Juventude fora de controle
Quando se trata de imigrantes, os conservadores culpam os pais pelos maus modos dos filhos. Mas o fato é que o trabalho nas fábricas, que antes funcionava como elemento disciplinador, já não atua mais. Devido à precarização das relações profissionais, os jovens estão agora soltos nas ruas, para o que der e vier
Desde o final da década de 1990, a “crise de autoridade” tem servido de lugar-comum para explicar os problemas da violência e da delinqüência da sociedade francesa. Tornou-se até um dos assuntos prediletos do presidente Nicolas Sarkozy, que em janeiro de 2007 comentou suas impressões: “Abaixo a autoridade!’ Esse era o lema de 1968. Isso significa dizer ‘nada de filhos obedientes aos pais’! Superioridade do professor diante do aluno? Submissão à lei? Poder da polícia? Moral, polidez, cortesia, respeito pelos mais velhos, pela mulher? Tudo isso acabou!”.
Sarkozy não é o único a fazer críticas duras. Para Gérard Larcher, que dirigiu o Ministério do Emprego, do Trabalho e da Inserção Profissional dos Jovens durante o governo do primeiro ministro Dominique de Villepin (2005-2007), os motins ocorridos na França entre outubro e novembro de 2005 resultaram da falta de limites e da ausência de autoridade familiar. Indo além, ele relaciona diretamente a situação conflituosa com a prática da poligamia entre algumas das culturas africanas que desembarcaram na França. Seguindo essa linha de pensamento, inúmero intelectuais já invocam a “crise do modelo parental magrebino”1 e fazem um apelo para que a República reaprenda a punir.
Na maioria das vezes, tais visões oscilam entre uma versão conservadora, em que as famílias populares ou de migrantes são incapazes de educarem seus filhos, e uma miserabilista, onde os pais aparecem “humilhados” e tornam-se omissos por força das circunstâncias. O ponto comum entre essas abordagens está no fato de que se limitam a apelar para a intervenção dos poderes públicos, com o intuito de restaurar uma autoridade parental cuja debilidade seria responsável por muitos males. Nenhuma delas apresenta alguma solução concreta para o futuro ou traz uma análise real de como se deu o exercício desse poder familiar anteriormente. E nem poderia, pois foi o trabalho não qualificado, muito mais que a ação das famílias, que disciplinou as frações mais turbulentas das classes populares durante um longo tempo. Para os jovens sem eira nem beira – os “blousons noirs”, os “loubards” e os “vadios” da França de então –, o primeiro emprego era uma fase transitória entre a “cultura da rua”, própria a essas sociabilidades juvenis, e uma cultura operária, que depois se tornaria a sua. Ao mesmo tempo em que a fábrica incorporava largamente as normas e os valores desses jovens, estabelecia um claro limite entre o aceitável e o inaceitável, funcionando como uma verdadeira instituição de “normatização”, especialmente porque oferecia a possibilidade de projeção de um futuro palpável. Dessa forma, o operário sentia-se seguro para fundar uma família e conceber “projetos” em longo prazo, tais como férias e casa própria. Para definir esse cenário em apenas uma palavra, podemos dizer que os jovens eram “enquadrados”.
Um dos efeitos paradoxais da flexibilização dos estatutos profissionais, do aumento da precariedade e do crescimento das desigualdades econômicas, instaurados desde os anos 1980, é que elas reintroduziram, de maneira quase automática e sem dúvida inevitável, as mesmas formas de indisciplina presentes nos primórdios da revolução industrial. De fato, a indeterminação quanto ao futuro enclausura os indivíduos em um presente que se ajusta ao conjunto das oportunidades apresentadas a eles, lícitas ou não.
Mas hoje, ao contrário do século XIX, quando essa situação era generalizada nos meios populares, as desordens urbanas, pequenas delinqüências e “virações” cotidianas freqüentes são mal vistas porque materializam a cisão entre os “velhos operários” e os “jovens sem inserção” escolar ou profissional. Os primeiros, vivendo sob o duplo efeito de sua vulnerabilidade social e do envelhecimento, vêem fragilizado o controle que exerciam sobre os segundos, mesmo tratando-se de seus próprios filhos. A ocupação dos espaços públicos, os conflitos na vizinhança e os comportamentos que contrariam as normas locais lembram, a cada instante, essa inversão das relações de forças. Conforme o caso, a saída foi o abandonar o bairro, resguardar-se no espaço doméstico e, no limite, apelar às autoridades.
Foram essas atitudes que provocaram a “virada da segurança pública” entre os principais partidos, tanto os de direita como os de esquerda. Confrontados com um aumento das tensões em nível local, observando uma erosão contínua de seus resultados eleitorais nos meios populares e, simultaneamente, o crescimento regular do partido de extrema-direita Front National, inúmeros dirigentes chegaram à conclusão de que reconquistariam o eleitorado perdido apenas se endurecessem suas políticas de segurança. Essas análises repousam sobre o pressuposto de uma “personalidade autoritária” particularmente ativa entre a classe trabalhadora2. Tal filosofia, implícita nos programas que visam combater a criminalidade, supõe que as camadas populares se revelariam inflexíveis com as minorias, seriam submissas à autoridade e mais repressoras que os demais grupos sociais. Há muito tempo as ciências sociais invalidaram essas asserções, mas nem por isso elas deixaram de ser reiteradas. Afinal, é mais fácil acreditar que os setores populares demandam mais firmeza diante dos “delinqüentes”, das “famílias monoparentais” ou dos “imigrantes”, do que entender a competitividade cotidiana em que estão inseridos. Em um contexto de precarização generalizada, é justamente essa concorrência pelo emprego não qualificado e pela habitação social, por exemplo, que permite compreender as tensões verbalizadas sob formas racistas ou policialescas.
Daí advém as diversas medidas que reforçam o espectro das intervenções judiciárias, morais ou de segurança. Doravante, não apenas a polícia e a justiça são chamadas a regular condutas e comportamentos que antes não eram de sua alçada, mas também a “autoridade parental” tornou-se objeto de política pública. Dos conselhos sobre os “direitos e deveres das famílias” às chantagens das prestações sociais, trata-se de levar, e até mesmo coagir, as famílias a sufocarem a indisciplina de seus filhos.
Esse novo paternalismo autoritário merece atenção. Há mais de um século, a Revolução Industrial conheceu problemas semelhantes. O significativo êxodo rural e a conseqüente concentração de trabalhadores desenraizados nas cidades destruíram as formas tradicionais de controle, baseadas na proximidade e na personalização da autoridade. A principal preocupação das elites foi, então, criar uma disciplina no próprio trabalho, enquanto buscavam combater as inúmeras instabilidades geradas pelo desenvolvimento econômico, tais como as superpopulações urbanas, a delinqüência e o alcoolismo. Simultaneamente, procuravam barrar o avanço das reivindicações socialistas, ocupadas em transformar profundamente a ordem.
Para o plano surtir efeito, os operários tinham que trabalhar. Daí surgem as campanhas contra o alcoolismo, por exemplo, que culminaram na Inglaterra com o fechamento dos bares a partir das 23h ou, na França, com a interdição do absinto e a construção médica e moral de sua periculosidade. Porém, essas medidas ainda não garantiam que os empregados exercessem suas funções corretamente. Assim, o controle dos tempos e dos ritmos de trabalho foi um dos vetores mais importantes para enquadrar as condutas operárias, não apenas na fábrica, mas também fora dela3. Tratava-se de restringir ao máximo a ociosidade (“mãe de todos os vícios”) e a imprevidência ligadas à intermitência do trabalho. Daí derivaram todas as tentativas de limitar a mobilidade dos funcionários, seja de maneira coercitiva, seja oferecendo contratos de longa duração.
Para muitos dos reformistas sociais, tais políticas pareciam um instrumento privilegiado para a aquisição de hábitos “morais” pelas classes populares – acima de tudo a responsabilidade e a previdência – vinculando-as à melhoria da justiça social4. Assim, referindo-se às primeiras moradias cedidas pelo Estado, o ex-senador Jules Siegfried (1837-1922) afirmou: “queremos fazer as pessoas felizes e, ao mesmo tempo, conservadoras? Queremos combater a miséria e os erros socialistas? Queremos garantir a ordem, a moralidade, a moderação política e social? Criemos cidades operárias!” 5.
Essa dupla dimensão – melhoria das condições de vida e garantia da ordem – explica o sucesso das políticas sociais, reforçado depois da Segunda Guerra Mundial pela ascensão do dirigismo de Estado, da existência de um movimento operário forte e estruturado e do crescimento econômico capitaneado pelos governos. Mas esse quadro não existe mais. A crise econômica e as mutações do capitalismo pós-fordista, arrimadas pelos programas de reforma liberal do Estado, redefiniram amplamente as condições disciplinares das camadas populares, que não concordaram com as mudanças. E da mesma maneira que os reformadores sociais do século XIX tentaram assentar uma nova ordem social, os governantes do início do século XXI apelaram ao tema da segurança para combater os efeitos das desregulações múltiplas que afetam as classes mais baixas. A teoria do “pequeno delito”6, o toque de recolher para os menores, a video-vigilância, os decretos anti-mendicidade e também a responsabilização dos pais diante das infrações dos filhos são exemplos dessas novas tecnologias de Estado, depositárias da esperança de paz social.
Ora, é pouco provável que esse tipo de disciplina funcione. Sabe-se, desde Max Weber, que o assento da autoridade é proporcional à legitimidade que têm sobre seus seguidores, isto é, às contrapartidas que é capaz de oferecer7. Portanto, parece em vão esperar que a ordem seja garantida pela simples exacerbação das diferenças entre os “bons” e os “maus” cidadãos e insistência sobre a “responsabilidade individual” de cada um.
As tensões e desordens resultam, ao contrário do que muitos pensam, das incoerências inscritas no próprio bojo dos modelos de crescimento que foram escolhidos há cerca de trinta anos. São contradições nas quais o esforço de alguns para garantir a ordem é destruído pela desordem das próprias existências. Insegurança e insegurança existencial são indissociáveis. Em outros termos, é só a partir de uma reflexão a respeito das novas condições das classes populares que se pode encontrar os meios de instaurar uma ordem social mais harmoniosa. E não evocando o fantasma da perda da autoridade, velha figura imposta pela retórica conservadora e que possui gloriosos ancestrais. Apesar das semelhanças, não foi Nicolas Sarkozy quem proclamou: “nossa juventude é mal-educada, ri-se da autoridade e não tem nenhuma espécie de respeito para com os mais velhos. Hoje, nossas crianças não se levantam quando vêem um idoso entrar, respondem a seus pais e passam o tempo todo tagarelando ao invés de trabalhar”. Foi o filósofo grego Sócrates, no século V antes de nossa era….
*Laurent Bonelli é integrante do grupo de análise política da Universidade Paris 10 – Nanterre. Publicou La France a peur. Une histoire sociale de l’insécurité, Paris, La Découverte, 2008.