João Grilo, os neoliberais e as contas públicas
Nos dias de hoje, enquanto o grande capital concentra a renda e a riqueza, os trabalhadores sobram e os pequenos empresários se arruínam, desaparecendo, ambos, na multidão de desempregados
João Grilo, sujeito desvalido de qualquer direito, pobre e arguto, no dia do seu traspassamento, afirma: “O senhor não repare não, mas de besta eu só tenho a cara. Meu trunfo é maior do que qualquer santo”. E Jesus pergunta: “Quem é?” João responde: “A mãe da justiça”. Ouvindo a conversa, o diabo ri e retruca: “Ah, mãe da justiça. Quem é essa?” E assim, O auto da compadecida vai ensinando sobre o povo brasileiro. Ariano Suassuna alude, ali, o Brasil real, mostrando, com graça, o abismo despropositado que separa a esperança popular e o sarcasmo dos poderosos.
De fato. No Brasil, o poder econômico tudo pode. Nos dias de hoje, enquanto o grande capital concentra a renda e a riqueza, os trabalhadores sobram e os pequenos empresários se arruínam, desaparecendo, ambos, na multidão de desempregados. Outros ainda empregados veem, sem poder reagir, seus salários corroídos, entrementes se mantêm na formalidade. Por fim, aos informais, já sem direitos ou esperança, não sobra muito mais do que o medo: do “rapa”, do despejo, da doença, da polícia, do futuro.
Os números confirmam essa realidade. Em pesquisa publicada em 2015, Marcelo Medeiros, Pedro H. G. Ferreira de Souza e Fábio Avila de Castro, utilizando dados do Imposto de Renda Pessoa Física, mostraram que, em 2012, apenas os 5% mais ricos da população concentravam quase metade de toda a renda produzida no país. Há poucos dias, outro estudo, agora do Ipea, apontou que mais de 50% da desigualdade no Brasil é explicada pelos 10% mais ricos. São retratos sem retoques da renda concentrada (e do poder) nas mãos de poucos, enquanto a maioria mal consegue pagar suas contas e outros 41% dos adultos (62,9 milhões de pessoas) já estão com o “nome sujo”, sem acesso ao crediário ou financiamento para compras a prazo.
Para os mais ricos, esta situação caótica tem um culpado: o Estado. O excesso de regulação, de impostos, de financiamentos e a redistribuição da renda estariam, de acordo com eles e seus ideólogos neoliberais, na raiz dos problemas. Por isso, segundo essa opinião, a fim de superar tantos dramas e evitar o descontrole, seria preciso diminuir o Estado, restringindo-o às suas funções “necessárias”: justiça (garantia de contratos), ordem pública e alguma infraestrutura fora do alcance da iniciativa privada.
A verdade, no entanto, é dissimulada e os fatos negam essa acusação. A valer, o Estado brasileiro é surpreendentemente pequeno. Por exemplo, a OCDE, órgão multilateral que congrega importantes países, desmentiu, em 2015, os neoliberais ao apontar que o Brasil possui, entre as economias modernas, um dos menores percentuais de empregados públicos em relação ao total de trabalhadores do país. O problema é seu custo que deveras pesa sobre os ombros errados. Os neoliberais, todavia, não parecem interessados neste desequilíbrio e repetem mil vezes, como ladainha, a profissão de fé pelo Estado mínimo.
Gráfico 1 – Empregados públicos em relação ao total de trabalhadores, 2013 (em porcentagem)Fonte: OECD (2015). Government at a Glance 2015. OECD Publishing: Paris.
Há outros fatos que negam a cantilena neoliberal. O mais grave, no entanto, não aparece nos jornais diários. Para descobri-lo é preciso observar as contas públicas do governo central (Tesouro Nacional, Previdência Social e Banco Central) e examinar as receitas e as despesas. Primeiro a receita. Dados da Secretaria do Tesouro Nacional mostram que a arrecadação gerada pelos tributos federais alcançou, em 2010, 21,9% como proporção do PIB. Em 2014, oscilou para 21,1% e ficou em 21,2% do PIB, em 2017. Números estáveis e, portanto, diferentes do alarde que os neoliberais inventaram em jornais e telejornais. As reclamações populares, todavia, são justas por causa da má distribuição dos tributos. Levando em conta as três esferas de governo (União, estados e municípios), o total de impostos indiretos (sobre comércio e produção) representou, em 2017, aproximadamente 14,1% do PIB do país, onerando principalmente as famílias de menor renda. Mais, as contribuições sociais, muitas incidentes sobre a folha de salários (INSS, FGTS, PIS/PASEP, etc.), arrecadaram outros 9,4% do PIB, mais uma vez onerando, sobretudo, os trabalhadores. Já os impostos diretos (sobre renda e propriedade), exatamente os que poderiam incidir sobre os mais ricos, superaram por pouco os 8% do PIB. Nesse contexto, a famosa redução de tributos sobre os ganhos de capital, cujo caráter de jabuticaba os neoliberais sempre esquecem, pesou negativamente sobre a distribuição da carga tributária, intensificando a injustiça da arrecadação pública do Brasil: leve com os ricos e pesada com os mais pobres.
À injusta arrecadação somou-se a desarrazoada estrutura de gastos. O governo central gastou, em 2017, descontando a rolagem da dívida, R$ 1,7 trilhão, segundo informações do portal Siga Brasil do Senado Federal. Desse total, 17,8% (ou 4,6% do PIB) foi gasto com os salários e encargos dos servidores públicos. Outras despesas correntes chegaram a 65,4% (ou 17% do PIB) e os investimentos não alcançaram 1,1% dos gastos (ou 0,3% do PIB). A soma, ou seja, todos os gastos com serviços públicos, investimentos e servidores (da defesa militar ao Bolsa Família), consumiram 84,3% do orçamento (ou 21,9% do PIB). Quase todo o resto dos gastos do governo central, cerca de 12% (ou 3,1% do PIB), foram despendidos com pagamentos de juros da dívida pública.[1] De outro modo, R$ 12 de cada R$ 100 gastos pelo governo central foram usados para pagar juros,[2] gerando uma despesa onze vezes maior do que os investimentos realizados pela União.
A partir daqui o despropósito entre a esperança popular e o sarcasmo dos ricos do país se torna evidente. Os ideólogos neoliberais pressionam pela diminuição do Estado brasileiro, mas apenas sobre aqueles gastos que se destinam aos mais pobres e de renda média. Nesse sentido, propuseram e aplaudiram a proposta de emenda constitucional n.55 (PEC 55) que congelou parte dos gastos do governo central por vinte anos, afetando apenas as despesas primárias (investimentos e todo tipo de gastos correntes, inclusive servidores), deixando de fora “estranhamente” as despesas com a dívida pública, seja na forma de juros, amortização ou outro. Com isso, bloquearam qualquer esforço para elevar os gastos com saúde, educação, pesquisa, tecnologia e infraestrutura, mas permitiram aumentar as despesas financeiras, como os juros, que interessam principalmente ao restrito clube dos ricos do país. Para legitimar o escárnio, acusam o Estado brasileiro de ser grande demais, repetindo a cantilena onde podem.
Mas a pior consequência dessa outra injustiça ainda não apareceu no horizonte da discussão nacional. Ao congelar os gastos primários com a PEC 55, a proposta dos neoliberais inviabilizará setores públicos importantes como educação, marcadamente a superior, saúde, infraestrutura e até mesmo a segurança pública. O sucateamento desses serviços levará, em poucos anos, à crítica dos mesmos neoliberais sobre a ineficiência e a ineficácia da gestão do Estado sobre essas atividades. Começarão, então, a propor a privatização total do ensino, principalmente das universidades federais, da saúde pública (acabando com o SUS) e farão das concessões as únicas formas de investimento em infraestrutura. De outro modo, não se trata apenas de garantir a transferência, agora, de dinheiro público para os grupos mais ricos e poderosos do país, mas, sim, de assegurar, no futuro, uma nova onda de privatizações e negócios que renderá bilhões de reais em lucros e dividendos (que não pagam imposto de renda).
Nesse futuro, realizado o descalabro, sem equipamentos, com os recursos drenados pelo ralo financeiro e pressionado por lobbies poderosos, o governo central perderá historicamente a capacidade de fazer política de desenvolvimento, industrial, de pesquisa e de distribuição de renda, o que, em resumo, condenará o país, mais uma vez, a posição subalterna, de subdesenvolvido, perante um mundo que se moderniza rapidamente e se prepara para viver a revolução produtiva da indústria 4.0.
As eleições de 2018, por tudo isso, são críticas, apesar da maioria dos brasileiros parecer desatenta à gravidade do momento. Irritados com os desmandos históricos da política nacional, alguns falam em votar em quem lhes reverbera a raiva e expõe, com clichês e histrionismo, o que, na verdade, exige seriedade e responsabilidade para com as novas gerações. Ao mesmo tempo, os mais ricos riem e pagam bem para quem distorcer o debate, burlando a todos para vencer (novamente) a disputa pela renda e a riqueza do Brasil. Sua máquina de propaganda, disfarçada de jornais e telejornais isentos, reforça as ilusões e culpa o “Estado” por tudo, esquecendo sempre que governos tendem a refletir os interesses de quem tem mais poder na sociedade.
*Ricardo Luiz Chagas Amorim é pesquisador associado ao Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra e sócio da Termo Valor Consultoria.
[1] Há especialistas que afirmam que o valor pago dos juros está subestimado por causa da aplicação de correção monetária sobre a dívida nominal e da contabilização dessa correção na rubrica amortização, quando, o correto, seria o registro em juros, contabilizando juros nominais ou totais. Ver Auditoria Cidadã da Dívida e Anfip.
[2] Para registro, apenas em 2017, a dívida pública da União cresceu R$ 591,3 bilhões, praticamente o mesmo valor que o ministro Henrique Meireles prometeu economizar, em dez anos, com a reforma da previdência.