Koreatown: Entre a cidade de enclaves e a urbe cosmopolita
O projeto para se criar uma “Koreatown” no Bom Retiro revela não somente a necessidade de se prestar a devida atenção à presença de atores internacionais que desejam participar da gestão da cidade, como também à insistência em se considerar ações de intervenção urbana como fórmula para solucionar os problemas das áreas centrais de São Paulo
Mais uma vez o bairro do Bom Retiro, em São Paulo, se vê diante de uma nova proposta de intervenção urbanística. Desta vez, a proposta parte do próprio governo da Coreia do Sul, por meio de seu novo cônsul-geral, Insang Hwang. Desde que assumiu o posto, o cônsul vem apresentando o projeto a autoridades da Assembleia Legislativa de São Paulo, Câmara Municipal de São Paulo, Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Subprefeitura da Sé, Conselho de Segurança do Bom Retiro e Delegacia de Polícia da 1ª Seccional/Centro, conforme informa o site do Consulado Geral da República da Coreia em São Paulo. Chamada pelo Consulado ora como “projeto de revitalização”, ora como “projeto de embelezamento,” a proposta de intervenção só veio a público algumas semanas atrás, por meio de um artigo no jornal Folha de S. Paulo.
Na matéria, o cônsul-geral informa que a proposta compreende: a instalação de lâmpadas nas cores da bandeira coreana – azul e vermelho – em algumas vias entre as ruas José Paulino e Guarani; a execução de murais e instalação de esculturas em alguns pontos do bairro; a adição da palavra “Coreia” ao nome da estação de metrô Tiradentes; a adição de uma segunda denominação à rua Prates como rua Coreia; o apoio à instalação de uma nova edificação para a Polícia Militar nas proximidades da Rua José Paulino; e a desocupação da área próxima à Igreja Católica Coreana São Kim Degun onde estão localizados pequenos negócios voltados à reciclagem de materiais, chamados no projeto como “ferro-velhos.” O principal objetivo dessas ações, segundo o cônsul-geral, seria o de promover o Bom Retiro como bairro coreano e ao mesmo tempo amenizar a insegurança da área, que “tem sido o maior obstáculo para o desenvolvimento local.”
Alguns dias depois, uma declaração da Casa do Povo, apoiada por outras organizações com atuação na região – Teatro de Contêiner Cia. Mungunzá, Instituto Criar, Centro de Convivência É de Lei, coletivos Tem Sentimento, Mitchossó, Mulheres da Luz e ainda a empresa de confecção Fit – contra-argumenta que “o Bom Retiro é de todo mundo,” “é plural,” “é coreano porque é boliviano, paraguaio, peruano, nordestino, judaico, armênio, grego, sírio-libanês, italiano, inglês, português… ou seja, verdadeiramente cosmopolita, mutante e paulistano. Fixar e rotular a sua identidade é reduzir —privatizar— a sua tão rica diversidade, apagar sua história, excluir boa parte da sua população e acabar com o próprio Bom Retiro”. Representantes da Casa do Povo concordam que a região sofra com uma manutenção precária da ambiência urbana com relação à iluminação, mas para eles isso não justificaria transformá-la em uma “Koreatown”.
Bom Retiro/Koreatown/Little Seul/Nova Luz/Luz Cultural
Não é de hoje que projetos de revitalização na região são envoltos em controvérsias. Em 2017, um projeto semelhante em parceria entre empresas sul-coreanas e a prefeitura de São Paulo, também foi apresentado logo no início da gestão do então prefeito João Dória. O projeto à época propunha ações como: a recuperação de áreas verdes, praças, calçadas e sinalização; o reforço da manutenção e limpeza da região; a implantação de uma creche; o investimento em iluminação; e a instalação de câmeras de segurança no bairro. E assim, por meio de tais obras, a denominação “Little Seul”[1] seria acrescentada ao nome do Bom Retiro. O projeto não foi levado adiante, mas o seu retorno agora como proposta para se criar uma “Koreatown” revela não somente a necessidade de se prestar a devida atenção à presença de atores internacionais que desejam participar da gestão da cidade, como também à insistência em se considerar ações de intervenção urbana como fórmula para solucionar os problemas das áreas centrais de São Paulo.
Desde a década de 1980, as áreas centrais sofrem com um certo esvaziamento diante das exigências socioeconômicas contemporâneas, que elegeram as regiões das avenidas Paulista e Engenheiro Luís Carlos Berrini para suas operações financeiras e corporativas. Desde esta época, o Bom Retiro, por exemplo, vem sendo perpassado por projetos que se propõem a “revitalizar” a área por meio de ações de renovação urbana, a começar com o “Luz Cultural”[2]. Sob a iniciativa do governo estadual paulista, o projeto “Luz Cultural” privilegiou a instalação de equipamentos culturais, como a Pinacoteca do Estado, o Museu da Língua Portuguesa e a Sala São Paulo, em bens imóveis de importância histórica, que na ocasião foram então restaurados e reconvertidos. Nos anos 2000, a prefeitura de São Paulo, nas administrações de José Serra e Gilberto Kassab, propôs o polêmico programa de concessão pública chamado “Nova Luz,” que vinculava uma série de transformações urbanísticas em parceria com empresas privadas, com a promessa de também solucionar a questão da presença de usuários de substâncias psicoativas na área popularmente denominada Cracolândia. O projeto “Nova Luz” acabou não sendo implementado por completo, mas a associação entre a questão social e de saúde relacionada ao uso do crack e projetos urbanísticos volta e meia alimenta o repertório de políticas dos poderes públicos para a região. É neste contexto conturbado de sucessivos planos de revitalização urbana, nem sempre executados em diálogo com a sociedade mais ampla, que as propostas de tornar o bairro do Bom Retiro em “Little Seul” ou “Koreatown” acabam sendo englobadas.
A diversidade do Bom Retiro
O que todas estas propostas de intervenção urbanística não levam ou levaram em conta é justamente todo o histórico de formação da área do Bom Retiro e as diferentes presenças humanas atreladas a ele, que deveriam ser consideradas como ponto de partida. Historicamente, o Bom Retiro tem recebido as mais variadas populações desde pelo menos a instalação da Estação da Luz. Por esta estação, inúmeros migrantes internacionais e nacionais chegaram à São Paulo. Num primeiro momento, chegaram italianos, espanhóis, portugueses, russos, gregos, pessoas provindas do leste europeu e de países árabes, até pelo menos a década de 1950. Depois, a partir das décadas de 1960 e 1970, vieram migrantes vindos de todo o Brasil, principalmente do Nordeste do país e a seguir, do interior do estado de São Paulo, conforme o alcance do sistema ferroviário foi se reduzindo. Mesmo assim, migrantes internacionais continuaram a afluir ao Bom Retiro por meio de suas redes de relações pessoais, trazendo sul-coreanos, bolivianos, peruanos e paraguaios à cidade. E hoje também trazem cidadãos da China e de diversos países do continente africano. Toda essa diversidade pode ser identificada ao se interagir com as pessoas que residem, trabalham, transitam ou estudam no bairro, seja ao visitar qualquer das lojas do comércio de roupas na região da rua José Paulino, comer em um estabelecimento de cozinha coreana, chinesa, judaica, grega ou sírio-libanesa, fazer compras em um dos mercadinhos especializados em comida coreana ou kosher, topar com prédios de organizações laicas e religiosas de origem italiana, judaica ou coreana, bem como visualizar os inúmeros anúncios e letreiros em coreano, ídiche ou espanhol.
Se culturalmente é possível identificar no Bom Retiro essa profusão de nacionalidades, e mesmo religiosidades, é possível afirmar também que o bairro é diverso nos variados usos que abriga dentro da cidade. O Bom Retiro é mais conhecido como polo de referência na produção e comércio de roupas do país, abrigando em seu território várias unidades especializadas dessa cadeia de produção, que vão desde a concepção das indumentárias, sua costura, até sua distribuição. Em torno destas atividades, gravitam ainda negócios complementares como importadoras de insumos têxteis, produtores de aviamentos, fornecedores de maquinário, e até serviços de reciclagem de resíduos têxteis. Para além deste aspecto econômico mais largamente consolidado no imaginário coletivo, o distrito do Bom Retiro também é um dos poucos locais de São Paulo a concentrar uma diversidade de instituições educacionais privadas e públicas, históricas e de referência, como a Escola Marechal Deodoro e o Colégio Santa Inês, voltados ao ensino básico, e unidades do Centro Paula Souza, como a escola técnica e a Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo. Ao mesmo tempo, existe uma variedade de práticas e organizações culturais que movimentam a região para além das instituições do eixo “Luz Cultural”, como as sessões de samba e choro da loja de instrumentos musicais Contemporânea, as rodas de samba da rua Mamoré, as atividades sazonais dos barracões das escolas de samba Gaviões da Fiel e Tom Maior, as ações artísticas do Teatro Popular União e Olho Vivo, da Cia. Pessoal do Faroeste,[3] e as das já mencionadas Casa do Povo e Cia. De Teatro Mugunzá. Além disso, o distrito permanece como espaço residencial para mais de 30 mil habitantes, principalmente nas áreas em direção à várzea do rio Tietê. Como visto, em muitos sentidos, o Bom Retiro possui uma vitalidade própria, com perfis diversos de experiência do bairro, mesmo que a pandemia de coronavírus tenha recentemente impactado em variados graus todas estas dinâmicas.
Entre o enclave e a cosmópolis
Retornando ao conflito estabelecido entre a proposta de renovação urbana do consulado sul-coreano e a resposta dada pelo conjunto de organizações locais, fica mais claro identificar o que está em jogo após toda a digressão realizada para contextualizar o episódio. Não somente o Bom Retiro é um local que acumula experiências de intervenção urbanística que não foram plenamente resolvidas, como novamente muito do que os grupos locais consideram como sendo as características que estruturam o bairro foram desconsideradas. Porém, neste caso a controvérsia também expõe de maneira mais nítida dois modelos muito diferentes de ler e operacionalizar a questão da diversidade cultural nas cidades.
Segundo o cônsul-geral coreano, o projeto de transformar o Bom Retiro em “Koreatown” é um exemplo de ação já realizada em Los Angeles, quando era cônsul naquela cidade. O resultado bem-sucedido da iniciativa o inspirou a replicá-la em São Paulo, tendo em vista a promoção da cultura coreana e as histórias de migração de nacionais coreanos a essas cidades. De fato, é notória a presença de coreanos no Bom Retiro, estudos afirmam que no bairro a chamada comunidade coreana conseguiu estabelecer-se enquanto um “enclave,” com uma série de espaços coletivos e serviços voltados exclusivamente ao público coreano. São escolas, igrejas, restaurantes, cafés, pequenos mercados e salões de cabelereiro e estética que sustentam um ambiente social regido por um padrão cultural próprio, no qual, por exemplo, é possível manter o coreano como língua principal de comunicação e outras etiquetas sociais específicas. Porém, entre existir uma dinâmica cultural espontânea e transformá-la em política urbana, há uma distância importante que é preciso se atentar, pois a cidade enquanto espaço público demanda concebê-la como espaço aberto ao conjunto dos cidadãos e não somente a uma parte deles. E é justamente essa passagem de transformar um enclave cultural em ação urbanística que o projeto de tornar o Bom Retiro em “Koreatown” aparentemente se propõe a realizar, um processo que chamamos aqui de “etnização” do espaço urbano.[4]
Talvez se a história do Bom Retiro não fosse marcada pela multiplicidade de outras presenças socioculturais conforme já apresentado, o projeto “Koreatown” não criasse tanto ruído. Entretanto, ao privilegiar simbolicamente apenas a presença de um dos muitos grupos sociais que compõe o bairro, o projeto não faz jus à riqueza e complexidade da região, ignorando tantos outros legados culturais e sociais. Por isso, é mais do que justificável que para um conjunto de organizações locais tal proposta urbanística se mostre excludente. Em contraposição à esta proposta de “etnização” do bairro, elas reivindicam o reconhecimento da multiplicidade local e cobram uma abordagem “cosmopolita” como ação pública, conforme sua manifestação. Como deve ser concebida e realizada uma política urbana “cosmopolita” ainda está em aberto. De qualquer modo, seguindo o que as organizações locais identificam, o Bom Retiro é um dos poucos lugares de São Paulo que notoriamente concretizou o que alguns teóricos consideram como “cosmopolitismo a partir de baixo,” que a resiliência e a tensão entre os vários grupos sociais presentes e passados legaram a este pedaço da cidade, conectando o global e o local por meio de vidas migrantes das mais variadas origens. Caberia aos “de cima” – autoridades, gestores públicos e atores influentes do setor privado – observar tal herança e criar programas e projetos públicos urbanos que acompanhem tal qualidade. Pensar a cidade sob o marco cosmopolita, neste sentido, é pensar um espaço urbano em que seja fundamental reconhecer a diferença em seus variados aspectos e negociar a diversidade de presenças e territórios nas suas singularidades. É abrigar e acomodar todos os que compõem o tecido urbano, exercitando a difícil arte de construir uma cidade aberta e acolhedora, assim como uma cidade-refúgio. Conceber políticas públicas sob o marco cosmopolita é necessariamente estar aberto à diversidade de vozes e estar disposto a implementar uma gestão da escuta, partindo das realidades concretas e não chegando com soluções acabadas. Eis os desafios colocados.
Simone Toji é antropóloga, com pós-doutorado em Antropologia Social pela École des Hautes Études en Sciences Sociales e doutorado pela Universidade de St Andrews.
[1] Note-se a amálgama da expressão entre o inglês e o português, pois a grafia correta em inglês é “Little Seoul”.
[2] Administrativamente, não existe o distrito da Luz. A Luz é uma área delimitada a partir do projeto “Luz Cultural,” composta de partes dos distritos do Bom Retiro, Brás, República, Santa Cecília e Sé. Como boa parte deste território está no Bom Retiro, há influência direta às dinâmicas do distrito de mesmo nome.
[3] Em agosto de 2020, a Cia. Pessoal do Faroeste sofreu ação de reintegração de posse do imóvel que ocupava na Rua do Triunfo, desocupando-o definitivamente no início do mês de setembro. Ver “Companhia Pessoal do Faroeste é despejada de sede, na região da cracolândia,” Folha de São Paulo, 2 de setembro de 2020. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/09/companhia-pessoal-do-faroeste-e-despejada-de-sede-na-regiao-da-cracolandia.shtml.
[4] Essa noção de “etnização” do Bom Retiro já foi primeiramente tratada em outro artigo da autora, em ““Little Seul”, cidades mundiais e a globalização de políticas urbanas municipais,” Le Monde Diplomatique, 22 de junho de 2017. Disponível em https://diplomatique.org.br/little-seul-e-nova-luz-cidades-mundiais-e-a-globalizacao-de-politicas-urbanas-municipais/.