A Justiça no centro da crise política
Mesmo composto por grupos distintos, instâncias e atribuições específicas, o Judiciário hoje é um ator tão conhecido como completamente envolvido nas decisões políticas do Brasil. E, sim, isso muda o jogo. Sejam quais forem os rumos que o país vai tomar nos próximos anos, essa conta também recairá sobre a Justiça
Hoje, praticamente todos os temas políticos debatidos no país passam pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Efeito, entre outras questões, do que a academia chama de “judicialização da política”.1 O fato é que a Constituição Federal de 1988 desenhou um modelo de sistema de justiça com um protagonismo ímpar. De todos os integrantes desse sistema, que engloba, entre outros, Ministério Público e Defensoria Pública, o Judiciário é sem dúvida um poder que deixou de orbitar à margem da tomada de decisões para se instalar no centro da crise política brasileira.
Só nos primeiros meses do ano, o julgamento do ex-presidente Lula no Tribunal Regional Federal da 4a Região (TRF4) e as pautas sobre o auxílio-moradia demonstram como o antes “ilustre desconhecido” Judiciário não pode mais ganhar essa denominação. Voltando um pouco no calendário, na virada de dezembro de 2017, foi o indulto de Natal que bateu à porta do Supremo. As pautas são diversas e podemos enumerá-las à exaustão. O foco atual quase sempre recai sobre o STF e a Operação Lava Jato, mas seria uma inverdade dizer que os holofotes se limitam a ambos.
Em 2018, certamente a Justiça Eleitoral ganhará destaque e, para completar a exposição, a cobertura sobre a intervenção federal/militar no Rio de Janeiro dá conta de uma nota de apoio às Forças Armadas assinada por membros da magistratura e do Ministério Público integrantes do Movimento de Combate à Impunidade (MCI). A nota não é um fato extraordinário ou isolado de um movimento desconhecido. Embora alguns ministros do Supremo tenham dado declarações questionando a ação, o Judiciário está imbricado nela, como se pode ver pela admissão de dispositivos jurídicos como os “mandados coletivos” de busca e apreensão, do ponto de vista jurisprudencial, e pelo apoio institucional dado à intervenção, verificado em reuniões como a ocorrida no Palácio da Guanabara, no dia 17 de fevereiro. Na ocasião, o presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o desembargador Milton Fernandes de Souza, colocou o Judiciário estadual à disposição do interventor.
Muitos pontos de análise podem ser levantados com base nesse quadro, em especial a velha tensão relativa ao pacto entre os três poderes e o papel do Judiciário como árbitro. Em outros termos: como recorrer a uma instituição que já se posicionou? De todas as questões, aqui me concentro em uma: mesmo composto por grupos distintos, instâncias e atribuições específicas, o Judiciário hoje é um ator tão conhecido como completamente envolvido nas decisões políticas do Brasil. E, sim, isso muda o jogo. Sejam quais forem os rumos que o país vai tomar nos próximos anos, essa conta também recairá sobre a Justiça.
Visibilidade tardia
Talvez seja difícil perceber a importância dessa observação em primeiro plano, mas um breve panorama histórico ajudará nesse exercício. Grande parte dessa “descoberta” pública só ocorreu no final da década de 1990 (vide CPI do Judiciário, em 1999) e ao longo dos anos 2000 (vide Reforma do Judiciário, em 2004), não apenas pela demora em sentir os efeitos da Constituição de 1988, mas também porque, sem ser um poder eletivo e estando distante dos questionamentos relativos à democratização do país e dele próprio – enquanto instituição –, o Judiciário passou ileso às faturas cobradas no período de abertura. Ao contrário de outros países da América Latina, como a Argentina, que teve uma Justiça de transição atuante, o Brasil até hoje se esquiva de prestar contas sobre a ditadura militar.
Com o Ato Institucional n. 2, o AI-2, o general Castelo Branco transferiu os processos políticos da Justiça comum para a Justiça militar. O AI-2, baixado em outubro de 1965, dava início à mudança que seria solidificada em 1967, com a entrada em vigor da nova Constituição e, sobretudo, com a emissão do Ato Institucional n. 5, o AI-5, que em dezembro de 1968 suspendeu até mesmo a apreciação de habeas corpus de crimes políticos, crimes contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. É claro que o Judiciário era parte da estrutura do Estado e do próprio regime ditatorial, e isso merece um olhar acurado, mas, do ponto de vista de uma exposição mais ampla, a Justiça comum ficava fora da “jogada”. Estava à margem e não tinha a visibilidade de agora.
Esse e outros fantasmas pareceram ressuscitar diante da aprovação pelo Congresso Nacional, em outubro de 2017, da Lei n. 13.491, que transfere da Justiça comum para a militar o julgamento de homicídios cometidos por militares durante operações especiais de segurança pública em território nacional, e também com declarações como a do comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, sobre a preocupação de que se instale uma nova “Comissão da Verdade” após o fim da intervenção. Voltando ao ponto da exposição e do jogo de poder, nos anos 1960, 1970 e 1980, qualquer análise midiática e política certamente incluiria os militares numa relação direta com Executivo e Legislativo. Agora, além da caserna, o Judiciário e Ministério Público fazem, literalmente, parte da rede.
Essa não é uma ironia, é mesmo uma avaliação técnica. O pesquisador Fábio Malini2 fala que, se procuradores e juízes já brilharam no Twitter, chegou o momento em que militares entraram no palco. Fazendo análise de cartografia de redes políticas brasileiras desde 2012, Malini afirma que nunca generais e o Exército apareceram como atores relevantes em seus mapas. Agora, temos Executivo, Legislativo, Judiciário e militares todos no mesmo “balaio”.
Ainda que caibam diversas distinções, ratifico meu ponto: não importam as pautas, se das questões mais classistas aos bastidores palacianos, passando pela agenda de governo (que agora sai da Reforma da Previdência e se concentra na segurança pública), a Justiça brasileira está presente. Nesse sentido, grosso modo, mesmo sabendo de todas as tensões internas, pode-se falar de uma imagem de Justiça que aparece na ponta como “una”. Lá no final da linha, pode-se supor que a opinião pública enxergue “uma Justiça” e só depois passe a lhe distinguir os segmentos. Indo além, no centro dessa hipótese, por tudo já elencado aqui, é pertinente admitir que o que surge dessa exposição é mesmo uma Justiça que se comporta como ator político. E isso tem um preço.
Recados públicos
Se fizermos um recorte sobre a atuação política da Justiça, talvez o foco no STF nos dê a amostra mais adequada. Muitas críticas públicas se voltam para o comportamento díspar do Tribunal, julgando casos semelhantes de forma diversa. Em um artigo na Folha de S.Paulo (28 jan. 2018), Conrado Hübner Mendes, professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP), fala que o Supremo passou de poder moderador a poder tensionador, agredindo a democracia brasileira. Seleciono algumas indagações: “Se Delcídio [do] Amaral (PT-MS), Eduardo Cunha (MDB-RJ), Renan Calheiros (MDB-AL) e Aécio Neves (PSDB-MG) detinham as mesmas prerrogativas parlamentares, por que, diante das evidências de crime, receberam tratamento diverso? Se houve desvio de finalidade no ato da presidente Dilma Rousseff (PT) em nomear Lula (PT) como ministro, por que não teria havido na conversão, pelo presidente Michel Temer (MDB), de Moreira Franco (MDB) em ministro?”.
Deixo as perguntas no ar e desloco o raciocínio do plano normativo e decisório para o da comunicação. Também do ponto de vista midiático, os recados que o Supremo dá são diversos e denotam, sim, um comportamento político. Vejamos alguns exemplos:
- Em novembro de 2015, após a divulgação da gravação do ex-senador Delcídio do Amaral (PT-MS), revelando que era preciso “centrar fogo” no STF (o áudio citava os ministros Teori Zavascki, Dias Toffoli, Edson Fachin e Gilmar Mendes), o Supremo reagiu de forma imediata, determinando a prisão de Delcídio. Na sessão que homologou a prisão, a ministra Cármen Lúcia foi enfática ao dizer que os corruptos não passarão sobre os juízes. Além disso, tanto Toffoli como Mendes se pronunciaram negando qualquer interferência.
- Em março de 2016, a escuta liberada pelo juiz Sérgio Moro, em que o ex-presidente Lula chamava o Supremo de acovardado, teve seu conteúdo criticado no dia seguinte pelo ministro Celso de Mello. O decano do STF se referiu às declarações de Lula como uma ofensa grave à dignidade institucional do Judiciário, um insulto inaceitável e passível de repulsa. No dia seguinte, em um evento em Manaus, o presidente do Tribunal, Ricardo Lewandowski, também criticou as declarações, afirmando que o Supremo jamais esteve acovardado. Contudo, em outro episódio de natureza semelhante, ocorrido na sequência, pode-se ver uma postura distinta por parte dos ministros.
- Em maio de 2016 houve a divulgação dos áudios de Romero Jucá (PMDB-RR), Renan Calheiros (PMDB-AL) e José Sarney (PMDB-MA), todos fazendo menções diretas ao Supremo em uma atitude de cumplicidade com o impeachment que se combinaria com o arrefecimento da Lava Jato (a fala de Jucá foi repetida à exaustão na imprensa e nas redes sociais, referindo-se a uma “mudança” no governo federal que resultaria em um pacto para “estancar a sangria”, um acordo “com o Supremo, com tudo”). Mesmo diante da repercussão das gravações, houve apenas uma nota oficial do STF e uma declaração de Luís Roberto Barroso publicada no El País3 negando qualquer interferência. Nenhuma fala em plenário ou reação mais contundente.
Os três episódios tiveram similaridades, mas receberam respostas distintas e, como o debate não se restringe ao campo jurídico, o STF vê-se diante do aprendizado de que a cobrança se dará também em outra ordem. Ao largo de toda a discussão sobre a legalidade dos vazamentos, quando se cruza a fronteira do campo político, a questão da opinião pública entra em cena. E os vazamentos são um exemplo bem representativo dos diversos momentos em que a Justiça passou a ter um papel político na crise, tendo de se posicionar publicamente sobre ela, ingressando em uma disputa midiática.
Quem não se lembra das discussões entre os ministros Cezar Peluso e Eliana Calmon sobre os poderes de investigação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)? Ou de quando o CNJ levantou a bandeira de combate ao nepotismo? Cito esses exemplos por seu conteúdo ligado à atuação da própria Justiça e para destacar que, ainda assim, nem de longe esses casos estavam restritos aos aspectos jurídicos. Aliás, nenhum dos exemplos levantados aqui está. No fim das contas, é a imagem da Justiça que aparece.
Posição e cobrança
A gama de exemplos levantados é, sem dúvida, extensa, mas sua amplitude é proposital. O que ela demonstra é que em diversos planos o Judiciário (e não apenas ele, o Ministério Público também entra nessa conta, embora com suas peculiaridades) passa a ser observado. Tecnicamente, ele foi agendado. É parte da agenda midiática e pública. Mas não é apenas isso. Ele também está ligado a um enquadramento, a um framing. Ou seja, mostra-se e o faz de determinada forma. Essa forma é política e seletiva. Por que com uns e não com outros? Por que dessa forma e não daquela? Por que veloz nesse processo e devagar naquele? Essas são perguntas que começam a ser feitas por uma opinião pública que passa não só a reconhecer a Justiça, mas também perceber sua maneira de agir, seu comportamento.
Com isso, questões históricas sobre a falta de democratização da Justiça aparecem. Contudo, deve-se ressaltar que elas não surgem como algo passado, mas estão na conta do dia de quem segue os ministros do Supremo no Twitter, de quem vê a cobertura política (sim, o Judiciário hoje está completamente inserido nas editorias de política), de quem assiste às sessões do Supremo na TV Justiça ou as vê no YouTube e, agora também, de quem vai acompanhar de perto as pautas da segurança pública (do sistema carcerário carcomido ao desenrolar da intervenção no Rio de Janeiro). A Justiça brasileira está nas manchetes.
Todo esse emaranhado talvez leve as instituições do sistema de justiça a perceber que essa não é uma função acessória. Ao embarcar na agenda do Executivo e do Legislativo, ou mesmo de determinados grupos de interesse e pressão, o Judiciário se acopla a eles. Isso acontece nos debates da cúpula, mas é bem provável que, com a questão da segurança nacional em pauta, as cobranças explodam também nas questões mais cotidianas da sociedade.
Em dezembro de 2015, em um artigo aqui para o Le Monde Diplomatique Brasil,4 arrematei meu raciocínio afirmando que “quem se expõe acaba sempre tendo de responder”. É fato. O que digo agora é que não se trata de mera exposição; ao assumir determinada posição, a Justiça será cobrada por ela. Na América Latina como um todo, o empoderamento do Judiciário foi uma aposta num sistema de garantias e direitos que se antagonizasse ao horror dos truculentos regimes militares. Agora, a Justiça está diante de um duplo impasse: lidar com questões que traz de seu próprio passado e com uma necessidade urgente de democratização interna, e lidar com posicionamento político em relação aos outros poderes e com a missão de atuar nessa nova democracia. Há um imenso risco de a Justiça, que tanto tentou se colocar como heroica e apolítica, tomar o lugar inverso. A relação com a opinião pública pode ser vista à parte, mas o que ela talvez faça de mais potente seja expor esse dilema e sua devida fatura. Um Judiciário político que escolhe um lado arcará com as consequências dessa escolha.
Grazielle Albuquerque é jornalista e doutoranda em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e foi visiting doctoral research no German Institute of Global and Area Studies (Giga), em Hamburgo. Seu trabalho se volta para a atuação do sistema de justiça, em especial para sua interface com a mídia.