O histórico reconhecimento do povo Krenak e do povo Kayowá de Guyraroká pela Comissão de Anistia
O colegiado da Comissão de Anistia rompeu com antigos paradigmas ao acolher os pedidos de reparação que, outrora, foram rejeitados pelas administrações anteriores
Na semana em que o Brasil completou seis décadas da data que marcou profundamente sua história e trajetória, qual seja, o golpe empresarial-militar (1965-1985), o país testemunhou um marco significativo na história dos direitos humanos e, mais especificamente, um passo a mais no lento processo de justiça de transição: pela primeira vez, a Comissão de Anistia julgou o Estado brasileiro culpado por inúmeras violações dos direitos humanos cometidas contra as comunidades indígenas Krenak, em Minas Gerais, e Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, mais especificamente da comunidade Kayowá de Guyraroká, e concedeu aos mencionados povos a condição de anistiados coletivos.
A sessão plenária da Comissão de Anistia que contou com pedidos formais de desculpas às duas culturas indígenas mencionadas por meio da presidente da Comissão, Enéa de Stutz e Ameida, representa um momento histórico na medida em que reconhece a condição de anistiados coletivos aos povos Krenaks e Kayowás.
O ato oficial inaugura perspectivas no sentido de mais avanços na garantia dos direitos fundamentais, fortalecimento das relações entre as comunidades afetadas, a sociedade dominante e o Estado brasileiro, além da concretização da memória e justiça histórica, ambas devidas aos povos originários do Brasil, especialmente por permitir a compreensão do passado com vistas no presente e no futuro.
Cuida-se de centelha de esperança de que o Estado brasileiro passe a adotar políticas de não repetição em relação às dinâmicas de violência e de biopolítica inerentes aos mecanismos de funcionamento da sociedade brasileira que mantêm em vigor, de modo recorrente, os reiterados processos de ameaça existencial aos povos autóctones.
Mais do que isso, traduz relevante precedente para que centenas de outros povos indígenas que foram gravemente violados em suas existências pelo regime militar de 1964 e sua visão desenvolvimentista venham a ter suas experiências traumáticas reveladas a toda a sociedade brasileira.
O colegiado da Comissão de Anistia rompeu com antigos paradigmas ao acolher os pedidos de reparação que, outrora, foram rejeitados pelas administrações anteriores. Até então, argumentava-se que a concessão de anistia coletiva não seria viável, restringindo-se às ações de reparação em uma escala individual. A decisão sob comento confirma o reconhecimento dos povos originários como titulares de legitimidade e de personalidade jurídica independentemente dos formalismos de admissibilidade impostos por leis que compõem o sistema jurídico do país, tendência já de há muito confirmada por decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Para além dos formalismos jurídicos e burocráticos já tantas vezes opostos como obstáculos à efetivação de sua cidadania, a decisão da Comissão de Anistia privilegia as significações históricas sobre os povos indígenas e seus legados para os dias que correm.
Durante a ditadura, a política em relação aos povos indígenas refletia uma abordagem de assimilação e integração forçada. Essa estratégia governamental mais ampla não apenas visava à supressão das identidades e culturas indígenas, mas também buscava submeter essas comunidades à autoridade e controle do Estado, em um esforço para promover a homogeneização e a conformidade com a cultura dominante.
A imposição de políticas que resultaram em deslocamentos forçados, restrições à liberdade e tentativas de suprimir as tradições ancestrais ilustra o caráter repressivo e desumanizador da abordagem governamental em relação aos povos indígenas durante o período de exceção. Essas dinâmicas foram inspiradas pelo motor desenvolvimentista e integracionista do regime militar que tinha, nos referidos povos, obstáculo a ser superado, seguido da concessão de acesso às terras indígenas tradicionais às mineradoras, muitas multinacionais; ao garimpo e às propagação das monoculturas, aí incluídas as concessões de terras a pecuaristas e colonos.
O Plano de Integração Nacional (PIN), anunciado em 1970 e consequência da “Operação Amazônia” de 1966, assim como o lançamento do lema “homens sem terra no Nordeste e terras sem homens na Amazônia”, davam o tom econômico das políticas que conduziriam às brutais violências neocolonizadoras cometidas contra os povos nativos do Brasil, incluído o Krenak, coletivamente reconhecido como anistiados em 2024 (DAVIS, Shelton H. Victims of the Miracle, p.38. Cambridge University Press, 1977).
Assim, por exemplo, o “Reformatório Agrícola Indígena Krenak”, criado em 1968, em Resplendor, Minas Gerais, configurou-se como uma “prisão”, descrito por muitos que o conheceram como um “campo de concentração” destinado a indígenas que não aceitavam se sujeitar às imposições de militares nos seus modos de vida. Embora também acolhesse indivíduos de diversas outras etnias oriundos de diferentes regiões do Brasil, o reformatório era destinado primordialmente a membros da etnia Krenak.
O Reformatório Krenak, com segurança parcialmente provida pela Guarda Rural Indígena – composta por membros de diversas etnias responsáveis por vigiar e punir os internos –, abrigou até 94 detentos de 15 diferentes etnias advindos de 11 estados e se tornou cenário de uma série de gravíssimas violações de direitos humanos. As atrocidades cometidas no local incluíram restrição severa de liberdade, desmantelamento de estruturas familiares, sujeição a trabalhos forçados, prática de abusos e torturas e, até mesmo, assassinatos. Soma-se a tal conjunto de violações o sistemático desrespeito às tradições culturais, linguísticas e práticas culturais das vítimas.
Em 1972, os Krenak também sofreram deslocamento forçado de suas terras tradicionais em Resplendor, desalojados pela Polícia Militar mineira para a Fazenda Guarani, controlada pela instituição e localizada no município de Carmésia, situado a uma distância superior a 300 quilômetros. Essa ação visava beneficiar posseiros que se apropriaram de mais de 4 mil hectares de terra tradicionalmente indígena.
Mencionado contexto opressivo e concentracionário levou à condenação, em 2021, do estado de Minas Gerais, nos autos da Ação Civil Pública n° 0064483-95.2015.4.01.3800 proposta pelo Ministério Público Federal à adoção de diversas medidas em prol do povo Krenak, como a demarcação de suas terras, além do reconhecimento formal da culpa pelas apontadas violações.
O povo Guarani Kaiowá enfrentou um processo de desterritorialização marcado por ações que culminaram na remoção de suas terras em Guyraroka, um episódio diretamente ligado às políticas desenvolvidas durante a ditadura que não apenas retirou os Guarani Kaiowá de suas terras ancestrais como também facilitou a instalação de fazendas nesses territórios.
De acordo com apresentação de Geovani Krenak durante a sessão de anistia, os povos indígenas não viveram as boas novas que os brancos viveram durante o período da redemocratização, obrigados que são, mesmo nos dias atuais, a viver sob o modus operandi de omissão estatal em relação aos seus direitos.
Referidas violações históricas deixam marcas profundas que ressoam ao longo das gerações, impactando não apenas as vítimas diretas, mas também suas famílias e descendentes, gerando efeitos emocionais e sociais duradouros. Na atualidade, a ausência de demarcação – ou de homologação – dos territórios indígenas acarreta consequências sérias, contribuindo para a desordem social e a perpetuação da violência perpetrada por setores anti-indígenas em suas tentativas contínuas de expulsar as comunidades de suas terras, ações tais motivadas também pelo racismo que inviabiliza a cidadania indígena plena tanto pelo ângulo estrutural, como institucional e intersubjetivo.
Para as lideranças Krenak, o desfecho desse julgamento é resultado do protagonismo indígena, que, diante de tantos crimes, compeliu membros do seu povo a abandonarem suas práticas cotidianas tradicionais para assumirem o papel de atores políticos, visando pressionar o Estado a reconhecer e reparar os crimes perpetrados contra eles.
Ao término da histórica sessão da Comissão de Anistia e que inaugura novo paradigma na busca por justiça e reparação aos povos indígenas mediante o reconhecimento das atrocidades infligidas pelo Estado brasileiro contra suas comunidades, outras questões se tornam inafastáveis: assim, por exemplo, a recomendação de demarcação territorial ou sobre a efetividade prática desses gestos simbólicos na vida dessas comunidades.
Surge o questionamento sobre como esse ato simbólico poderá se traduzir em justiça tangível para esses grupos no mundo real. O processo, bem como a pressão social necessária para garantir a realização de políticas que atendam às recomendações da Comissão de forma eficaz, tornam-se aspectos críticos a serem considerados.
É alarmante e frustrante constatar que, paralelamente e na mesma semana em que se dá o primeiro reconhecimento como anistiados coletivos, da história do Brasil, novas violações e conflitos surgem no campo e vitimando povos originários.
É o caso do povo Guarani-Kaiowá e de seus territórios no Mato Grosso do Sul, sistematicamente espoliados e violentados por setores privados e com a omissão ou mesmo com o auxílio de setores públicos; ainda, as violações contra o povo Yanomami e a invasão de suas terras pelo garimpo ilegal e pelo crime organizado; ou, também, quanto ao povo Pataxó Hã Hã Hãe, recentemente vítima de um ato organizado previamente pela milícia criminosa autointitulada “invasão zero” e que ceifou a vida da Cacica Nega Pataxó.
Tal contraste entre as palavras de reconciliação; entre os direitos indígenas convencionais e constitucionais consagrados no plano formal; e, de outro lado, a sistematização das ações que perpetuam a injustiça e o genocídio, ressalta a urgência de uma mudança concreta e imediata na abordagem das questões indígenas no Brasil que vá além de meras declarações e se traduzam em medidas efetivas e duradouras para assegurar os direitos e a dignidade desses povos historicamente marginalizados.
A luta por verdade, memória e justiça para os povos indígenas prossegue incansável e requer não apenas o reconhecimento simbólico, mas também mudanças de mentalidade da sociedade brasileira; aperfeiçoamentos institucionais, estruturais e intersubjetivos, além de ações e políticas tangíveis que efetivamente protejam e promovam a vida e as terras tradicionais indígenas, base existencial fundamental da qual decorrem e são projetadas todas as demais manifestações de vida, individuais e coletivas, de nossos povos indígenas.
Cláudia R. Plens é arqueóloga, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), coordenadora do curso de especialização Antropologia Forense e Técnicas em Arqueologia aplicadas à Ação Forense Humanitária e responsável pelo Laboratório de Estudos Arqueológicos (LEA/Unifesp) e pelos grupos de pesquisa CNPq Núcleo de Estudo e Pesquisa em Arqueologia e Antropologia Forenses (NEPAAF/Unifesp) e Territórios e Direitos Humanos (TDH/Unifesp).
Flávio de Leão Bastos é coordenador dos núcleos da Memória e dos Direitos Indígenas e Quilombolas da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, membro do GT Doi-Codi e foi membro da Comissão da Verdade de Osasco, autor do livro Genocídio indígena no Brasil: desenvolvimentismo entre 1964 e 1985 (Juruá, 2018), professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Justiça de Transição, conselheiro do Núcleo da Preservação da Memória Política de São Paulo e professor visitante na Universidade Tecnológica de Nuremberg (Alemanha). Vice-coordenador do Núcleo de Estudo e Pesquisa Territórios e Direitos Humanos (TDH/Unifesp). Advogado atuante perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em defesa dos povos indígenas.
Excelentea textos. Li com extermo prazer. Parabéns!