Já os 150 mil drusos e circassianos9 se consideram traídos. Depois de prestar um sermão de fidelidade ao Estado, realizaram serviço militar obrigatório por três anos. Representando respectivamente 145 mil e 5 mil pessoas (1,62% da população), eles são proporcionalmente mais numerosos a se engajar que os jovens judeus, e 10% entre eles tornam-se oficiais, alguns de patente elevada. Um druso é general de divisão e integrante do Estado-Maior; vários generais de brigadas comandaram importantes unidades de infantaria. Também estão em vários níveis de comando da polícia e serviços de segurança.
No dia 4 de agosto, 50 mil drusos, apoiados por um número equivalente de judeus, manifestaram-se em Tel Aviv bradando “Igualdade! Igualdade!” e “Não somos cidadãos de segundo escalão”. O xeque Mowafak Tarif, chefe espiritual da comunidade, declarou: “Ninguém vai nos ensinar o que é sacrifício, lealdade, devoção. Infelizmente, apesar de nossa lealdade sem ressalvas ao Estado [de Israel], ele não nos reconhece como iguais. O que podem ainda exigir de nós se somos totalmente solidários ao Estado e à sua declaração de independência?”. Os drusos rejeitaram a proposta de Netanyahu para apaziguá-los: a adoção de uma lei ad hoc que define um estatuto especial dentro do Estado judaico, com vantagens econômicas, para os não judeus que fazem serviço militar.
Nos planos religioso, cultural e político, contudo, a nova lei fundamental transforma profundamente a relação entre Israel e as comunidades judaicas da Diáspora. Em agosto, o presidente do Congresso Mundial Judeu, Ron Lauder, lançou um aviso severo ao governo de Netanyahu, acusando-o de “solapar a aliança entre o judaísmo e as Luzes”. “A partir do momento em que ele recusa o valor sagrado da igualdade, muitos de seus apoiadores sentem que ele está dando as costas à sua herança judaica, ao ethos sionista e ao espírito de Israel”, escreveu. “Essas novas políticas não reforçam Israel: elas o enfraquecem e, a longo prazo, colocam em perigo a coesão social, o êxito econômico e seu estatuto internacional. […] Se as tendências atuais persistirem, jovens judeus poderão se recusar a se afiliar a uma nação que discrimina judeus não ortodoxos, minorias de não judeus e integrantes da comunidade LGBT.”10
O primeiro-ministro, contudo, diz sentir-se confortável com as pesquisas. Em um estudo do Instituto pela Democracia,11 52% dos judeus israelenses interrogados se dizem favoráveis à lei, enquanto 40% não a aprovam. Se 60% do conjunto gostaria que o princípio da igualdade fosse incluído no texto, 69% dos eleitores de direita apoiam a versão atual, assim como 72% dos israelenses que se definem religiosos. O eleitorado de Netanyahu está com ele. Ele pode sonhar com eleições antecipadas, com o objetivo, espera ele, de reforçar seu poder.
*Charles Enderlin é jornalista em Jerusalém.