Lá na minha terrra
Poderia ter sido na Palestina, mas também em muitos países da África ou da Ásia. Onde as brincadeiras acabaram e as crianças, como os adultos, vivem a guerra. Mas nem o medo, nem a dor, conseguiram matar a esperança. Um conto do escritor John BergerJohn Berger
“Então, vocês querem uma história de lá, da minha terra”, ela diz, “aqui está uma”:
Ele tinha treze anos, talvez quatorze. Já tinha voz de homem, mas seu jeito de falar não era com voz de homem. Estava sentindo dor, mas decidido a não demonstrá-lo. K. e dois Outros garotos bateram à minha porta e me acordaram. Quando a coisa aperta e o sangue corre, as pessoas sempre vêm me consultar porque sabem que eu trabalho na farmácia. E é um papel que eu assumo, porque ao contrário do que vocês possam pensar, isso me facilita a vida. Raf estava ferido na perna e não podia apoiar o pé direito no chão. Eles o trouxeram, mancando, cada um passou um dos braços dele em volta do ombro. Disseram para mim que ele se chamava Raf.
Na época em que vivemos, a coragem espontânea aparece desde a infância. Com a idade, é a capacidade de suportar que chega – presente cruel dos anos.
Eles jogaram um jipe em cima dele; ele havia saído depois do toque de recolher. Conseguiu rastejar debaixo de um caminhão abandonado, depois conseguiu se esconder no meio de umas ruínas. Eu disse aos meninos que ia sozinha examiná-lo na farmácia. Assim, se a luz chamasse a atenção ? passava da meia-noite ? eles não seriam envolvidos.
Fomos buscar uma padiola na loja, deitamos Raf em cima dela e o transportamos pela estrada demolida, depois colocamos a padiola em cima da cama de hospital instalada nos fundos da loja. Ele parecia ter perdido muito sangue.
Eu disse a K. que ele podia voltar, se quisesse, dali a uma hora, mais ou menos, e que se por acaso encontrasse a luz apagada e a porta trancada, isso queria dizer que eu tinha precisado levar o Raf com urgência ao hospital.
Os três me olharam como se eu tivesse ficado enorme. Provavelmente não vai ser preciso, eu disse, para tranqüilizá-los, a gente faz o máximo, mas é preciso estar pronto para qualquer coisa, não é? Se estivermos na farmácia, batam três vezes na porta.
Quando nos vimos sós, Raf sorriu para mim. Um sorriso estranho para alguém tão jovem ? como se nós dois tivéssemos conseguido fazer alguma coisa, e o sorriso testemunhasse orgulhosamente essa conquista.
“Eles atiraram cinco vezes e acho que erraram três”, disse ele.
“Onde está sua mãe?”
“Na minha cidade.”
“O que é que você está fazendo aqui?”
“Estou trabalhando.”
“Você trabalha até tarde!”
“A senhora também trabalha até tarde”, respondeu e apertou os olhos. Em sinal de dor ou de cumplicidade, não tenho certeza. Talvez as duas coisas.
Tirei com cuidado a calça jeans dele, limpei a perna e cortei com a tesoura o garrote amarrado no alto da coxa. Não espirrou sangue. Graças a Deus, a artéria não tinha sido atingida. Ele me olhava, curioso, mas a curiosidade não era pelo seu estado.
“A senhora sabe com o que eu sonho?”, ele me perguntou.
Eu testei os reflexos dele coçando-lhe a planta do pé coberto de poeira e manchado de sangue. A perna dele contraiu-se normalmente. Os nervos estavam funcionando. Lavei o pé dele.
“A senhora sabe com que eu sonho?”, ele repetiu.
“Não, fala. Vou examinar tua perna agora, se doer muito, me diz, baixinho.”
“Eu sonho”, ele disse, “que estou deitado num barco a motor e que a senhora está dirigindo, nós estamos longe da praia e o barco está balançando em cima das ondas. Tap, tap, tap.”
Havia dois ferimentos, um do lado do outro. Um comprido, superficial, o outro, feio, pequeno e fundo. Imaginei que a bala que causara o primeiro ferimento, atirada de cima, tinha penetrado na perna de lado e tinha saído onde a ferida acabava, acima do joelho.
“Para onde vai o nosso barco?”, eu perguntei, pegando com a mão esquerda o pequeno instrumento com uma pinça para levantar os bordos de um ferimento. A margem de um ferimento, como dizem os franceses, igual à a margem de um rio.
Com a ponta da cânula que estou segurando com a mão direita, dou pancadinhas leves ao longo do ferimento, para poder ouvir um barulhinho metálico ou sentir de repente a dureza do metal. Quando uma bala entra muito fundo, você tem mais chance de localizá-la assim do que vê-la com seus olhos.
“Então, aonde nós vamos?”
“Eu estou deitado de costas e a senhora está dirigindo o barco”, diz ele.
“Para qual porto?”
Não havia bala. Eu deixei os bordos do ferimento caírem. Agora é a vez do ferimento ruim.
“Você quer saber com que sonham os homens, você e os outros todos?”, perguntei a ele.
“Diz”, ele respondeu emburrado.
“Vocês gostam de sonhar com conforto…”
Eu estava tentando e achei que tinha ouvido o barulhinho seco do metal. Dei mais duas pancadinhas. Uma bala.
“E as mulheres, com que?” ele apertou os dentes, bruscamente.
“Vamos fazer alguma coisa para passar a dor, Raf.”
“Não vá embora.”
“Você acha que eu vou te largar? Espera trinta segundos.”
Voltei à loja, ao canto dos analgésicos, onde encontrei a diamorfina que procurava.
“Vou dar uma injeção no teu ombro.”
Dei a injeção (5 mg) e ficamos os dois esperando.
“Então, com que as mulheres sonham?”, ele perguntou, afinal.
“Com lugares que não fiquem mais separados”, respondi a ele.
“Mas os lugares têm de ser separados. Para isso servem os quilômetros!”
A lógica tranqüila de sua resposta lembrou-me meu marido, que está na prisão.
“Não olha agora”, murmurei, “fecha os olhos.”
“De olhos fechados eu fico com medo, vejo os Uzi 5 deles apontados direto para mim.”
“Então olha para o meu rosto, não para minhas mãos.”
“A senhora tem covinhas!”, disse ele, “a senhora ainda tem covinhas.”
De dentro da ferida, extraí, com o fórceps, uma bala esverdeada parecendo um dente podre. Ele nem pestanejou. Eu joguei Betadina no ferimento, até transbordar, como um vulcão. Ele apertou o punho direito e só.
Eu peguei a bala Uzi de 30mm com uma pinça e mostrei a ele.
Aí ele começou a soluçar. Eu aproximei minha cabeça da dele e alguns minutos depois ele dormiu.
Suturei os ferimentos com linha e uma pequena agulha em forma de crescente. Depois de cada ponto que juntava as duas margens do rio, eu enrolava a linha na pinça que segurava a agulha, para dar um nó. E fui andando, de nó em nó. A carne queria ser recomposta.
Dando os nós, eu me lembrava dos dedos de minha avó. E do jeito como eles se mexiam quando ela bordava um lenço. As mãos dela eram mais hábeis do que as minhas.
Eu fiz dois curativos nele, coloquei-lhe um travesseiro sob a cabeça. E balancei a padiola, como um barco que cavalgasse no balanço das ondas.
Eram duas e meia. Estávamos sozinhos, esperando. Tudo estava calmo.
Traduçã
John Berger, romancista inglês, é também poeta, pintor e crítico de arte. Seu último livro lançado no Brasil é Aqui nos encontramos (Ed. Rocco, 2008).