Las Vegas, cidade que se autodescreve como “fabulosa” numa placa luminosa que dá boas-vindas aos seus mais de 33 milhões de visitantes por ano, conheceu um crescimento espetacular. Sua população cresceu 50% ao longo dos últimos dez anos. Uma onda de criação de empregos sem precedentes acompanhou a última mutação por que passou a capital mundial da diversão, que conta com 1,3 milhão de habitantes.
Foi por acaso que, em 1829, um viajante de nome Rafael Rivera descobriu, no meio do imenso deserto de Nevada, um oásis que ele batizou Las Egas (os campos). Na década que se seguiu, a região serviu de escala a pioneiros em busca de jazidas de minério e de refúgio de mórmons. [1] No fim do século XIX, a escolha de Las Vegas como ponto de passagem da estrada de ferro de ligação entre as duas costas dos Estados Unidos impediu que a jovem cidade conhecesse a sorte das cidades-fantasma da região.
Símbolo do glamour norte-americano
Las Vegas deve sua reputação de “cidade do pecado” (sin city) às leis bem flexíveis introduzidas pelo Estado de Nevada em matéria de jogo, prostituição e divórcio. Na verdade, desde de 1931, quando a América puritana vivia ainda a lei seca, os jogos a dinheiro já eram legais. Quanto às “casas de prazer”, elas operam livremente em 13 dos 17 condados do Estado. [2]
E a facilidade com que se pode obter divórcio fez de Las Vegas a capital das uniões e das separações instantâneas. Em boa parte das 250 “capelas de casamento” (inclusive algumas “drive in”, onde é possível casar-se sem sair do carro), pastor, testemunhas, músicos e mesmo sósias de Elvis, estão permanentemente disponíveis. A cada cinco minutos, em média, um casamento é celebrado; a cada quarenta e cinco minutos, um divórcio é declarado.
A construção, pelo gangster Benjamin “Bugsy” Siegel, do hotel Flamingo, em 1946, marcou o início da Las Vegas moderna. [3] Controlada por marginais e imortalizadas por Hollywood, a cidade virou lenda e tornou-se símbolo do glamour norte-americano — o lugar de espetáculos e de extravagâncias e estroinices de stars como Frank Sinatra ou Elvis Presley.
O maior lago artificial do país
Desde a década de 60, Nevada, preocupada em forrar novamente seus cofres, declarou guerra à máfia. Na época, um caso que ficou célebre foi quando o Departamento de Controle de Jogos impediu Frank Sinatra, suspeito de ligações com o meio clandestino, de tornar-se dono de um cassino. Outros investidores — em particular a cadeia de hotéis Hilton e o excêntrico bilionário Howard Hughes — entraram pela força. A máfia, apesar de enfraquecida, contudo estava longe de ter sido eliminada. Na verdade, Oscar Goodman, atual prefeito, eleito em 1999, fez sua carreira e sua fortuna como advogado das “famílias” do crime organizado.
Se é verdade que a cidade cultiva, desde a sua criação, a imagem de puro faroeste, povoado por rudes pioneiros, ela deve igualmente sua prosperidade ao governo norte-americano. A construção da barragem de Hoover Dam, bem próximo e um dos mais espetaculares projetos do New Deal, transformou profundamente o Sudoeste norte-americano. O controle das águas do rio Colorado permitiu impedir a seca — tanto física quanto financeira — de Las Vegas. O Mead, criado na euforia do projeto, é o maior lago artificial do país e alimenta as gigantescas fontes, piscinas e outros projetos aquáticos que abundam no deserto de Nevada.
Na década de 70, a decadência
Este Estado vasto e pouco populoso é da mesma forma generosamente irrigado pelo orçamento militar do Ministério da Defesa: desde a base militar de Nellis até as vastas zonas de testes nucleares, passando pela misteriosa “área 51” — proibida ao público e que nutre os fantasmas dos aficionados da série de televisão “Arquivos X” — a presença do exército se faz sentir a partir do momento em que se sai dos limites da cidade. Até o aeroporto internacional de Las Vegas — que é, pelo número de passageiros, o décimo-terceiro do mundo e o sétimo dos Estados Unidos — foi construído em 1926 para suprir as necessidades do exército.
Desde o fim da década de 70, o quase monopólio de que a cidade gozava no campo do jogo começou a se desmanchar. Em 1978, a cidade de Atlantic City, no Estado de Nova Jérsei, autorizou os jogos a dinheiro. Dez anos mais tarde, uma lei federal permitiu às reservas indígenas de estabelecerem cassinos. Somados aos efeitos da recessão dos anos 1979-1982, estes fatos levaram Las Vegas a decidir diversificar suas fontes de renda.
Informática e telemarketing
Em 1984, a cidade convenceu o Citibank, principal banco do país, de que poderia estabelecer ali um de seus principais centros de processamento de dados. Para fazê-lo, a legislação teve que ser modificada, de modo a permitir a bancos domiciliados em outros Estados norte-americanos de abrir filiais em Nevada. E, para evitar preocupar seus clientes, o banco, que emprega 1.700 pessoas, obteve que o endereço postal do estabelecimento não indicasse a tumultuada Las Vegas, mas a idílica “The Lakes, Nevada”.
Outras empresas também lá estabeleceram seus departamentos de informática e de tele-atendimento. Tudo isso porque a instalação em Nevada oferece inúmeras vantagens: isenção de impostos, o ritmo de vida não-estressante, a abundância-de-mão de obra, o baixo custo de vida e sobretudo a “mentalidade 24/7”. [4] Na realidade, numa cidade aberta 24 horas por dia e sete dias por semana, os empregados tendem a se mostrar extremamente “flexíveis”. Numa cidade em que nunca se dorme e onde não existem relógios de parede, ninguém se melindra por trabalhar à noite ou fazer horas-extras. Poucas empresas têm horário de fechamento e os empregados normalmente se definem em função de seus horários de trabalho: “daytime shift” (de meio-dia às 20 horas), “swingshift” (das 20 às 4 horas da manhã), ou “graveyard (literalmente cemitério) shift” (das 4 ao meio-dia).
A fórmula dos mega-hotéis
O dia 22 de novembro de 1989, data da inauguração do gigantesco hotel Mirage (3.044 quartos), primeiro hotel-cassino a nascer em 14 anos, marcou o lançamento de uma nova era. A aposta do empresário Steve Wynn, financiado pelos junk bonds (papéis podres) emitidos por seu acólito Michael Milken, [5] se revelou vencedora. Sua filosofia é a seguinte: Las Vegas deve manter diversões de todo o tipo, não apenas para adultos, mas para famílias, e os hotéis, toda sorte de atrações e serviços, entre os quais capelas de casamento, com o objetivo de incitar seus clientes a passarem aí o melhor de seu tempo. [6] Outra inovação: na entrada de um hotel, um vulcão — destinado a seduzir as crianças de todas as idades — entra em erupção de meia em meia hora.
Na década seguinte, a “Strip” — principal artéria da cidade, que se estende por cerca de cinco quilômetros — sofreu uma transformação radical: a fórmula do Mirage serviu de modelo para outros “mega-hotéis”, cada qual com um tema original. Do Mandalay Bay (3.300 quartos), que pretende recriar um paraíso tropical, com sua lagoa, piscina de ondas e praia de areia, ao faraônico Luxor (4.427 quartos), passando pelo imponente MGM Grand (5.005 quartos), que reivindica o título de maior hotel do mundo, ou pelo Paris-Las Vegas (2.916 quartos e 295 suítes), homenagem da Cidade do Neon à Cidade-Luz, os grandes grupos hoteleiros souberam comprimir a história e a geografia, inserindo nelas uma dose generosa de mitologia.
A encarnação do tema
Por exemplo, o Paris-Las Vegas (custo: 790 milhões de dólares), inaugurado em setembro de 1999, oferece um resumo de uma França revisada e corrigida por Hollywood. O vocabulário francês dos 4.000 empregados do hotel (que se chamam, como nos belos dias da Revolução, “cidadãos”) se reduz à palavra “bonjour”, a qual serve para todo e qualquer fim. Os mais corajosos acrescentam um “comment ça va?”, à guisa de aproximação. Agentes de polícia com quepes, acordeonistas e um entregador de baguettes montado num triciclo vermelho perambulam sob um falso céu enfadonho. As placas nos indicam “le car rental” ou “les show tickets”. As reproduções “autênticas” não são menos impressionantes: uma meia torre Eiffel de 164 metros de altura (de cujo topo se pode observar Las Vegas), dois terços do Arco do Triunfo, o Hôtel de Ville (Prefeitura), a Opéra, a Ponte Alexandre III etc.
Pode-se, portanto, em apenas algumas horas e sem sair de Las Vegas, visitar a corte do rei Artur e dos cavaleiros da távola redonda, perambular pelo Forum romano, “conhecer” Paris, Nova York ou Monte Carlo, até cruzar numa gôndola — conduzida por um gondoleiro bem cantante e vestindo o lenço vermelho, roupa de marinheiro e chapéu — as águas do grande canal de Veneza. Números de circo, montanhas russas e diversões de todos os gêneros fazem igualmente parte do programa. À noite, pode-se escolher entre uma batalha do mago Merlin contra um dragão, uma batalha naval, a abordagem de um navio por piratas, cenas de ficção científica e inúmeras outras coisas. O gigantismo, a variedade e a orgia dos efeitos especiais que atacam simultaneamente todos os sentidos permitiram à cidade reencontrar seu lugar de capital mundial do entretenimento.
Jogo, o centro de atenções
Este “new look” é acompanhado por um vasto empreendimento de “faxina” numa cidade onde, apesar de tudo, ainda subsiste o perfume do pecado. É necessário ir ao centro velho da cidade (downtown) para reencontrar o clima de antigamente — aquele da cidade viva e agitada cujos letreiros lembravam a corrida do ouro. Quanto à Las Vegas dos nativos, doentia e minada por problemas sociais como o suicídio e o alcoolismo, ela fica fora do campo de visão do turista. [7] Os residentes continuam ao menos a afluir, paralelamente ao acréscimo de 50.000 quartos de hotel, que, numa década, fez de Las Vegas a capital incontestável dos grandes salões de conferências. Tanto a Comdex (feira de micro-informática) quanto a Consumer Electronics Show (feira de eletrônica de uso geral) aí se realizam todos os anos, enchendo os hotéis da cidade.
Apesar da diversificação da economia, o jogo continua ainda sendo, sob todas as suas formas, a principal fonte de lucros. Cada um dos 33 milhões de visitantes anuais deixa em média 500 dólares nas mesas de jogo. Hotéis e cassinos rivalizam em imaginação quando se trata de esvaziar os bolsos dos visitantes. As máquinas caça-níqueis (que são popularmente conhecidas como “one-armed bandits”, ou ladrões manetas) estão em toda parte, salvo nos hospitais e nas escolas. E no percurso do aeroporto ao posto de gasolina, o importante é alimentar a ilusão de que a sorte grande está logo ali. Nos quartos dos hotéis, um canal de televisão explica os rudimentos dos vários jogos que são oferecidos pelo estabelecimento — black jack (ou 21), roleta, dados, bacará, keno etc — fazendo cintilar as chances de ganhos fabulosos. Qualquer evento esportivo é oportunidade para uma aposta — bancada pelos cassinos. Para se ir ao restaurante ou a uma das salas de espetáculos, deve-se atravessar, obrigatoriamente, o salão de jogos.
“Por conta da casa…”
Mas os Estados Unidos conhecem bem os prós e os contras e, para se protegerem da acusação de incitar ao crime, os cassinos tomam suas precauções: os cartazes publicitários anunciando os méritos de tal ou tal jogo, contêm — como no caso do álcool e do tabaco — a advertência (em letra quase ilegível) que o excesso do jogo pode ter conseqüências nefastas. E a cada saque em conta, o tíquete emitido pelo caixa eletrônico convida os “jogadores compulsivos” a consultarem um psiquiatra.
Não é de surpreender que uma economia tão original possua suas próprias regras. No reino do fictício, a verdade dos prêmios é relativa. Os preços — razoáveis — praticados pelos hotéis, restaurantes e centros de diversões são destinadas a atrair o cliente. Os estabelecimentos são generosamente recompensados pelos lucros auferidos nas mesas de jogo. Uma das palavras mais utilizadas é “comp”, abreviação de “complimentary” (cortesia): como nos tempos da máfia, certos clientes se hospedam e comem gratuitamente. Quando o valor das apostas sobe, a bebida é oferecida pela casa, o que tem a dupla vantagem de manter o apostador na mesa de jogo e obscurecer seu raciocínio.
Marketing do aqui-e-agora
Se os pequenos jogadores são bombardeados com pequenos descontos e com “promoções especiais”, são sobretudo os high rollers ou “grandes apostadores” que, uma vez verificado seu crédito, são os centros das atenções. Os presentes que recebem (bebidas, refeições, quartos e suítes gratuitas, viagens) são proporcionais às quantias que são suscetíveis de perder. Os otários com carteiras hipertrofiadas recebem um tratamento VIP (pessoa muito importante): garotas de programa, salas de acesso vedado ao comum dos mortais. Além disso, o pessoal é sempre atencioso, mesmo obsequioso, pois vivem- numa cidade onde a maioria dos assalariados recebe o salário-mínimo — sobretudo de gorjetas.
Fora dos muros dos hotéis-cassinos, Las Vegas parece um permanente canteiro de obras. Renovação, liftings, novas construções estão sempre na ordem do dia. A “destruição criadora”, à moda de Schumpeter, assume aí uma conotação literal. Hotéis relativamente recentes, mas que são ao menos parte integrante da mitologia do show business, são demolidos sem dó nem piedade, para serem substituídos por outros maiores, mais luxuosos e melhor adaptados à moda atual. Foi assim que o Bellagio tomou o lugar do Dunes, o Venetian, o do Sands, ou o Mandalay Bay, o do Hacienda. Melhor, num mundo onde impera o “marketing do aqui-e-agora”, que faz flecha de qualquer madeira, a implosão dos grandes hotéis constitui em si mesma um soberbo fogo de artifício que atrai sua própria caravana de turistas.
O caçula dos hotéis de Steve Wynn marca a coroação da carreira do homem que foi o mais poderoso de Las Vegas — mas também o início do colapso de seu império. O Bellagio — nome de uma cidade italiana que se situa às margens do lago do Como — custou a bagatela de 1,6 bilhão de dólares e emprega hoje 8.000 pessoas. O hotel representa uma nova etapa no desenvolvimento dos hotéis-cassinos temáticos: sem neon, sem crianças, um luxo extraordinário. Os restaurantes e as lojas são mais elegantes que os da Strip.
Uma “galeria de arte” anuncia, no mais puro estilo de Las Vegas: “Now appearing: Van Gogh, Monet, Cézanne and Picasso”. Por doze dólares, pode-se visitar a única sala, que abriga um museu privado do empresário. Mas o império Wynn desmorona em dívidas,
Ibrahim Warde é professor associado na Universidade Tufts (Medford, Massachusetts, EUA). Autor de Propagande impériale & guerre financière contre le terrorisme, Marselha-Paris, Agone – Le Monde Diplomatique, 2007.